terça-feira, 16 de junho de 2020

Leio poemas para os cães




Nos seus melhores dias,
a garota falava:
"Eu não consigo me apaixonar por homem
que me paga.
É muito físico.
Acaba não rolando sentimento".

Hoje os boletos se acumulam,
e é grande a incerteza
quanto ao dia de amanhã.
Mas uma hora ela volta a estudar.
Vai fazer pós.
Prometeu a si mesma
que não vai ser
a boazuda
burra
de alguém.

Ela não faz ideia de que está
com um cara
que se acha um fracassado,
que extraviou seus sonhos
de ser grande,
que tudo o que fez na vida foi correr atrás
de boceta
e escrever poemas ruins.

(Acreditem,
ao dizer palavrão
estou praticando minha
mais verdadeira forma
de transgressão).

Hoje Cadelão quer apostar no aprimoramento intelectual
do seu amor.
Apostar que ela ainda vai ler e compreender uns aforismos
do Nietzsche.

Ela se parece com a Macabéa
da Clarice Lispector.
A sonhadora quer um dia ser estrela.
Uma cartomante vai acertar
na previsão do seu futuro 
redentor.

Enquanto não desfila
no tapete vermelho,
permanece comigo.
Dois sonhadores,
invisíveis
aos olhares do mundo.

Ela faz as unhas,
eu quebro ovos e frito
e encho nossos copos.
Ela espreme outro cravo,
corre deixar os panos de prato de molho
pra o dia seguinte,
eu penso nos livros que não li
e contemplo a bandeja com frutas
quase podres.

Estamos atentos
e tensos e fodidos 
como lebres,
atravessando a freeway.
Temos planos e sonhamos,
pouco importa o cio dos carros
e a solidão do trânsito.

Agora ela vê a novela
e meus olhos estão vermelhos
e é apenas a bebida.
Vou para o quintal
e leio poemas para os cães,
eles uivam e sentimos
verdadeiramente 
que algo nos agrada.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Nego bom não se mistura


Sou Cadelão romântico, mas não me critiquem, não ergam as patinhas, não sou tão bobo assim. Tenho certeza de que ela deu mole, juro que não é viagem de meus neurônios enferrujados. Mas não vou narrar para vocês a conversa surreal que tivemos no privado.
No dia de seus 20 e poucos, postou no Face: "Ela amadureceu... Agora ela sabe o que quer" - junto com aquela foto de atrair garotões ensandecidos. Imagina, quer pregar a moral de que agora ficou madura, não vai mais fazer as tais burradas.
Gente, vi esse filme dezenas de vezes, em dezenas de cinemas. Sei como operam essas criaturinhas lindas e frágeis. Babei, sim, com aqueles olhos verdes, e os contornos daquela  boca chupando bergamota e imaginei-a olhando-me demoradamente e insinuando "vai encarar, Cadelão?".
Admiro seu amor pelas crias, de pais diferentes, e que todo mês ela puteia fazendo estardalhaço nas redes sociais, porque os imbecis atrasam o pagamento da pensão.
Fico imaginando possibilidades, como seriam nossos encontros. Enquanto isso, nada de inspiração para teclar, aí eu entorno mais um gole de ceva. Não a conheço pessoalmente, mas estou convicto de que acrescentaria um tanto na sua vida. Sério, dar-lhe-ia visão de mundo, cultura, abriria sua mente para coisas mais nobres, além de conduzi-la em direção à nova garota, que jura que amadureceu. Ah, além disso eu a faria transcender o desejo de se apaixonar e dar pra uns garotos babacas e meses depois aparecer chorosa e barriguda.
São motivos singelos mas suficientes para logo correr pro bar e encher a cara. Apanho a carteira e a razão, numa atitude desesperada, me sacode, e invoca o sujeito reto que fui há alguns séculos atrás. Aí, boto música barroca pra tocar. Meu déficit de atenção me arrasta até o banheiro. Olho para o espelho, numa derradeira tentativa, e digo pro cretino que aparece do outro lado "tu prometeu que hoje não...".
Adoro bar, mas há um medo de aglomeração, ainda mais com uma gente estranha circulando entre as mesas de sinuca. Sempre chega algum maluco meio alto, que está voltando de alguma festa, ninguém duvida que abraçou alguns pesteados, e se aproxima e quer apertar a mão de todo mundo.
No banheiro do boteco, acendo a luz com o cotovelo, evito tocar a maçaneta, empurro a porta com o pé e, depois de mijar, não dou a descarga nem chego perto da torneira. Ao retornar esfrego as mãos com farto álcool gel e depois cheiro demoradamente e aí, sim, desfila diante dos olhos o sentido da vida.
O dono do bar, o Maneta, faz questão de mostrar quem é que manda no pedaço. Na faixa dos 50 anos, ele diz: "A nossa geração é só por Deus! Nós somos velhos, não temos mais que curtir esses Creedence e Scorpions e Pink Floyd. Vamos curtir Mano Lima e Baitaca, e deu...". Penso, mas não digo, "sim, tu tá certo, seu bobinho, nossas patroas não querem mais foder, só querem igreja, e veja lá...". Maneta é bom em jogar pra cima e repetir e se alegrar com versos de algumas músicas. "Nego bom não se mistura". "Não tá morto quem peleia". "Não podemos se entregar pros home".
Fazer o que, ele é o dono do bar, da conexão de wi-fi, do noty e da caixa de som, é ele quem controla os freezers abarrotados de cerveja gelada. Tá bem, tá bem, ele não controla a dona gastrite que quer virar úlcera, que quer virar câncer, e ele sabe disso e bebe e fuma como um ressuscitado. E nós, vermes, rastejamos por essas espeluncas, enchendo a cara para espantar a deprê e a solidão.
E quase sempre aparece um daqueles empresários que exibe a carteira e uma dúzia de cartões de crédito e diz que poderia dar um golpe de milhões com empréstimos, e os da turminha em volta concordamos que é o momento, e digo que isso é mais justo do que praticar pequenos estelionatos e foder ainda mais uns empresários falidos. Sim, é dar um único golpe, certeiro, nesses bancos imperialistas e sugadores do Estado, que não dá pra ficar satisfeito em viver no futuro com a merreca de uma aposentadoria. Fico empolgado com a ideia e gesticulo, "é isso, eis a melhor saída, é o momento de fazer algo bem no estilo de Robin Hood". Mas o meu amigo empresário diz que, se der um golpe, vai curtir a via no Paraguai. Percebo o quanto sou bobinho, sensível com as camadas mais pobres da população, pensando na distribuição de renda e tals...
Vida que segue. Os cretinos não me dão bola, estão agora discutindo futebol.
Um gato preto sobe no muro, ali ao lado, e fica me encarando. Minha máscara que está no bolso começa a queimar, é hora de voltar para casa. Ao pedir a conta, chegam no bar o doctor Biza e o Damo do cachorrinho. Doctor pediu um litrão, acendeu um cigarro, disse que vinha de uma consulta e queria ouvir a opinião do poeta sobre umas coisas muuuuito importantes. Mas essa já é outra história.

*Esta é uma historinha de ficção. Por favor, controle teu alcoolismo e FIQUE EM CASA.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Cadelão do gás



Eu queria enfeitar meu poema
com singelas metáforas,
afastado o que puder
das dores do mundo.
Mas não, preciso garantir meu leite
no bar
e, vejam só, aqui estou, ofegante,
fazendo entrega de gás.

Desconto, todos querem desconto,
e repetem que os tempos estão difíceis.
Não posso fazer concessões,
são ordens do patrão.
Então desconto no poema,
mergulho ele na lama
meu amor se alimenta do ódio
vivemos de tapas e safanões.

Eu queria escrever uma mistura de sentimentalismo ingênuo
com autoajuda,
pois renderia alguns trocados.
Queria ser alquimista dos sentimentos elevados,
chover flocos de algodão-doce nesta humilde cidade.
Eu queria escrever poemas tão bonitinhos e mágicos
que transformassem putas em madames.
Mas não! eu preciso ir correndo levar o gás,
que a patroa grita, nervosa,
a empregada não pode atrasar o almoço,
e minhas botinas estão emporcalhadas
e ela manda tirar na entrada
pois carregam a sujeira do mundo
e ela mora num lugar puro e superior.
Inconformado, eu fico quieto,
pra não ferir seu monogâmico tédio,
é uma burguesinha de merda
que bebe vinho de 70 reais a garrafa,
e que pede desconto no gás.

Eu queria escrever um poeminha metafórico,
como se fosse um pônei de filhinho de rico,
que acaba de sair do pet shop.

Os puteiros estão quebrados e pedem
desconto.
As igrejas me empurram Deus com 60 dias de prazo
pra entrada do dízimo
e pedem desconto no gás.
Desconto! Desconto!
Quem nada ganha com isso é meu poema
carente
de efeitos especiais.

O fogão da funerária precisa funcionar,
está morrendo gente e lá estou,
macacão surrado e botijão nas costas,
faço uma reverência ao finado,
pálido e impassível no caixão,
enquanto me dirijo até a cozinha,
pra dar minha singela contribuição:
garantir o café e o chimarrão desses vivos
que finalmente elogiam o morto.

O melhor lugar do mundo pra deixar meu gás
é numa boca de fumo.
Me tratam bem, não me pedem pra tirar
as botinas sujas,
até convidam pra um baseado.
Eis um templo sagrado da cidade.
Eis o paraíso, o mais visitado e o mais proibido.
A cidade necessita do gás como do pó.

Eu queria escrever poemas enfeitados,
mas tenho que correr o dia inteiro
pra dar energia a esses lares,
e ainda tenho que arranjar uns trocados
pro bêbado do bairro fazer sua combustão,
e naufragar na cachaça e compartilhar
comigo a gangrena prazerosa
do seu vício.
Ontem bateu o desespero:
seu pai morreu.
Deus morreu.
Meu poema ressuscitou da lama,  
divide comigo a Santa Ceia,                 
e estamos manchados de vinho.

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Prometo uma inesquecível tarde de amor



Abri as fotos no celular,
ampliei seu tamanho
e saltitaram diante dos olhos
poses sensuais
em diversos cenários de seu lar.
Ombros e coxas e rabo,
nuns ângulos incríveis,
e também braços
e panturrilhas tatuadas
e, desconfiei, meia calça tatuada.

Experts em moda,
mais um desafio
para modelos plus size
conquistarem as passarelas.

Cadelão provinciano que sou,
imaginei o fotógrafo,
o escultor e o arquiteto e
o açougueiro afiando
suas ferramentas,
dando forma àquele corpão,
provocando insights malucos
de nutricionistas moderninhas.

Cadelão romântico que sou,
imaginei a estrela no camarim,
embelezada pelo maquiador,
bajulada pelo diretor,
seu fã clube bombando nas redes sociais,
milhões de seguidores no Instagram.

Quem te preparou,
quem te conduziu para o altar,
quem te deixou assim
donzela para o amor?
O amor de tua vida,
numa noite qualquer,
numa transa qualquer,
em cima da mesa de jantar
da casa de um amigo,
de madrugada e de quatro,
numa aventura fantasiosa...

Baby, não sou ninguém,
não ligue pro meu papo,
mas carne explícita afugenta
deuses príncipes,
candidatos a "homens de tua vida".
Sensualize detalhes
que a maioria nem percebe,
como o tesão de tua voz
declamando um poema
romântico.

Aposte na doce voz
de tua alma,
deixando paus assanhados,
que desafiam durante horas
a gravidade.

Seja ousada, meu amor,
ainda há carinhas sensíveis,
"amantes à moda antiga".
Não te deixe exibir
e padronizar,
como se fosses bisteca,
costela e picanha e chuleta...
num balcão de açougue.

Acorde, baby,
acorde a leoa que berra
sufocada
dentro do teu ser.
Seja ovelha desgarrada,
dê uns safanões
na maria-vai-com-as-outras,
ria da piriguete,
manda um foda-se pra marionete,
corra, venha logo pro meu cantinho,
enrosca-te na velha cama,
nem que seja uma única vez,
prometo uma inesquecível tarde
de amor.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Notas de um velho safado



Apenas no início da tarde 
do outro dia,
percebi que o livro 
"Notas de um velho safado",
que nos últimos tempos 
tem feito companhia
me observando sobre a mesa,
estava com boa parte das folhas
umedecidas
pela cerveja que eu derramara
na noite anterior.
Não teve outro jeito:
abri e o pendurei
atrás da geladeira.
Em algumas horas 
o Bukowski
ficou seco
e quentinho.
Será que o filho da puta 
merecia
tantos cuidados?

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Essas canções são a cara de milhões de sonhadoras como tu

Finalmente, quando prometi namorar, 
ela veio com tudo e esfregou na minha cara
um pacote completo:
a flor-de-clitóris, úmida e suplicante,
e o catálogo de suas performances.
Aprendera direitinho algumas lições do kama sutra.
Não foi tudo aquilo, mas foi bom,
e nos sentimos em casa.

Sequestrou o espelho do quarto,
desfilaram flores e lingeries
e estremeceram os pilares de minha pessoa.
Para impressionar, mostrou a cicatriz
na nádega esquerda
e disse que fora mordida por um pitbull.
Eu não soube se era real ou metáfora,
mas a cicatriz estava ali,
uns contornos de uma bocona,
diante de minha visão arrepiada,
como se eu acabasse de desembarcar em Marte,
e havia multidões de serzinhos aguardando
pra me chamarem de covarde,
e, milagre, naquele dia havia  
poucas nuvens no céu
e muito sol.

É apenas a primeira cicatriz -pensei, e me apavorei.
Logo chegarão outras, parentes distantes,
umas tias raivosas e vingativas.
Gelei ao imaginá-la possuída,
abafando com velhos cobertores
incêndios de seu passado,
cicatrizes ou sinais que psicólogas chamam de "traumas".

Até quando o Cadelão suportaria?
Sejam compreensivos, meus irmãos.
E foi assim, mais uma vez,
que acendeu a luzinha do painel
de meus temores.

Também penso no futuro,
enquanto coleciono dúzias de fiascos.
Também quero envelhecer bem amparado,
de preferência dispondo de um bom estoque etílico.
Sim... Álcool. Para suportar as dores do mundo.

Eu ainda me apego à vida material.
O emprego, o consórcio do carro,
as comidinhas bem temperadas,
batidas de cachaça e vodca e catuaba e licores
e tudo o mais que fazem suportar anos e anos
de dedicação exclusiva ao meu amor.

Porém, o seu dia a dia me faz balançar:
aquele cuidado com os astros,
e o olhar atento aos sinais do zodíaco.
Os poemas preferidos,
as canções populares
que a fazem suspirar:
"Nossa, essa letra é a minha cara!",
"Quando ouço essa música passa um filme na minha cabeça!".
Eu não devia dizer-lhe, mas não suporto a real, e disparo:
Sei, baby, essas canções são a cara de milhões de sonhadoras como tu...
Umas pobres inocentinhas que não acordaram pra vida.
É o suficiente pra que a tampa de uma panela
exploda meus cornos,

e de novo eu perambulo solitário por aí.

(B. B. Palermo)

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...