Doutor Biza convenceu-me a frequentar um centro mediúnico.
- Cadelão, tu precisa expulsar essa vontade louca de
beber. E tem mais, me disseram, tu anda travado, não consegue escrever.
Ele tem razão. Estou bloqueado. E quanto mais penso
nisso, mais a inspiração foge.
O Doutor jurou que no Centro as inteligências altamente
desenvolvidas me desbloqueariam, já que os canais da criatividade são infinitos.
Aconselhou que eu devia, como todo mundo, evoluir,
deixar de ser um serzinho egoísta, fuxiquento, orgulhoso e odiento, e ser mais solidário,
mais empático com os irmãos que comigo
dividem o planeta.
Algumas vezes,
ingenuamente, sonhei ser algo como um médium, psicografar poemas e
histórias de artistas malucos de inteligência hiper-desenvolvida que aqui passaram
em outras vidas. Fico travado porque não me aprumo, um escroto, meus olhos são
sensíveis demais diante das barbaridades que assisto, uma rotina de competição,
desejo de acumular, de se exibir, de dar valor quase que absoluto ao corpo.
Como não suporto conviver com essa merda, corro até o bar mais próximo.
Ainda acredito (sou ingênuo diante de vossos lindos olhos?)
que vou "receber" inspiração para meu grande livro, o qual vai
resolver boa parte dos problemas: dinheiro, garotas, reconhecimento. E o Doutor
garantiu que, no Centro, eu terei progressos nisso também.
Só sei que eu estava lá, esperando a boa nova que o
Doutor profetizou. Saturei depois do último fiasco, tropeços em garrafas
espatifadas e cotovelos e joelhos esfolados pelos tombos no retorno do bar para
casa.
Era sexta à noite, havia uma multidão procedente de
centenas de lugares que ficavam a centenas de quilômetros dali. Novo cenário,
que me fez esquecer as crises ambientais e políticas e econômicas e outras
tantas que nosso planeta atravessa.
Mas não consigo superar meus conflitos com Deus. Quando
me deparo com crianças pedintes nas esquinas, em vez de estarem na escola, e
seus pais igualmente pedintes e sem perspectiva de futuro, eu pergunto: Deus,
você não vai fazer nada? Sua resposta, um rebote em que a bola está a cento
poucos por hora, me derruba: Cadelão, você está sendo chamado a semear gestos de amor, estenda as mãos, exercite
a caridade. Por que você não canaliza tuas energias para o aprimoramento de tua
alma? O impasse com Deus continua, não sabemos de quem é a responsabilidade
para solucionar os problemas desse mundo, então eu corro pro bar, apanho o
jornal e vejo os resultados das loterias. E deliro, fazendo promessas de que,
se acertar sozinho na mega-sena acumulada, vou distribuir boa parte do prêmio
em caridade. Sei, sei, eu vivo de promessas, e uma delas, inclusive, é a de
diminuir o consumo de álcool. Sim, sim, creio na bondade do divino, e espero
não ser expurgado, mesmo fazendo tantas merdas nessa vidinha finita.
O atendimento mediúnico, num grande ginásio, seria
no início da manhã do dia seguinte. Instalei-me numa pensão que até poderia
lembrar campos de refugiados ou de concentração, mas o contexto era outro,
todos ali buscavam saúde, vida em vez da morte, ao contrário da experiência
nazista. Todos movidos pela seu livre arbítrio, e não enjaulados por
governantes psicopatas. Era bem limpo e organizado, com crianças e jovens e
velhos, humaninhos como eu em busca da cura e motivados pela fé.
No restaurante, alimentação adequada para doentes
que fazem dieta. Nada de café e bebidas alcoólicas e lanches com carne
vermelha. Apenas sopas com legumes e grãos e sucos naturais. Todos estampavam
olhares cansados das longas viagens, com suas sacolas e mantas e travesseiros e
cobertores. Observava o ambiente, meio que familiar, e me roía de vontade de
correr pra um boteco qualquer.
Então troquei olhares com uma garota loira. Lá fora
despencava um temporal. Depois, no dormitório, ao subir na parte de cima do
único beliche que me restou, notei que a garota, a loira, dormiria no beliche
ao lado do meu. Disse-lhe:
- Se não conseguir outra cama, posso dormir no
ônibus. Não quero atrapalhar.
Ela falou:
- Não me importo, só deito pra relaxar e esticar as
pernas. Não consigo dormir mesmo.
Umas cinquenta pessoas empoleiradas. Velhas e
velhos, com a saúde debilitada, deitavam nas camas da parte debaixo. Alguns já
dormiam, e não passava de nove da noite.
Encostadinhos, puxei conversa e a garota contou por
que estava ali. Tratava de um câncer incurável, segundo os médicos. Ficou
hospitalizada durante quase dois anos, suportando a dor e a fraqueza resultantes
da radioterapia, e inclusive teve que usar bolsa de colostomia, por causa de um
intestino furado durante o tratamento.
Era de Porto Alegre, bancária, "encostada" no emprego esse
tempo todo, e o marido, no momento de sua maior solidão e dor, abandonou-a e
partiu com outra mulher.
Já disse outras vezes, sou curioso, não é tempo
perdido ouvir os dramas da vida das pessoas.
Depois de conversarmos por um bom tempo, a luz do
dormitório apagada, me vi numa lagoa. Sapos coaxavam, em diferentes ritmos e
sonoridades. Alguns mais angustiados, outros meio sofridos e até parecendo darem
os últimos suspiros. Roncos mais próximos do fim, outros mais serenos e
esperançosos.
Não conseguia digerir a história trágica que a
garota narrou. Afinal, era jovem e bonita, eu não acreditava que Ela passou por
tudo o que me disse.
Na parede, atrás do travesseiro onde Cláudia
deitara, havia uma pequena janela basculante envidraçada. O clarão dos relâmpagos
realçavam seu cabelo loiro, e eu me ligava naqueles olhos azuis irradiando
vida. Bobo, perguntei:
- Cláudia, qual o teu signo?
- Chiiiiiii... Sossega, senhor Palermo, senão daqui
a pouco eles vão acordar e nos xingar.
Rimos e eu passei a noite me revirando no andar superior
do beliche. No outro dia cedo, no atendimento da multidão dentro de um grande
ginásio, eu carregava um bilhete no bolso, com meu nome e número de telefone e
contas das redes sociais, para nos conhecermos melhor. Oxalá as inteligências altamente desenvolvidas já estavam
solucionando, pelo menos, meus problemas no amor.
Mas, como tem acontecido com meus escritos, eu
travei. Simplesmente, não tive coragem de lhe entregar.
(B. B. Palermo)