Não seja bobo, Cadelão, desista de afiar a realidade
como se fosse arma branca pra te proteger dos perigos.
Talvez a realidade seja um aquário,
tua pátria,
teu meio de fuga,
tua válvula de escape,
a úlcera no teu estômago,
o guindaste que vai botar de ponta cabeça tuas crenças.
Tu é um peixinho indefeso na mira de predadores perversos.
Tu se prende facilmente às ratoeiras dos noticiários
e ao bombardeio do bando que te quer igual,
e te torne pacato quanto eles,
desejando converter a natureza implacável
que lhes é indiferente.
Meu, não há salva-vidas para todos,
e tu não é milionário, ao contrario,
tu és um lerdo e animado chinelão.
Já estivemos juntos nuns acampamentos hippies,
rolava maconha, sexo e nenhum estresse.
A vida era simples,
não se agredia o planetinha,
bastavam nossos copos,
nossos corpos,
nosso baseado,
nossas canções.
Odiávamos juntar patrimônio,
o barato era transcender.
Cadelão, parece que hoje as coisas fermentam e crescem,
e logo se retraem e cheiram a podre,
como bueiro de esgoto entupido.
Somos especialistas em pesquisar e compartilhar tragédias,
e os arquivos de nossos smartphones estão transbordantes
de vídeos e fotos e tantas outras merdas.
Ambíguos, temos fé e rezamos, e cremos sinceramente
que na hora do botar pra foder
Deus vai nos estender a mão.
Toupeiras racionais, adoramos ser românticos.
Até parece mentira que - nessas cruzadas de ódio
que vivemos uns contra os outros -
ainda perdemos tempo perguntando e escrevendo tratados
sobre o que é a felicidade,
o amor,
a ética.
Esquece, Cadelão, é perigoso afiar a realidade
como se fosse arma invisível
para te proteger dos perigos.
A cretina já tomou posse
de tua conta bancária,
de tua alma,
dos teus nervos
e do teu coração.
(B. B. Palermo)