Manhã de domingo, Beiço deu as caras:
– Velho. Andei pensando. Está na hora do Cadelão parar de
cair nas sarjetas próximas a bares para cair na sarjeta da alma. Comece assim:
"Naquele bar, bem ali, o tédio me serviu um copo de angústias, do qual
bebi de um só gole".
Digo pro filho da p*ta:
– Hein, Beiço, tu acha que sou ovelha desgarrada ou
desgraçada?
– Por que, Cadelão?
– Senhoras de uma igreja me chamaram aqui no portão de casa. Queriam
ler pra mim passagens da Bíblia. Aí, falei pra elas:
“Podemos ler sim, mas tenho livros de montão por aqui... Que
tal lermos um pouco do livro sagrado, e um pouco do Dostoievski e alguns
parágrafos da ‘Madame Bovary?’”.
Cara, em segundos me peguei falando sozinho. Acho que sou o
tipo de ovelha que não tem salvação!
Aí, Beiço veio com tudo:
– Véio, não gaste munição com essas almas que servem de
“mulas” aos pastores das igrejas, correndo atrás de ridículas ovelhas. O que tu
precisa mesmo é ser uma ovelha desgarrada de uma literatura escrota que fazem
por aí!
– Hum... O que dizes talvez seja um pouco do que andei
pensando.
– fala.
– Quando estou
mais pra lá do que pra cá, quer dizer, mais pra loucura do que pra razão,
parece que surge uma outra pessoa pra me zoar. Aí, já não sei se estou falando
sozinho e em alto e bom som, ao caminhar pelas ruas. Não sei se falo para
dentro ou para fora. Esse Outro prega umas peças, tem linguagem própria – e o
mais louco, Beiço: ele é o poeta, ou pelo menos é o que tem coragem de botar a
boca no mundo. E é muito levado no trato com a linguagem. Dia desses, comentou:
ESTOU A QUATRO BANHOS SEM TOMAR DIAS!
Tu acha, Beiço, que nessas horas estou delirando? Ele parece desarranjar
a vida cotidiana, aquela vida mansa e de m**da onde todos seguem as regras,
cabisbaixos. Se mergulho num pântano de irrealidade – que seriam os momentos
criativos –, o Cara! entra em cena, debochando, tirando sarro, dando conselho.
Me confunde, a ponto de trocar o dia pela noite, o amanhecer pelo anoitecer. O
que me deixa feliz é que, nessas horas, sinto que nasce uma poesia que talvez
tenha algum valor. Meu, o que me veio agora é uma relação dessas NOIAS com
alguma poesia e alguns poetas nos anos sessenta e setenta aqui no Brasil.
Fizeram o que pode ser chamada de “literatura do lixo”, onde o palavrão foi
revalorizado e as relações eróticas foram descritas com natural realismo, sem
se preocuparem com o que a sociedade ia dizer. Fazem parte de um movimento
chamado “poesia marginal”, que valoriza o sujo, o lixo, e os poetas eram
chamados de “poetas sórdidos”. Já em 1948 Manuel Bandeira chamou isso de “Nova
poética”:
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na
primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma
nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero (...).
Resumindo, Beiço, acho
que a coisa se intensificou ao ler este poema e tomar contato com a poesia
marginal. Essa visão sobre a poesia e a vida me impressionou a tal ponto que
procuro, além de escrever assim, viver assim.
– faz sentido,
Cadelão. Uma dica: dá uma olhada na opinião do Bukowski a respeito da sua
poesia e a poesia que criticava, feita pelos poetas de sua época. Leia o livro “Escrever
para não enlouquecer”. Lá, tu vai encontrar muita preciosidade.
(B. B. Palermo)