domingo, 19 de janeiro de 2025

Ela é moderninha


 

Pareceu-me fragilizada e miudinha no uniforme escolhido
para as funcionárias do pub, e suas olheiras insinuam:
– O bicho tá pegando! É alta temporada no A. Texas,
são poucos meses pra faturar!
Vinte e poucos anos mais jovem, lindo rosto e um olhar
de quem não dispõe de tempo para o amor
e outras fartas emoções.
Tamanha indiferença me desperta um delírio:
– Ela nasceu num outro século e não suporta meu êxtase e minha poesia!
Num relâmpago, outra dúvida me chuta o traseiro:
– E se eu nasci em época errada?
E então, cruzou ali na rua um Corcel II, creio que do ano 1980.
Isso me distraiu da obsessão de que estava diante
da mulher de minha vida.
Bateu aquele saudosismo e, de novo, despertou meu desejo
de colecionar um carro antigo.
Acho que tal gosto criou raízes na minha infância,
quando papai comprou, a duras penas, um Ford T29,
e que durante anos simbolizou o status e a ruína da família.
Por pouco – muitos anos depois – refiz o gesto de papai.
Estava no puteiro da Janete e, nisso, pousou no estacionamento
uma nave deslumbrante: um Corcel II, ano 1979.
Babei enquanto circulava em torno do carro,
e logo identifiquei seu proprietário, um fazendeiro de Jóia.
Conversa e cerveja e não demorou para trocamos os números de telefone
para, no dia seguinte, fecharmos o negócio.
É óbvio que, no outro dia, eu não lembrava de nada
quando vi no celular várias ligações que procediam
de um número desconhecido.
E a garota? Vocês perguntam.
Mudei de ideia, assim que esfriou minha paixão.
Nascemos e vivemos na mesma época, embora ela seja moderninha
e eu não passe de um saudosista apaixonado.
(B. B. Palermo)

sábado, 18 de janeiro de 2025

Faça meditação, mas sem música de fundo!

 


Noticiários informam do apocalipse:
guerras, desastres ambientais, fome e tals.
De olho na telinha, não enxergamos a guerra diária sob nossos pés: moradores de rua, drogados, viciados,
desempregados rastejando feito minhocas
num asfalto de 40 graus.
A miséria não desfila no Insta e no Face.
Por lá, qualquer pilantra muda de status,
sobe uns degraus numa dessas escadas ilusórias
e “vira” uma estrela.
É por isso que me afasto e me sinto cada vez melhor
quando estou sozinho.
Nas ruas e bares e etecétera e tals circulam uns pit bulls
musculosos e adestrados por horas diárias em academias.
– Qual é a dos caras?
Deus me livre se precisar trocar com eles
meia dúzia de palavras.
Ando cada vez mais cético com a humanidade,
e um dos motivos é que esses papagaios não suportam
praticar um mínimo de silêncio.
Se um dia um desses monstrinhos fizer meditação,
aposto que vai colocar música de fundo!

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Nenhum desespero

 

Nenhum desespero.

Início de 2025 e já não suporto as lamúrias duns amigos.

A velha ladainha: o que gostariam de fazer

e o que se perdeu no caminho, enquanto a carcaça desanda

e a alma entristece.

– Eu devia flanar nas alturas recebendo um soldo mensal

de pelo menos 2 dígitos, mas nada acontece!

Estou só por 2027!

 

Eu não: estou só pelo hoje!

Observo os pés de umas garotinhas calçando uns chinelos de grife

e tenho a impressão de que alguns estão deformados,

mas, claro, foi o meu olhar etílico que se perverteu

e dá cambalhotas enviesadas pra cima da realidade –

outros pés são lindinhos e despertam

fantasias dorminhocas.

Apenas visões. 

Nenhum plano para o futuro.

O embate da conquista não semeia qualquer estresse.

Enfim, nenhum desespero.

Alguém precisa dizer isso pra elas.

 

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Foi num entardecer

 



Estou vivo e me pergunto:

sou mero poeta com a tomada em curto

ou apenas um bobão que se enfeitiçou pela garota

do mais novo pub e pelas músicas

de sua playlist?

Estar vivo é olhar para o céu ao entardecer,

e ainda tem sol e a lua também deu as caras

e mostra os caminhos, e sorri:

– Eis o Cadelão, pra lá de faceiro!

Sim, a lua mostra os caminhos e cabe a você

escolher.

Estar vivo é ficar atento aos milagres.

Quando a garota disse:

– Eu li o Bukowski!

Eu me entusiasmei:

– Nossa, meu bem! Eu e o velho safado bebemos todas por aí!

Tenho algumas histórias pra te contar!

Ao notar que havia sobre a mesa papel e caneta

e que eu rabiscava umas coisas alucinadas enquanto sugava um chope,

ela disse que tem poderes especiais e desvenda segredos

deste e de outros mundos, e que não foi por acaso

que eu pintei no seu entardecer,

pra ouvirmos juntinhos Rita Lee, IRA e Titãs.

Depois do terceiro chope tive a certeza

de que ela é a mentora sentimental e espiritual

que tanto procurei!

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Um estranho amor

 


Acreditam que um dia vou agarrar a boia
que elas vão jogar, quando estiver afundando
em alto mar.
Mesmo com semblante sério e interessado,
sei que, por dentro, elas riem cascatas
quando digo que ganharia prêmios literários
se tivesse mais tempo, ou se direcionasse a libido
para a criação.
Elas acendem holofotes de um estranho amor,
e eu jamais serei curado.

Do livro
CAMINHANDO NA CHUVA SEM ME MOLHAR.

Ela é moderninha

  Pareceu-me fragilizada e miudinha no uniforme escolhido para as funcionárias do pub, e suas olheiras insinuam: – O bicho tá pegando! É alt...