terça-feira, 18 de maio de 2021

Alguma saudade

 

Estava de ressaca e já eram 2 da tarde de domingo.

A vizinhança alardeava animada

sobre futebol e sugava cerveja barata.

Toquei Mozart pra abafar os ruídos que vinham de fora

e pra acalmar meus batimentos cardíacos

e suportar meus sentimentos de culpa.

Momentos de ressaca são inspiradores.

Pretendo colocar papel de parede na cozinha,

que está manchada da gordura de frituras

em horas bêbadas ouvindo Celso Blues Boy.

Planejo também esfregar os azulejos encardidos

do banheiro.

Tem dias que morro de rir da minha sujeira,

mas quando pinta uma garota

renascem meus sentimentos de limpeza,

de ordem

e de perfeição.

 

Batem à porta.

É o grande Jacó.

Olhos vermelhos, o rosto não cabendo em si

de tanto sofrimento.

Planeja internar-se de novo.

Quanto mais embebido de cachaça,

mais bota fé na sua redenção.

Jacó é o invisível do bairro.

Ele queima solitário o fogo,

rodeado de gente morta e

amores fingidos.

Apanha as latas vazias que lhe alcanço

e segue, cambaleante.

Minhas fichas não caem,

a orelha direita me dói,

arroxeada depois do último porre

e do último tombo.

5 minutos depois eis que aparece a Lucy.

Esteve ausente muitos anos.

Cavalga uma motinha fodida,

e eu não pergunto sobre o que fez,

por onde andou e se ficou com muitos caras nas boates,

ou se teve filhos.

Parece haver alguma saudade,

parece que ela nunca me deixou.

Nossos olhares silenciosos dizem:

"Caramba, como você decaiu!".

Eu sei o que ela pensa:

"Hora de ficar na toca,

não dar muito na vista,

ninguém tem nada com isso".

Penso nisso também.

 

Apanho o isqueiro e acendo incensos.

 

(B. B. Palermo)

sábado, 15 de maio de 2021

Existe algo

 

Existe algo entre um copo de café

ou de cerveja,

qualquer canção popular ouvida

numa lancheria de estação rodoviária

e que trouxe lembranças boas,

de uns 20 anos atrás.

Existe algo que atravessa o meu caminho

e que eu ainda não sei se é bom ou ruim.

Existe algo que atormenta doctor Biza

e ele sussurra pra mim

- são os comunistas.

Existe algo associado, parece, ao futuro da humanidade,

e que paralisa os sonhos dos homens de bem

e tementes a Deus, seja Ele do jeito que for.

Existe algo, eu sei, um curto-circuito

na cabeça do meu amigo,

como se fossem minhocas depravadas

que fizeram com que, de uma hora pra outra,

pessoas fossem rotuladas e classificadas

como inimigas.

Existe algo que não é metafísico,

ou imanente ou romântico,

mais parece um pragmatismo surreal,

e esse algo se infiltrou por entre as frestas

que separam razão da loucura                                                  

e agora parece goteira irreversível

nesses telhados delirantes.

Algo não cheira bem.

Meus sentidos não se enganam.

Existe algo de podre em nossa Pátria amada

salve salve.

Existe algo que embaralha os circuitos

desses cérebros tontos,

sejam rotulados de comunistas,

anticomunistas, democratas ou liberais...

Creio que se chama sa-ca-na-gem.

 

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 13 de maio de 2021

RATOS

 

"O prédio está torto".

"Não, a rua é que está torta".

Um vizinho diz ao outro

que o prédio invadiu sua propriedade.

Já que não há consenso entre as partes,

o melhor a fazer é implodir o prédio.

É assim que descemos e subimos a ladeira,

dançando no ritmo de ridículos conflitos.

Sugiro implodir tudo o que é concreto.

Pensamentos concretos,

olhares e desejos práticos,

sugiro reprogramar nosso cérebro,

até restar a capacidade cognitiva

de uma barata.

Seres especiais, baratas resistem bem às tragédias,

brotam dos esgotos para nos desafiarem

e rirem de nossa cara de sonsos.

Porém, não percebemos porque temos

sensibilidade de ratos,

deprimidos, ansiosos, insones,

ratos que até se envergonham da arte juvenil de se masturbar,

ratos que fazem dietas e engordam

na velocidade com que seus iguais procriam

e se adaptam a ambientes hostis,

ratos que fazem academia

e fortalecem a musculatura

e monitoram com impaciência

as variações anatômicas do órgão sexual,

ratos que são solitários até quando perdidos

na multidão e na barulheira...

E ratos tomam ansiolíticos

e leem uns bestas que trazem fórmulas

com breves itens ensinando

a arte de ser feliz...

Pena que ratos nunca ficam felizes

com o que contemplam

diante do espelho.

 

(B. B. Palermo)

terça-feira, 11 de maio de 2021

AS OUTRAS FACES DO AMOR

 

- Quanto tempo faz que tu não toma banho?

- E isso faz alguma diferença na hora do "vamos ver"?

- Não... pagando bem... que mal tem?

 

(B. B. Palermo)

Não seja bobo, Cadelão

 

Não seja bobo, Cadelão, desista de afiar a realidade

como se fosse arma branca pra te proteger dos perigos.

Talvez a realidade seja um aquário,

tua pátria,

teu meio de fuga,

tua válvula de escape,

a úlcera no teu estômago,

o guindaste que vai botar de ponta cabeça tuas crenças.

Tu é um peixinho indefeso na mira de predadores perversos.

Tu se prende facilmente às ratoeiras dos noticiários

e ao bombardeio do bando que te quer igual,

e te torne pacato quanto eles,

desejando converter a natureza implacável

que lhes é indiferente.

Meu, não há salva-vidas para todos,

e tu não é milionário, ao contrario,

tu és um lerdo e animado chinelão.

Já estivemos juntos nuns acampamentos hippies,

rolava maconha, sexo e nenhum estresse.

A vida era simples,

não se agredia o planetinha,

bastavam nossos copos,

nossos corpos,

nosso baseado,

nossas canções.

Odiávamos juntar patrimônio,

o barato era transcender.

Cadelão, parece que hoje as coisas fermentam e crescem,

e logo se retraem e cheiram a podre,

como bueiro de esgoto entupido.

Somos especialistas em pesquisar e compartilhar tragédias,

e os arquivos de nossos smartphones estão transbordantes

de vídeos e fotos e tantas outras merdas.

Ambíguos, temos fé e rezamos, e cremos sinceramente

que na hora do botar pra foder

Deus vai nos estender a mão.

Toupeiras racionais, adoramos ser românticos.

Até parece mentira que - nessas cruzadas de ódio

que vivemos uns contra os outros -

ainda perdemos tempo perguntando e escrevendo tratados

sobre o que é a felicidade,

o amor,

a ética.

Esquece, Cadelão, é perigoso afiar a realidade

como se fosse arma invisível

para te proteger dos perigos.

A cretina já tomou posse

de tua conta bancária,

de tua alma,

dos teus nervos

e do teu coração.

 

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Autoexílio

 

O inverno se aproxima

como um bicho estranho e imprevisível,

você mergulha numas reflexões profundas

que transcendem raciocínios ordinários,

e acredita que o sentido vai emergir

do fundo do poço,

é que um seu amigo está deprimido faz uma semana,

trancou-se dentro de casa

na companhia dos etílicos mais sacanas.

Você chama vizinhos e amigos,

sente-se um corajoso voluntário da Cruz Vermelha,

você acredita que tudo voltará à normalidade,

bons empregos, renda razoável pro povo,

crianças em boas escolas e em tempo integral,

ninguém vivendo ou pedindo esmolas nas ruas,

bichos abandonados sendo acolhidos

por lares aconchegantes.

Você é utópico...

Até acredita no  equilíbrio entre Eros e Tanatos,

você nunca vai deixar de apostar

na capacidade cognitiva e moral dos humanos,

você até faz orações e meditação,

está há uma semana longe dos bares,

você conseguiu, depois de décadas,

curtir hábitos decentes.

Você insiste, deseja crer

com toda a sinceridade,

mas o clima não é de primavera,

não há sol estupendo

nem flores maravilhosas.

O inverno está chegando

e você se depara com a fumaça rasante e fedorenta

que vem de mãos dadas com o anoitecer.

Os irmãos das vilas miseráveis,

com seus motivos estranhos,

tacam fogo em tudo o que lhes é descartável,

e castigam os olhos assustados de suas narinas.

Agora, e de novo, tudo queima,

seu coração, seu estômago,

plásticos, pneus e tantos trecos,

então você volta a pensar no seu amigo

que faz uma semana se autoexilou dentro de casa,

na companhia dos etílicos mais sacanas.

Finalmente, tudo faz sentido.

 

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Conversa de bar

 

Minhas rachadinhas

não têm a ver com grana,

têm a ver com prazer.


(B. B. Palermo)

Anjos da guarda jamais ficam bêbados

 

Aos poucos a maré subiu no bar do Manetta

e a coisa se tornou o epicentro do mundo.

Veio gente de vários becos,

a sinuca bombando, e creio que eu estava

na sexta garrafa e andava cismado

e remoendo originais reflexões

a respeito das tristes horas que os alcoólatras

precisam suportar todo dia.

Flor pouco regada em tempos de seca,

dona Marilu apareceu no bar atrás do marido,

um maluco apaixonado por pedra.

Fantasmas estavam agitados em torno das mesas de sinuca.

Marilu sentou-se ao meu lado e fitou com desprezo

o cônjuge batalhar desesperadamente numas bolas,

num jogo praticamente perdido.

Funcionário, patrão e cliente de si mesmo,

Manetta jogava, bebia, atendia o público

e fritava pastéis.

Bêbados têm alterada sua percepção de beleza.

Aos meus olhos flamejantes, dona Marilu

configurava-se uma loira apetitosa,

e boatos davam conta de que estava carente de sexo.

Bêbados afrouxam seus freios verbais.

Avancei e atropelei as preliminares:

- Vamos cair fora daqui... Vamos lá em casa foder...

A dona me encarava de um jeito estranho.

Bêbados têm reflexos lentos.

Soluços diabólicos ecoaram

e brotaram das entranhas da dona,

e nessas horas, embora tardiamente,

até bebuns pressentem o perigo.

Não deu tempo pra ela ir ao banheiro.

Junto com o jato, sua dentadura postiça

postou-se a meus pés e ficou me encarando.

Dono de bar age rápido em situações

terrivelmente adversas.

Manetta trouxe um balde e um pano

e rapidinho passou uma borracha na cena.

Nuns lampejos de lucidez,

bêbados sentem o desamparo,

como se estivessem blefando com dona Morte,

então saem pelas ruas, tropeçam nos caminhos

e jamais esquecem o rumo de casa.

No dia seguinte dei falta dos óculos.

Vasculhei os aposentos e nada.

Tive um lampejo, deviam ter escapado

do bolso de minha camisa

depois do último tombo quando tentava abrir a porta.

Realmente estavam lá.

Bêbados têm uns anjos da guarda muito doidos.

Eles são amigos do peito.

Eles jamais ficam bêbados.

 

(B. B. Palermo)

 

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...