terça-feira, 3 de setembro de 2019

Cláudia, qual é o teu signo?



Doutor Biza convenceu-me a frequentar um centro mediúnico.
- Cadelão, tu precisa expulsar essa vontade louca de beber. E tem mais, me disseram, tu anda travado, não consegue escrever.
Ele tem razão. Estou bloqueado. E quanto mais penso nisso, mais a inspiração foge.
O Doutor jurou que no Centro as inteligências altamente desenvolvidas me desbloqueariam, já que os canais da criatividade são infinitos.
Aconselhou que eu devia, como todo mundo, evoluir, deixar de ser um serzinho egoísta, fuxiquento, orgulhoso e odiento, e ser mais solidário, mais empático com os irmãos  que comigo dividem o planeta.
Algumas vezes,  ingenuamente, sonhei ser algo como um médium, psicografar poemas e histórias de artistas malucos de inteligência hiper-desenvolvida que aqui passaram em outras vidas. Fico travado porque não me aprumo, um escroto, meus olhos são sensíveis demais diante das barbaridades que assisto, uma rotina de competição, desejo de acumular, de se exibir, de dar valor quase que absoluto ao corpo. Como não suporto conviver com essa merda, corro até o bar mais próximo.
Ainda acredito (sou ingênuo diante de vossos lindos olhos?) que vou "receber" inspiração para meu grande livro, o qual vai resolver boa parte dos problemas: dinheiro, garotas, reconhecimento. E o Doutor garantiu que, no Centro, eu terei progressos nisso também.
Só sei que eu estava lá, esperando a boa nova que o Doutor profetizou. Saturei depois do último fiasco, tropeços em garrafas espatifadas e cotovelos e joelhos esfolados pelos tombos no retorno do bar para casa.
Era sexta à noite, havia uma multidão procedente de centenas de lugares que ficavam a centenas de quilômetros dali. Novo cenário, que me fez esquecer as crises ambientais e políticas e econômicas e outras tantas que nosso planeta atravessa.
Mas não consigo superar meus conflitos com Deus. Quando me deparo com crianças pedintes nas esquinas, em vez de estarem na escola, e seus pais igualmente pedintes e sem perspectiva de futuro, eu pergunto: Deus, você não vai fazer nada? Sua resposta, um rebote em que a bola está a cento poucos por hora, me derruba: Cadelão, você está sendo chamado  a semear gestos de amor, estenda as mãos, exercite a caridade. Por que você não canaliza tuas energias para o aprimoramento de tua alma? O impasse com Deus continua, não sabemos de quem é a responsabilidade para solucionar os problemas desse mundo, então eu corro pro bar, apanho o jornal e vejo os resultados das loterias. E deliro, fazendo promessas de que, se acertar sozinho na mega-sena acumulada, vou distribuir boa parte do prêmio em caridade. Sei, sei, eu vivo de promessas, e uma delas, inclusive, é a de diminuir o consumo de álcool. Sim, sim, creio na bondade do divino, e espero não ser expurgado, mesmo fazendo tantas merdas nessa vidinha finita.

O atendimento mediúnico, num grande ginásio, seria no início da manhã do dia seguinte. Instalei-me numa pensão que até poderia lembrar campos de refugiados ou de concentração, mas o contexto era outro, todos ali buscavam saúde, vida em vez da morte, ao contrário da experiência nazista. Todos movidos pela seu livre arbítrio, e não enjaulados por governantes psicopatas. Era bem limpo e organizado, com crianças e jovens e velhos, humaninhos como eu em busca da cura e motivados pela fé.
No restaurante, alimentação adequada para doentes que fazem dieta. Nada de café e bebidas alcoólicas e lanches com carne vermelha. Apenas sopas com legumes e grãos e sucos naturais. Todos estampavam olhares cansados das longas viagens, com suas sacolas e mantas e travesseiros e cobertores. Observava o ambiente, meio que familiar, e me roía de vontade de correr pra um boteco qualquer.
Então troquei olhares com uma garota loira. Lá fora despencava um temporal. Depois, no dormitório, ao subir na parte de cima do único beliche que me restou, notei que a garota, a loira, dormiria no beliche ao lado do meu. Disse-lhe:
- Se não conseguir outra cama, posso dormir no ônibus. Não quero atrapalhar.
Ela falou:
- Não me importo, só deito pra relaxar e esticar as pernas. Não consigo dormir mesmo.
Umas cinquenta pessoas empoleiradas. Velhas e velhos, com a saúde debilitada, deitavam nas camas da parte debaixo. Alguns já dormiam, e não passava de nove da noite.
Encostadinhos, puxei conversa e a garota contou por que estava ali. Tratava de um câncer incurável, segundo os médicos. Ficou hospitalizada durante quase dois anos, suportando a dor e a fraqueza resultantes da radioterapia, e inclusive teve que usar bolsa de colostomia, por causa de um intestino furado durante o tratamento.  Era de Porto Alegre, bancária, "encostada" no emprego esse tempo todo, e o marido, no momento de sua maior solidão e dor, abandonou-a e partiu com outra mulher.
Já disse outras vezes, sou curioso, não é tempo perdido ouvir os dramas da vida das pessoas.
Depois de conversarmos por um bom tempo, a luz do dormitório apagada, me vi numa lagoa. Sapos coaxavam, em diferentes ritmos e sonoridades. Alguns mais angustiados, outros meio sofridos e até parecendo darem os últimos suspiros. Roncos mais próximos do fim, outros mais serenos e esperançosos.
Não conseguia digerir a história trágica que a garota narrou. Afinal, era jovem e bonita, eu não acreditava que Ela passou por tudo o que me disse.
Na parede, atrás do travesseiro onde Cláudia deitara, havia uma pequena janela basculante envidraçada. O clarão dos relâmpagos realçavam seu cabelo loiro, e eu me ligava naqueles olhos azuis irradiando vida. Bobo, perguntei:
- Cláudia, qual o teu signo?
- Chiiiiiii... Sossega, senhor Palermo, senão daqui a pouco eles vão acordar e nos xingar.
Rimos e eu passei a noite me revirando no andar superior do beliche. No outro dia cedo, no atendimento da multidão dentro de um grande ginásio, eu carregava um bilhete no bolso, com meu nome e número de telefone e contas das redes sociais, para nos conhecermos melhor. Oxalá as  inteligências altamente desenvolvidas já estavam solucionando, pelo menos, meus problemas no amor.
Mas, como tem acontecido com meus escritos, eu travei. Simplesmente, não tive coragem de lhe entregar.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Feitos uns para os outros



Ela disse Meu namoro já completou um ano
e vive cheio de perrengues.
Eu disse Não tenho ciúmes.
E perguntei Você não curte o poliamor?
Ela disse Tô sabendo, seu velho escroto,
e então riu daquele jeito kkk.

Sou um cara cheio de incertezas
e transpiro esperança.
Creio em anja da guarda
e na linguagem sutil do Divino.
E, repito, aposto numa relação triplex.
Entro onde o garoto falha,
dar flores, levar o cão pra passear
e juntar seu coco nas gramas dos passeios,
cuidar dos vegetais orgânicos,
dos grãos e dos cereais.
Porém, de vez em quando tomo meus porres
e me transformo num coroa devasso
e irônico.
Sei, sei, a relação em meses derreteria
como bolha de sabão.

Ela é comunista
e gosta das festas do padroeiro.
Sou inútil que tem orgulho do intelecto,
embora esqueça de todas as frases
que considerei importantes
dos livros que li.
Sempre choro por bobeiras
em dias de ressaca.
Tenho chorado muito.
Meus perrengues são outros.
Acredito no poliamor.

Minhas garotas aguardam
em algum lugar.
Como disse o poeta Cacaso,
fomos feitos uns para os outros,
agora só falta quem nos apresente.

(B. B. Palermo)


domingo, 25 de agosto de 2019

Todo mundo está latindo



Observe a bolsa de quatro mil reais nas mãos daquela senhora.
Observe a placa de "Vende-se" colada na parede do apartamento do quinto andar daquele edifício.
Observe a presença barulhenta dos crimes virtuais, muitas vezes envolvendo crianças e adolescentes.
Observe a caturrita que caiu da árvore, a qual foi retalhada pela motosserra. O pássaro teve uma asa estraçalhada e foi colocado numa gaiola e agora se esforça para aprender a linguagem dos homens.
Observe a garotinha paralisada diante do espelho por causa das espinhas no rosto.
Observe teus amigos e vizinhos obcecados com as séries de TV e tagarelando isso pela "falta de assunto" nas rodas de conversa.
Observe o vira-lata pirado recolhendo e escondendo dúzias de ossos.
Observe que muitos dos teus conterrâneos não têm capacidade ou interesse para cuidar de negócios.
Observe que as pessoas têm outros interesses, para além dos negócios e de acumular riqueza.
Observe que, assim como você, há mais sujeitos desprovidos de coragem, intuição e perseverança.
Observe que o conflito de gerações e a ruptura da juventude com valores estabelecidos ocorreu também em outras épocas.
Observe que sujeitos de gerações mais antigas compreendem as atitudes dos jovens e até se esforçam para se adaptarem ao "novo".
Observe a presença constante do ronco de betoneiras e retro-escavadeiras e motosserras e o canto dos galos ao amanhecer nos espaços urbanos.
Observe quantos velhos são cuidados por seus filhos.
Observe quantos velhos são abandonados como trecos inúteis em depósitos, esperando a morte.
Observe o desespero com que tentamos ser algo ou alguém, o esforço que fazemos para aparentar ser uma estrela ou astro aos olhos dos outros, sem poder disfarçar o sofrimento que nossos olhos irradiam.
Observe que as músicas que você cantarola em silêncio dizem muito sobre você. Mesmo que digam respeito ao teu mundo, o que alegra é que alguns outros também curtem isso.
Observe que todo mundo grita a sua verdade. Ah, e também observe que cada um carrega sua maçã do amor para ser leiloada.
Observe como o mundo é frio, cruel, calculista, enfim, estranho. Mas se você o percebe e não se acomoda diante disso, você não perdeu o que tem de melhor: a sensibilidade.
Você pode observar e relatar os fatos sem tirar conclusões precipitadas. Você pode ficar admirado ou chocado, alegre ou triste. Se você abrir mão de latir a todo momento, você vai alcançar o paraíso.

(B. B. Palermo)

sábado, 24 de agosto de 2019

Cadê minha liberdade de expressão?

Tem dias que a criatura passa dos limites e não consegue evitar uma confusão. E, além de bêbado, fica transtornado a tal ponto que ignora a possibilidade de no final, diferente das novelas e filmes, os conflitos não cessarem e todos (até os “bons”?) serem infelizes por um tempo. 
Foi o que aconteceu com o Beiço esses dias. Ao mesmo tempo em que desejava abraçar todo mundo, queria que eles fossem à puta que o pariu. Andava tão trágico como certo personagem de Gabriel García Márquez no livro Crônica de uma morte anunciada. Numa noite transtornada, deixou-me arrepiado diante do “trágico” e da “morte”. 
No bar do Geni, cheio de casais e adolescentes, entrou cambaleante falando a plenos pulmões em “xoxota”, “bundinha” e “trepada”. Na hora o Geni, forte como um pit bull, se coçou detrás do balcão. Aí eu disse: 
- Cara, fala baixo e não diz tanto palavrão. 
E ele: 
- Cadê minha liberdade de expressão? 
Então apontei na direção do balcão do bar: 
- Sabe o que o Geni esconde ali, ó? Um enorme taco de beisebol! 
E ele: 
- Ai que gostoso, adoro um taco!
A besta não sossegava, dirigia-se às mesas onde umas garotas bebiam e conversavam. Eu me perguntava se ele as conhecia. Dali a pouco retornava pra nossa mesa e comentava que aquelas garotas eram mal resolvidas, que não passavam de umas histéricas.
Passou a narrar seu plano de suicídio. Seria com uma moto de pelo menos mil e cem cilindradas. 
- Veja, Cadelão, como é fácil me matar. Em dez segundos, no máximo, chego a uma velocidade de duzentos quilômetros por hora, numa reta, e quando surge uma jamanta no sentido contrário miro bem no meio do para-choque e, numa fração de segundo, tudo estará resolvido. 
Disse isso e cantarolou “voar, voar, subir, subir, ir pra onde for...”. 
Eu falei: 
- Meu, você anda trágico. Brigou com a namorada?
Então ele cantou pra todo mundo ouvir: “Garçom, aqui nesta mesa de bar, você já cansou de escutar, centenas de casos de amor...”. Logo depois ele debochava: “O bobinho acreditou que penso em me matar hehehe!” E não sossegava: “Agora ficou claro para mim: o sentido da vida está nas putas”. Depois de outra dose de tequila: “O grande sentido da vida está numa putinha gostosa agarrada em meu pescoço sussurrando toda melosa ‘amore, amore, amore’”.
Nunca tinha notado o Beiço assim, tão TRÁGICO. Se de um lado ele dizia pra todo mundo no bar “obrigado”, “perdão” e “com licença”, de outro ele berrava “exijo respeito”, “você ofendeu minha honra” e “vamos duelar e um de nós vai morrer”. Então, em vez de começar uma luta mortal com o garoto de cabelo comprido e rabo de cavalo, sentado na mesa ao lado e que decidiu se intrometer, o beiçudo parecia implorar por um beijo. 
Depois de alguns minutos de sossego, devorando uma porção de batata frita, Beiço voltou à carga, isto é, disse num tom de voz que fez com que todo mundo se voltasse na nossa direção: “Hoje não quero o coração das putas, eu só quero a perereca!”.
Então eu providenciei nossa imediata retirada do bar. Foi um milagre o Geni, aquele enorme pit bull, não sair detrás do balcão empunhando seu bastão de beisebol.
(B. B. Palermo)

sábado, 17 de agosto de 2019

eddie e eve


você sabe
sentei no mesmo banco de bar por 5 anos na
Filadélfia

eu bebia álcool etílico e o vinho mais barato
apanhava nos becos de caminhoneiros bem-
alimentados
apenas para diversão de
senhoras e senhores da noite

nada lhe direi da minha vida de criança
é doentiamente 
irreal

mas o que quero dizer
é que fui enfim ver meu amigo eddie
depois de 30 anos

ele continuava na mesma casa
com a mesma esposa

deixo você adivinhar:
ele parecia bem pior do que eu

não conseguia se levantar da cadeira

uma bengala
artrite

o que restava a ele de cabelo havia
embranquecido

meu deus, eddie, eu disse.

eu sei, ele disse, me fodi, não
consigo respirar.

então sua esposa apareceu. aquela que uma vez fora a
magra
Eve com quem eu costumava flertar.
95 quilos
me olhando de soslaio.

meu deus, Eve, eu disse.
eu sei, ela disse.

ficamos todos bêbados. muitas horas depois
Eddie me disse,
vá para a cama com ela, faça-lhe algum bem,
eu já não sirvo para nada
mais.

Eve deu um risinho.

não posso, Eddie, eu disse, você é meu
chapa. 

bebemos um pouco mais.
infinitas garrafas de
cerveja.

Eddie começou a vomitar.
Eve lhe trouxe uma bacia
e ele vomitou dentro da 
bacia

me dizendo entre os espasmos
que nós éramos homens
homens de verdade
sabíamos as coisas de fato
por deus
esses moleques
não sabiam de nada.

levamos ele para a cama
tiramos sua roupa
e ele logo apagou,
roncando.

me despedi de Eve.
fui embora e entrei no meu carro
e fiquei ali sentado olhando para a casa.
então dei a partida.
era só o que me restava fazer.

(Bukowski, do livro "Queimando na água, afogando-se na chama".)

domingo, 11 de agosto de 2019

Deby, eu só queria te amar


Decidi gravar minhas histórias e postar num canal, no Youtube.
Dei sorte de conhecer o Wolverine, um fortão de trinta e poucos anos, maluco e cachaceiro, mas com uma voz grave daquelas.
A primeira gravação foi no meu celular, lá em casa. E adivinha quem apareceu nesse dia, como se fosse um meteoro: a Deby.
Nervosa, ela ia de um lado pro outro, até que abriu o jogo, queria que a ajudasse a vender uma geladeira e um sofá que ganhou de um velhinho da cidade de Jóia.       
Fiz uma piada besta: 
- Mas o plantador de soja, Aquele, não liberou a mesada? 
Ela me encarou com os olhos chispando, e não disse nada.
Como não dei bola, Ela foi sendo possuída pelo capeta. O puto do Wolverine serviu-lhe um martini com gelo. Ela foi pro banheiro e saiu de lá num biquini desse tamanho. Pegou uma mangueira na garagem e apoiou num galho do abacateiro do quintal e ficou debaixo daquele jato, cantando umas boemias.
Qual é a dessa putinha? Hoje, quando me ligou, disse que ia gravar com o Wolve. Aí ela vem correndo e, o que é mais punk, vestiu esse biquini e fica se engraçando pra nós dois.
Meu amigo espiava a cena debaixo do abacateiro, e não me vinha outra coisa senão implorar “Wolverine, foco, seu maluco!”.
Pra ele, a gravação poderia ficar pra outro dia, o que valia agora era a bunda da garota.
Pensei: de jeito nenhum vou topar a sacanagem de sexo a três.
A água descia feito cascata e acariciava aquela bunda gostosa e Wolverini cada vez mais excitado.
- Velho, a tatuagem nas nádegas é demais!
- Volta aqui, filho da puta, vamos gravar essa bosta.
- Velho, aquele biquinizinho é demais!
Que merda. 
Parti pro plano B: convidei eles pra irmos até o bar do Geni. À noite meu time disputaria a semifinal da Libertadores contra um time do Equador.
Wolve e Deby sentaram juntinhos, de gracinhas e segredinhos, e eu fazia de conta que não estava nem aí.
Fodam-se. Hoje só quero saber de futebol e encher a cara.
Os dois ficaram naquele tititi e eu "não tinha" ciúmes. E o Geni me encarando, se eu de novo ia pendurar a conta.
Aí Ela falou:                                                                    
- Ele só me chama quando tá a fim de trepar.
Começou o jogo e logo meu time levou um a zero.
E ela:
- Cadelão é um egoísta. Não dá a mínima pro sentimento de uma princesa.
Meu time não acertava dois passes e não passava do meio campo. Deby partiu pro contra-ataque:
- Ele fica se achando, mas te garanto, é igualzinho a todo mundo. Óbvio demais.
Caralho, nosso jogador foi expulso. Pensei: Ela deixa de ser óbvia quando bebe, fode com o primeiro que aparece.
O time numa retranca danada, quase levou dois a zero.
Outra estocada da putinha:
- Eu já saquei qual é a desse bêbado escroto: tem medo de gostar de alguém e sofrer.
Nos acréscimos, meu time quase levou o segundo gol.
- Se o filho da puta começa a gostar de uma mulher, ele foge.
O juiz acrescentou mais dois minutos.
Aí Ela deu uma voadora e eu beijei a lona:
- Esse pau no cu não tem colhão pra admitir que gosta de mim!
Pendurei a conta, peguei o Monza e me escondi na penumbra de um barzinho qualquer do outro lado da cidade.
Quando Wolverine me ligou no início da tarde do dia seguinte, naquele tom de voz dramático, eu já sabia como a noite deles havia terminado.

(B. B. Palermo)

(* O título desta história é inspirado na música "Oh! Deby", da banda TNT).


sábado, 10 de agosto de 2019

ei, dolly - Bukowski


ela me deixou há 5 semanas e foi para Utah.
é isto, acho que ela se foi.
dias atrás saí para mandar uma carta para ela
e a vi sentada no banco da parada de ônibus,
era o cabelo dela lá
de costas
e todo peso desabou de novo sobre mim
apressei o passo e olhei para o seu rosto - 
era outra pessoa. sardas, nariz chato, olhos verdes,
nada, nada.

então segui pela Western Avenue indo de bar em bar
e voltei a vê-la na minha frente.
vi aquelas calças coladas, eu conhecia aquele rabo,
e lá estava aquele cabelo de novo,
e o jeito dela de caminhar,
apressei o passo para alcançá-la,
cheguei ao seu lado e olhei seu rosto - 
um nariz de índio, olhos azuis, uma boca de sapo - 
nada, nada, nada.

então havia uma garota num bar tocando piando.
não era ela mas quando o cabelo caiu de certa
maneira,
por um momento, era. e o cabelo tinha o mesmo
comprimento
e os lábios eram parecidos mas não os mesmos, e
ela me viu olhando-a enquanto cantava, eu estava
bêbado,
claro, ajudou a criar a ilusão, e ela
disse há alguma em especial que você queira ouvir?
Dolly, eu disse, e ela cantou - 

Ei, Dolly...

agora mesmo olhei e ela estava do outro lado da rua.
ela saiu do prédio do outro lado da rua
com um cara loiro e jovem e ficou lá parada de óculos
escuros,
e eu pensei, o que ela está fazendo do outro lado da
rua de
óculos escuros, e sua risada para mim atravessou a
janela
mas ela não me acenou e então entrou no carro com o 
jovem, era um carro novo, pequeno e vermelho, caro,
e eles seguiram na direção oeste. desta vez tenho
certeza
que era ela.

Bukowski. Do livro "Queimando na água, afogando-se na chama").

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Beber mijar paquerar




Garota, tudo bem você falar do pó e da sujeira na casa da fulana, das manias dos patrões e das conversas ríspidas entre familiares nos lugares onde você trabalha.
Em algum momento você precisa transcender. Pouco importa se você é diarista ou advogada ou empresária.
Você precisa subir, subir, e embarcar no sonho de Ícaro, nem que seja com um baseado dos bons.
Você precisa se inquietar e sacar que a vida não é só trabalho, fofoca, ruminar a todo instante os sete pecados capitais - que só os outros cometem, claro.
E, por favor, mantenha distância da TV e das novelas.
Sempre digo pro Beiço que a melhor hora pra mijar ao ar livre nos fundos de casa sem ser notado pelos vizinhos é quando passa a novela na TV.
Caralho, é batata, o povo simplesmente fica hipnotizado diante do aparelho. Eu podia andar pelado pela rua, eu podia plantar bananeira diante do salão da cabeleireira gostosa. Eu podia...
Não serei flagrado se estiver no ar o capítulo da novela. Cabeças imóveis, olhos vidrados e espantados pela performance da vilã. Nossa, as velhinhas quase desmaiam e as novinhas roem as unhas.
Cabeças paralisadas, como se fossem esculturas, mortas como muros ou grades. Início da novela, fim da novela. Porra, odeio essa magia rasteira, de telespectadores encantados. Danem-se se isso funciona muito bem. Foda-se a linearidade. Não estou nem aí se a fórmula é repetida porque sempre dá certo.
Em vez da TV, à noite eu boto uns caras pra tocar, tipo Zé Ramalho ou Bob Dylan ou Belchior ou alguns malucos do blues nacional. No início Eles estão devagar, mas é só aumentar o ritmo das lambiscadas no copo de cerveja que o talento deles começa a fluir.
Então lembro da amiga que mora na Alemanha, e esqueço do fuso horário, e mando e mando pra Ela os links das músicas dos caras. É que a garota diz que curte as loucuras do Cadelão, e eu curto seu signo e seus papos sinceros, seu cabelo e sua voz.
Mas nossos horários não fecham. Deus não é perfeito, limitou-nos ao fuso horário. Já disse pra Ele, Tua Física me decepciona, meu brother.  
Horas antes de começar meu tour pela cerveja Ela está entorpecida pela tequila. Chama-me no Messenger quando está de pijama e embriagada, e eu aqui apenas rabiscando meus escritos em copos cheios.
Manda seus áudios divertidos com aquela voz linda e eu percebo a alegria com que o álcool drena suas histórias. É Brahma Extra, é puro malte, é Raiska, é blues no Bluetooth e vídeos picantes no WhatsApp.
Grande amiga, embora nos conheçamos apenas no mundo virtual. Parece estranho eu sentir a necessidade de conversar com Ela. Tem a ver com o fato Dela um dia  ter comentado que se diverte pra caramba com as maluquices do Cadelão, e que suas histórias lembram de outro velho safado que Ela gosta, um tal de Bukowski.

(B. B. Palermo)

sábado, 3 de agosto de 2019

Por favor, Dona Flor, aceita teu marido de volta, aceita



Estava no bar do Telmo lendo jornal e bebendo algumas. Daí a pouco chegou um grupo de mulheres, duas delas com seus maridos. Um dos casais carregava um bebê de uns seis meses. Imaginem a operação envolvida pra se levar um bebê num jantar de amigos num bar, numa noite de inverno. Carrinho, cestinho, cobertores de lã, sacola com fraldas e mamadeira, etc., etc.
O brinde do reencontro foi pelo aniversário de uma amiga e, claro, com várias fotos para postar no Facebook.
Eu tentava escrever um poema para uma garota que trabalha numa confeitaria, perto de minha casa. Todo o dia queimo minha grana com sanduíches e doces, só pra vê-la se engraçar. Ela se exibe parecendo rir de minha cara mas, como me transformo num palerma quando me apaixono, não percebo nada.
O bebê choramingou.  A mãe falou pras amigas: “Ela não faz cocô há dois dias”. Disse uma outra: “Você precisa comer mamão. Essa fruta é laxante. Com a amamentação, isso passa pra criança. Vai fazer cocô logo logo”.
A mãe então lembrou de um episódio quando voltou a tomar cerveja, depois do período de gestação e da quarentena. “Fomos jantar fora. Tomei umas cervejas com meu marido. Em casa, antes de dormir, amamentei a nenê. Vocês não imaginam. Ela começou a rir que não parava mais. Pegou no sono às três da manhã!” Disse uma outra: “Criatura, você embebedou a criança”.
Como não tinha jeito de não ouvir o que conversavam, pedi outra dose pro Telmo. Uma das amigas foi até o carrinho e pegou o bebê no colo. “Nossa, parece chumbo!” A mãe disse: “Ah, não exagera”. “Dê pra ela meio comprimido de laxante. Logo, logo ela fica bem levinha”.
E foi assim que a inspiração ficou pra outro hora. Daí a pouco entrou no bar, meio desnorteado, um amigo meu de beber umas e outras em algumas espeluncas da cidade. Com aquela cara, pressenti que algo tinha acontecido. Fiz um sinal pra que bebesse comigo. Eu levo jeito pra psicólogo. Isso, gosto de escutar as pessoas contarem suas paranoias e tragédias, e o Flori me parecia com cara de trágico.
“Daí, meu amigo! Que cara é essa?” “Minha mulher meteu o pé na minha bunda”. “Putz... O que você aprontou dessa vez?” “Nada demais. Cara, tô casado há quinze anos. Juntos, construímos uma linda história. Temos nosso menino, o Pedro Geromel, e também um cachorro, o Cebolinha”. “Mas, assim do nada, tua mulher não ia te botar pra fora de casa”.
Então ele contou em detalhes o episódio que desencadeou a crise do casamento. Num sábado, depois do expediente, encontrou alguns amigos e decidiram conversar e tomar algumas cervejas. Estendeu-se, o dia passou rápido nesse sofrimento que é ir de bar em bar. A noite avançou, novos amigos, histórias de amores, festas e aventuras, e o MEDONHO esqueceu-se de voltar pra casa. Foi com a turma a um baile, num bairro da cidade.  Ele tentava me convencer, e concordei, de que essa fraqueza, por si só, não tem tanto poder para sacudir as bases da lei e da ordem do sagrado matrimônio. No dia seguinte, porém, na hora de colocar os fatos em panos limpos, meu amigo disse à esposa que chegou tarde porque havia sido convidado pro aniversário do filho de um amigo. Lá, o jogo de canastra invadiu a madrugada.
No baile Flori ganhou um prêmio. Nossa, Ele que nunca ganhou nada em sorteios, durante a vida toda! Era um frango assado, patrocinado por um mercadinho do bairro.
Dada a quantidade de cerveja que lhe subiu à cabeça, esqueceu-se completamente do galináceo. O baile foi um sucesso, e na segunda-feira pela manhã uma emissora de rádio anunciou os ganhadores dos brindes sorteados.
Pro seu azar, a esposa sintonizava aquela emissora, naquele instante.
Acusado de mentiroso e infiel, e pra dar uma resposta à altura dos anseios de familiares e amigos, Dona Flor botou a criatura pra correr. Arrependido, e morando de favor na casa de um parente, ele sente falta da esposa, do filhinho e do cachorro, sua pátria e porto seguro.
“Cara, fiquei tocado com tua história. Acho que isso não é motivo suficiente para acabar um casamento”. “Quando entrei no bar e te vi, fiquei pensando...” “No quê?” “Você, que é escritor, podia bolar uma carta pra convencer Flor a me aceitar de volta. Pode ser uma carta anônima”. “Hum, posso criar um pseudônimo”. “Faço um churrasco e ainda te pago meia dúzia de litrões se a carta convencer Flor a me perdoar...” “Fechado”.
No dia seguinte escrevi uma carta. Dizia assim:
Dona Flor, não necessito da sabedoria de um guru para afirmar que os dias atuais são muito perigosos.  Em cada esquina surge um anjo mau disposto a colocar minhocas em nossa cabeça, e levar nossos amores à perdição.
Cabe lembrar à senhora de que nem Flori, nem qualquer outro homem, funcionam como relógio suíço: certinhos, previsíveis, totalmente ajustáveis. Aliás, nem os homens nem as mulheres.
Para não ser acusado de machista, vou citar algumas frases ditas por mulheres, no livro “O amor de mau humor”, de Ruy Castro, com o objetivo de fazê-la mudar de ideia e aceitar seu marido de volta.  
Embora madame Stael diga que “o amor é a história da vida de uma mulher; e um episódio na vida de um homem”, convém prestar atenção no conselho de Dorothy Parker: “Conserve os dedos abertos... e o amor fica. Feche-os, e ele se desprende”.
Marido é coisa séria, dona Flor. Diz ZsaZsa Gabor: “Maridos são como fogo: extinguem-se se não forem atiçados”.
Quanto ao casamento, este nem sempre representa o paraíso. Diz Dra. Joyce Brothers: “O casamento não se compõe apenas de uma comunhão espiritual e de abraços apaixonados; compõe-se também de três refeições por dia, lavar a louça e lembrar-se de pôr o lixo para fora”.
Sem querer desanimar-te nesse sonho de manter reto o teu casamento, veja o que disse Helen Rowland: “Quando uma garota se casa, está trocando a atenção de muitos homens pela desatenção de um só”.
E para dividirmos as responsabilidades a respeito das dificuldades no casamento, diz Mae West: “Nunca pergunte a um homem por onde ele andava. Se não estava fazendo nada errado, não precisa de álibi. E, se estava, a culpa é sua, minha filha”.
 Dona Flor, Flori precisa muito de você. Tanto é que veio a público, como se esta carta fosse sua serenata e buquê de flores, para dizer-te o quanto te ama.
Depois dos puxões de orelha, o que seu homem mais precisa é de colo. Portanto, aceite-o de volta, abra-lhe as portas e acolha-o na segurança do teu abraço. Não se sinta humilhada; parafraseando François Truffaut, saiba que, no amor, vocês mulheres são profissionais, enquanto nós, homens, somos amadores.
Meu amigo colocou a carta anônima no correio dois dias depois. Antes do final de semana seguinte Flor o aceitou de volta, mas com algumas ressalvas, que ele preferiu não narrar.
Além da meia dúzia de cervejas e do churrasco no bar do Telmo, ele apresentou sua esposa ao autor da carta. Nesse momento tive consciência de minhas dores interiores... Quer dizer, gosto de ajudar a curar as dores de amores dos outros, mas não consigo ME AJUDAR. Por que será, hem meus amigos?
Ali, diante-daquela-flor-de-li-ca-dís-si-ma, fiquei louco pra narrar minhas leituras de Nelson Rodrigues, de que não amamos na presença, e sim na falta e blá-blá-blá... Porém... Ela disse que serei um escritor famoso. Então paguei mais uma dúzia de cervejas. Todos ficamos bêbados, cantamos abraçados e desafinados e fomos felizes por algumas horas.

(B. B. Palermo)

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...