quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Era uma vez um Amado Batista



Cheguei na estação rodoviária de Capão da Canoa e corri até os banheiros.

Uma senhora limpava as privadas, cantarolando uma música.

À medida que urinava, aquela canção me parecia familiar.

Ao me dirigir a uma das torneiras das pias, tive a certeza.

Falei pra ela:

– Escuta só, aposto que tu estava cantando uma do Amado Batista!

Ela sorriu.

– É linda, né?!

Sou tomado por uma nostalgia.

Vivi os bons tempos do Degrau’s, a boate da Janete,

uma cafetina generosa, quase mamãe.

Lembro que ela e suas gurias me chamavam de Amado Batista.

Creio que era um pouco parecido com o cantor – popular e milionário, diga-se.

Janete me chamava também de American Airlines, e nunca soube se tinha relação com a companhia aérea e com aviões a jato.

Se fosse, não fazia o menor sentido, eu pouco saía do chão, meus voos

quase não se descolavam do solo – como se fosse um galo velho que ainda sonha voar, quase sempre depois de beber algumas.

Na boemia noturna, recepcionado como o Cara,

eu me fazia e despia o ego de intelectual e – mais do que isso – cantava as do Amado, e cantava bem, juro!

 

(B. B. Palermo)


terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Poetinhas, contenham-se!

 

Não caminhava sozinho, estava rodeado

de uma legião de capetas, rindo, zombando.

Vestiam branco e jogavam pro alto seus cantos

vindos do outro lado da noite

do mundo,

no ritmo encanzinado do batuque.

Irmãozinhos, quais seus planos para mim?

Ou tudo não passava de um sonho:

Vocês rezam para que eu acorde?

O mar está de ressaca e eu caminho

pra um lugar qualquer e nunca encontro

o entardecer,

e as peregrinações se repetem milhões de vezes

e o retorno é um eterno ir e voltar

e não me metamorfoseio  – estou enfeitiçado

pelas velhas fábulas.

Palermo, seu bosta! Que ideia é essa

de botar poesia pra cima de telhados,

decks e containers e dos magníficos gramados deste lugar,

se os sujeitos gabaritados do Texas

erguem sem parar

casas e prédios,

em sua cabeça fermentam negócios promissores

e o verão está chegando??

Segundo as projeções da especulação imobiliária,

vai rolar muita grana por aqui.

Então, poetinhas, contenham-se,

juízo no copo e nesses ideais dominados

pelo contentamento dos instintos!

 

Não há outra saída... senão me recolher.

Em casa, o computador me obedece

em sua lerdeza habitual,

parece comigo, cheio de dúvidas sobre

o que fazer no futuro.

É isso aí: fomos contagiados pela insustentável

preguiça deste lugar!

 

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Utopia


 

Ontem cruzei pelo Janjão, sujeito meio andarilho

e meio morador das ruas do A. Texas,

e perguntei-lhe se está curtindo a leitura do livro

Caminhando na chuva sem me molhar.

Fez alguns comentários que mostravam que, de fato,

ele está encarando as aventuras e desventuras

do Palermo/Cadelão.

Aí, me perguntou:

– Professor, o que é utopia?

Este conceito aparece no desfecho de uma das histórias do livro.

Expliquei-lhe de uma maneira breve, objetiva,

algo semelhante ao que encontrei agorinha

numa página de literatura, no Facebook:

 

"O propósito da vida não é simplesmente ser feliz. É sobre ser útil, honrado, compassivo e contribuir de alguma forma para tornar o mundo melhor. É deixar um legado que mostra que você viveu e viveu bem. Seja cuidando de uma criança, cultivando um jardim ou melhorando as condições sociais, o verdadeiro sucesso está em saber que, graças à sua existência, pelo menos uma vida respirou mais tranquila. Isso, de facto, é ter alcançado a essência da vida”.

Ralph Waldo Emerson


quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O real é muito triste

 

Churras na casa de veraneio do Professor.

Havia alguns convidados e um deles decidiu

que era o momento perfeito para nos deixar a par

de seus problemas de saúde.

Na primeira estocada retórica,

narrou seus dramas com as putas hemo**:

– Quando tu vai no banheiro C*, parece que sai arame farpado do C*!

Havia – sobre a mesa – salada, pimentas em conserva, pão de alho, lingüiça toscana...

Olhei pras pimentas, pensei no sufoco do meu rabo

e no sufoco dos rabos da humanidade,

tanta gente sofrendo pra caralho!

Estava disposto a escrever um poema danadinho,

um cupcake falando das folhas caindo

e dançando e exibindo suas performances

nos pátios do velho Texas no final do inverno e o crepúsculo exibindo

o grande amor de minha vida.

Quem sabe, meu poema serviria de remédio

para as dores da humanidade,

já que ouvi dizerem por aí

que a poesia salva...

Mas não... o problema... é que o real

é muito triste!


(B. B. Palermo)

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Ele já estava lá

 



As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias,

uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências

com os cães de rua – eles e eu, todos encarávamos

uma maré meio maçante.

Ansiava por algum acontecimento que lançasse faíscas,

sei lá, que trouxesse alguma luz nessa escuridão.

Decidi, então, chegar na praia e, aí, foi estranho:

um trator arrancava das profundezas do mar uma enorme rede

abarrotada de peixes, e a máquina se comportava

naquela paciência digna da sabedoria dos velhos pescadores.

Me aproximo para identificar os bichos presos à teia

e – puta m*! – sou encarado por um monstro peixe-espada!

O olhar do bicho, juro, pareceu em pior estado de conservação

do que o meu – uns olhos cansados e vermelhos,

denunciando as noites boêmias.

– Estamos todos em movimento – filosofei – enrolados

num sem número de redes, a caminho do fim...

 

Sigo meu destino, isto é, entro num bar

para refletir sobre os fatos e buscar uma empolgação,

um entusiasmo, uma faísca que acenda

qualquer chama criativa.

Bendito o lúpulo nosso de cada dia! – diria o querido do Beiço.

E não é que uma faísca acendeu?

Lembrei de uma historinha que ouvi dias atrás.

Juro que serei breve, não vou levar meia dúzia de páginas,

como Flaubert, em “Madame Bovary”,

para descrever um vilarejo em seu romance,

tendo como paisagem, além da igreja, do mercado,

da farmácia e da hospedaria, um cemitério.

...

Era uma vez uma Semana Farroupilha.

Um grupo de amigos fez uma cavalgada de sua cidade

até uma vila, que ficava a dezenas de quilômetros.

Os cavalos faziam enorme esforço para suportarem

as paradas frequentes, nos bolichos, para reabastecer

as guampas com cachaça.

Rolou de tudo nesse lugar: missa, churrascada, bailões

e muitas prendas para se cortejar.

Como em todos os vilarejos, o cenário é parecido,

com igreja, escola, armazém e um cemitério –

o qual estava no limite, as sepulturas pareciam invadir a rua.

Muita gente circulava de um lado para o outro.

Eis que um senhor, distraído, escorou-se no portão do tal cemitério

e o umbral cedeu, veio abaixo e o serzinho

despencou sobre os túmulos.

Houve surpresa geral e muitos risos.

O tal senhor levantou-se e, num riso disfarçado, exclamou:

– Aqui eu não entro não!

Já era tarde... O pobrezinho já estava lá...

No dia seguinte, foi encontrado morto.

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Pílulas diárias de fofoca

 

– Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém!

Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”.

Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ninguém repara.

Lá na Serra, não. Se tu se vestir de um jeito simples,

nem te olham!

 

Agora o papo é sobre os bichinhos, os cachorros,

quase sempre vira-latas, “graças a Deus!”.

– É horrível, naqueles dias chuvosos, é terrível.

Eles só fazem xixi na rua. Se não andarem por aí,

gemem, uivam, choram, pedindo pra sair.

Gatos? Não, não! Eu não quero mais saber!

Tinha um macho e uma fêmea.

Tu acredita? Ela só queria fugir.

Até que me abandonou, aquela mal-agradecida!

Nunca mais quero ter gatos!

 

Sentado a seu lado, a cabeça lateja,

deve ser por causa do timbre de sua voz

e também o seu desembestado matraquear.

Da janela do ônibus observo – acima de sua cabeça –  

o sol meio que evaporando por entre nuvens escuras.

Ônibus lotado... para e segue e segue e para, gemendo...

– A Defesa Civil disse que serão 250 milímetros de chuva

em 4 dias! Todo o cuidado será pouco!

Enchentes, estiagens, a água e a poeira por todo lugar.

Sua conversa me liga à tomada e desvenda a realidade:

a primavera com suas cores vibrantes

não está a fim de ceder espaço

para o verão.

Fico louco pra chegar em casa, calçar os tênis

e partir pra caminhada: até a praia e depois a praça

e o clube e alguns bares.

Sim, fiquei viciado e entorpecido

e seduzido pelos enredos desse povo.

Acho que não vivo mais sem as pílulas

diárias

de fofoca.

 

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Fantasma


Sou fantasma
pelas ruas do Texas.
É feriado e brota turista
de todo lado.
Procuro alguma alma pra conversar
sobre poesia ou literatura
ou astronomia
ou metafísica –
mas só encontro papagaios
e caturritas
cheios de opinião
e nenhuma leitura
de qualquer livro.
Os tempos estão
foda.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Distribuição de renda


 

De uns dias pra cá as vacas ficaram magras. Restaram algumas notas de 2 reais e poucas moedas e nenhum trampo no horizonte. Como passei a semana comendo bananas e abacates que um amigo trouxe de sua chácara, decidi sair para tomar um café dos bem vagabundos com gosto de pano de prato e para perguntar a Deus o que ele havia feito com meu destino.

Eu era o Arturo Bandini, personagem de John Fante, no livro “Pergunte ao pó”, que ficou uma semana comendo apenas laranjas. Caminhei horas e horas por aí e tudo o que consegui foram preocupações caóticas rondando minha carcaça. Eis que me deparo com uma igreja, ou templo, sei lá, e estava tomada por fiéis. Acho que acendeu uma luz, É hoje, é agora, vou superar essa pindaíba, representantes de Deus me chamam, é o momento perfeito para pedir saúde, fortuna, amor, prosperidade, inspiração, uma história incrível que vire roteiro de um baita filme e me torne famoso! Brotaram na memória os tempos de criança, catecismo, primeira comunhão, pedis e recebereis, tudo o que pronunciasse com fé seria retribuído em abundância.

Dentro da igreja, ouço alguém no altar invocar o bem e expulsar os demônios. Glória aleluia olhei em torno e notei uma irmã que retribuiu meu olhar. Parecia-me familiar, seus olhos negros vivos e grandes sorriram para mim. E então houve um momento de saudações e abraços Aleluia irmãos glória a Deus. E logo a garota se aproximou e apanhou minhas mãos e me deu um abraço exalando seu perfume cabeleira e mamilos Aleluia irmã. Jesus está sempre do teu lado e adivinha quando você vai pecar, sabe dos mistérios do ontem e do hoje e do amanhã. Jesus sabe do teu desejo e inclusive quando você deseja a mulher mais próxima. Sim. É o todo poderoso, muito mais pop do que Che Guevara ou os Beatles. Jesus tudo pode e foi ele quem me conduziu até aqui, transformará meus 2 reais em 200, vai ter piedade deste pobre pecador e vai saciar sua fome e sede.

Era o momento da oferenda. Ali por perto uma senhorinha depositou uma cédula azulada, toda dobrada e que ficou encalhada desce não desce, diante de minha vontade fome e sede. Cadelão, que sonha ser grande escritor – nem alto nem baixo, pau nem grande nem pequeno, mediano em seus gestos de heroísmo – foi tentado não sei por quais forças. De início uma sementinha, a compulsão virou obsessão e – antes de ter tempo para arrependimento – vi aquela nota de 200 ali toda dobrada e então fiz a troca e seja lá o que Deus quiser. Discretamente depositei meus 2 reais e coloquei no bolso os duzentões.

Tirei o dinheiro da igreja para levá-lo aos pobres. Alguém realmente necessitava dele – e, à noite, fui a um inferninho.

Vamos ser sensatos, rapaziada: minha atitude não contribuiu para a distribuição de renda? Os 200 da oferenda chegaram às mãos de Deus, Dele vieram até minhas mãos e eu o repassei a uma garota de programa, uma Madalena qualquer. Ela trocou o dinheiro por compras no mercadinho do bairro, adquirindo alimentos em abundância para seus filhos, que crescerão fortes e saudáveis.

Na vida tudo é movimento. Tudo circula e se encaixa nas engrenagens. Sim, há e haverá controvérsias. Porém, lembrem-se do mais importante: Jesus foi crucificado ao lado de um ladrão e o perdoou!

 

(B. B. Palermo)


sábado, 9 de novembro de 2024

Apenas este instante

 


A prosa daquele senhor impregna o ar.

Ao exalar suas frases, meio que balança a cabeça,

as pernas, dá a impressão de que vai para muitos lugares

ao mesmo tempo.

As opiniões, meio patéticas, despertam-me lembranças

de meus antepassados.

Eram ágeis? Como?

O coração bombeava direitinho sangue por todo o corpo,

ou era fraco?

E os dentes,

e o nervo ciático,

a quantas andava a vitamina D,

e a higiene pessoal,

e as doenças sexualmente transmissíveis?

Quanto % usaram de sua cabeça animal?

Darwin, me ajude:

como cheguei até aqui, em meio a tantos

apetites aleatórios?

Darwin, diga, por favor:

como fui o escolhido, em meio a uma competição

entre milhões de espermatozoides?

Tem dias que olho para trás

e vejo meus ancestrais como uns heróis.

Noutros dias me convenço de que foram uns fodidos.

(Mas que isso não sirva para justificar

esta vidinha miserável, não é mesmo?).

Tem dias que seus corpos despertam

e soltam faíscas das fiações dos postes de minha rua.

Então, furiosos, arrancam pratos e copos de minhas mãos

e os estraçalham no vazio.

Minha estratégia,

como a da maioria de vocês,

é jogá-los no esquecimento –

olvidá-los, ignorá-los –

embarcando no delírio coletivo,

como se tudo o que existe

é este instante.

Este,

apenas

este.

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Dia de mudança


 

Era um dia especial, então fui cedo pro bar.

Desejava contar pros bacanas a novidade:

depois de alguma espera, deixaria a pensão

pra morar no meu apê.

Ao chegar, vi que o Marcão e o Zé

acompanhavam a Lau, no violão –

cantavam, daquele seu jeito, o “Faroeste Caboclo”.

Depois de um mês mamando alguns tipos de chás,

Marcão baixou a guarda e voltou pro Natu Nobilis.

Fase bem louca, essa dos chás:

ele parecia uma dama inglesa

tagarelando suas incríveis experiências

longe do álcool, amparado

por umas burguesinhas de 70 anos.

Não me encorajei em acompanhá-los.

Faceiro, Marcão se atirava nos palavrões,

rimava “eiro” com “puteiro” e tals.

Não tinha jeito, Lau afastava o violão

e reclamava:

– Tu tá drogado, menino!

 

Quando cheguei na pensão,

dona Juju me aguardava

numa perua importada.

De cara, puxou as orelhas deste palerma:

– Tu anda bebendo com o Zé e o Marcão, não é?

Cuidado! Eles entornam pra caramba

e fumam maconha!

A esse respeito, ela tinha toda a razão –

já que trabalhava com adolescentes

infratores.

 

Minhas mudanças nunca foram grande coisa.

Dessa vez, tinha umas 4 ou 5 caixas com livros

mais alguns badulaques e sacolas com roupas.

Entramos no apê e dona Juju explicou

tintim por tintim como tudo funcionava –

nunca tive forno elétrico, chaleira elétrica,

micro-ondas e etc. e tals.

Me senti em casa quando ela abriu

uma gaveta do armário da cozinha

e explicou como guardava os talheres,

para escapar da presença de certas criaturas.

Maravilha – pensei.

Em todos os lugares em que morei

sempre tive a grata companhia das baratas!

Para brindar o negócio do apê e da nossa amizade,

no dia seguinte fizemos um churrasco.

Convidei alguns andarilhos, parceiros do bar.

Todos apareceram – e foi um senhor porre!

No outro dia, eu mesmo subscrevia

um abaixo-assinado contra a minha presença

no ambiente!

 

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Pobrezinho do B. B. Palermo

 


Uma amiga – hoje – me falou:

– Américo, você trata muito mal

o B. B. Palermo!

Fiquei paralisado.

Confesso que tenho algumas dificuldades –

nesse trabalho de imaginar e criar

histórias e poemas –

para identificar ou diferenciar autor

de personagem.

Cheguei a acreditar, juro,

que é o Palermo

quem dá as cartas!

O mais legal é feedback da galera.

 

Obrigado, Rosane!

 


Passas ao rum

  Duas garotas passam devagarinho num carrão importado e uma delas me observou e observou... Pensei: – Vou te lamber todinha, como u...