terça-feira, 27 de setembro de 2011

O vaivém

  
Zuza era um velho que trabalhava como carpinteiro.
Sua oficina estava sempre limpa, e as ferramentas eram bem cuidadas  e guardadas no seus devidos lugares.
O velho tinha a mania de batizar cada ferramenta com um nome.
O martelo chamava-se toc-toc, o formão rompe-rompe e o serrote, vaivém.
Quando um vizinho precisava de uma ferramenta, corria logo até a oficina do velho Zuza, para pedir emprestado. 
mas eles aprontavam ao velho, demorando pra devolver, ou até ficando com as ferramentas. Por isso o velho resolveu não emprestar mais.
Certo dia um menino, a pedido de seu pai, foi até a oficina, e disse:
- Papai pede para que o Senhor empreste o vaivém.
O velho Zuza fez uma carranca e respondeu assim:
- Menino, lembra do antigo ditado: "Mão vai, mão vem. Mão vem, mão vai. Mão vai, mão não vem, mão não vai mais!"?
E arrematou, dizendo pro guri:
- Volta e diz ao teu pai que, se vaivém fosse e viesse, vaivém ía, mas como vaivém vai e não vem, vaivém não vai! 

(Adaptado do livro Contos populares brasileiros, de Lindolfo gomes).

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Causos do Nono

Meu pai, Seu Carleto, levava uma vida exemplar. Se algum amigo ou vizinho saía da "verga", ele era chamado pra colocar as coisas no lugar.
Qualquer desavença familiar, briga de marido e mulher, ou algum vizinho ou conhecido que "loquiou", seu Carleto logo era chamado.
Um dia o filho do Bépi veio contá que seu pai tava variando. Pensava que era metade gente, metade animal. Era um vivente tranquilo, com seu palheiro e o mate, sua fala mansa. Mas ultimamente tinha um comportamento estranho. Meu pai quis saber detalhes do caso:
- Que animal ele pensa que é?
- Cavalo.
- Que metade?
- A de baixo.
Curioso, meu pai foi visitar o Bépi. Era hora do lanche da tarde, e o o Bépi mastigava seu milho.
- Buenas tardes - disse meu pai - um cavalo meu fugiu, e acho que veio pra essas bandas.
Bépi duvidava muito de que um cavalo de meu pai estivesse nas suas terras. Mesmo assim saíram para o campo. Meu pai a cavalo e seu Bépi trotando do seu lado. Olharam toda tropa. E então meu pai começou a examinar o Bépi de cima até embaixo.
- Tá me examinando por que? - perguntou seu Bépi, desconfiado.
Aí meu pai falou:
- Acho que tô reconhecendo meu cavalo.
- Tá louco? Eu sou o Bépi!
- Só até a cintura.
- Pra baixo trambém é meu!
- Então mostra a marca!
- O quê??
- Quero ver a marca na bunda. Se não tem marca, então é meu!
Discutiram uns minutos e, no fim, seu Bépi se convenceu de que não era metade cavalo. A família suspirou aliviada. Não aguentava mais a bosta no tapete!

***

Na hora de explicar uns acontecimentos estranhos, que deixavam todo mundo de queixo caído, meu pai recorria a um punhado de provérbios. Eis alguns deles:
"Mate e china, quanto mais novo, mais quente".
" Hai mil regras pra comê mas nenhuma pra cagá".
"Pra segurá mulher em casa e cavalo em campo aberto, só carece de um pau firme".
"A gengiva não morde mas segura os dente".
"Puro-sangue ou bagual, a bosta é igual".
"Meleca de rainha é igual à minha".
"Roda de carreta chega cantando e se vai gemendo".
"Mas vale ser touro brocha que boi tesudo".
"Más sagrado que Deus e a mãe, só dívida de jogo".
"Más triste que tia em baile".
"Cavalo de borracho sabe onde o bolicho dá sombra".
"Marido de parteira dorme do lado da parede".
"Viúva moça é como louça: já foi usada mas não se joga fora".
"Se Deus fez o mundo em sês dias, só no Rio Grande gastou cinco".

(História recontada a partir de L. F. Verissimo, do livro A velhinha de Taubaté. L&PM Editora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A crônica





Na Semana da Pátria postamos aqui a crônica intitulada "Meu ideal seria contar uma história...sobre nossa pátria", que foi inspirada na crônica de Robem Braga, Meu ideal seria escrever...
Apresentamos esse texto na abertura da Semana da Pátria do IMEAB (Instituto Municipal de Ensino Assis Brasil/Ijui/RS). A professora dessa escola e do CSCJ (Colégio Sagrado Coração de Jesus/ Ijuí/RS), Nilza Piovesan Mânfio, exercitou o gênero crônica com seus alunos das sextas séries do CSCJ, partindo do meu texto e da crônica de Rubem Braga. Vai, a seguir, um pouco dos resultados da oficina realizada por ela. 


CRÔNICA

A crônica é um gênero narrativo que trata de temas da atualidade. Normalmente é publicada em jornal ou revista. Destina-se à leitura diária ou semanal e trata de acontecimentos cotidianos.
A crônica se diferencia da notícia por não buscar a exatidão da informação. O cronista procura analisar os acontecimentos, dando a eles um colorido emocional, incluindo elementos de ficção e fantasia.
É um texto geralmente curto, escrito em 1ª pessoa, podendo conter diálogo ou não.

Leia algumas crônicas produzidas pelos alunos da 6ª série

Saudades daquele gaúcho - Júlia Dalmás

Saudades daquele gaúcho...
Que não se importava e colocava botas, bombacha, lenço no pescoço e vestia o orgulho de trabalhar no campo.
Que ao invés de cerveja e cigarro, tomava chimarrão e saboreava o churrasco.
Saudades daquele gaúcho que não se preocupava com contas para pagar, com roupas caras e com joias para a esposa. Que nas tardes de domingo reunia a família, tomava chimarrão e contava causos.
Saudades de quando esse mesmo gaúcho, cantava o hino do Rio Grande do Sul com orgulho, sem pensar muito em trabalho, ou no carro zero Km que tanto queria comprar.
Saudades daquele gaúcho, que passeava com seu cavalo na querência amada, só para sentir o vento bater no rosto e respirar o ar puro da natureza.
Hoje em dia o ar que respiramos é o da poluição, fazendo com que as árvores morram, deixando um ar pesado de tristeza.
E hoje, o gaúcho que vemos, é moderno, usa roupas de marca e anda em seu poderoso carrão.
O gaúcho de hoje perdeu a cultura, o orgulho, embora ainda se chame de forte. O gaúcho de hoje mais se parece um americano esbanjando chiqueza, do que aquele dos campos, que era forte, cultivava a cultura e suas raízes.




Ponto de vista - Giovani Pasquali Piovesan
 O juiz já estava no meio do campo e a TV ainda mostrava a novela das nove. No bar a torcidinha organizada aguardava o início com batata frita, refrigerante, cerveja, torrada e até xis. Estava lá ele, Afonsinho, o ídolo do time, o camisa 10, ansioso, pois poderia fazer o seu milésimo gol, e então, como sempre, ele faria de pênalti.
Num prédio ao lado, um grupo de empreendedores se decidia entre o produto novo e o velho que rende mais, mas eles sempre vão pelo caminho mais fácil.
Na rua, dois homens discutem, um sábio e um burro. O sábio fala uma frase e o menos inteligente não entende, e então repete a frase e sai se achando. Gostaria de saber por que a sociedade é assim? Por que é tudo pelo caminho mais fácil, por que não tentamos viver uma vida mais tranquila, sem tantas preocupações e mais feliz?

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Vidraça




A chuva envidraçou



Uma tela surreal


Com sua tinta incolor.






As nuvens no céu

eram para o menino


orquestras

de dinos e monstros.



Fiz a bolha de sabão


na garrafa de minha idade


abusei da infância


no tropel de


minhas brasas...



E abri vertentes


de mãos e rugas


doidas das minhas

asas!


sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O nariz - Luis Fernando Verissimo


Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sombrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.


- O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.
- Isso o quê?
- Esse nariz.
- Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei.
- Logo você, papai…


Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se.


- Tire esse negócio.
- Por quê?
- Brincadeira tem hora.
- Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou.
- Aonde é que você vai?
- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
- Mas com esse nariz?
- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque é um nariz…
- Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo o senhor, doutor…”) fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
- Ele enlouqueceu?
- Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi ele assim. Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
- Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.
- Vou. Aliás, não vou mais tirar esse nariz.
- Mas, por quê?
- Por quê não?


Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.


- Papai…
- Sim, minha filha.
- Podemos conversar?
- Claro que podemos.
- É sobre esse nariz…
- O meu nariz outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
- O nariz é meu e vou continuar a usar.
- Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
- Não tem porque não quer…
- Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?
- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença.
- Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
- Se não faz diferença, porque não usar?
- Mas, mas…
- Minha filha…
- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!


A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.


- Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento de meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar, Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como era antes.
- Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
- É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…


O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A arte de esquecer




Meu PC está com Alzheimer e eu me pergunto o que (não) fiz para evita-lo.
Tenho um blog que encho de histórias, boa parte contadas pelos outros, porque morro de medo de começar a sofrer desse mal.
A amnésia do meu computador, dizem, é porque ele está com a memória muito cheia. Mas eu não queria descartar o que gravei nele durante esses anos.
De minha parte, morro de medo de cair no esquecimento, por isso devoro textos e autores, como a traça que não quer morrer de fome.
Já estou sofrendo, imaginando o dia que for trocar o PC antigo por um atualizado. Não quero perder o rastro que nele deixei e, ao mesmo tempo, não quero me torturar diante de uma memória (cibernética?) quase ilimitada.
Já tive minha vontade de dilúvio, apagar tudo, começar do zero. Como fez Noé, continuar com o que se tem de melhor. Ou como faz a cozinheira, quando escolhe os grãos de feijão para colocar na panela. Porém, com as lembranças não dá para classificar, separar o joio do trigo. Temos que negociar com a memória a recordação das coisas ruins – por exemplo, as da infância que, mesmo camufladas, podem um dia retornar e nos atormentar.
Recebo uma mensagem por e-mail implorando para que não esqueça do Holocausto. Ainda mais diante de alguns discursos que circulam por aí dizendo que nada disso aconteceu.
Essa realidade me assusta: não estou exercitando, diariamente, a amnésia, ao olhar só para frente, instigado por desejos que não são meus desejos? É. Diariamente somos empurrados, pela sociedade, ao esquecimento.
Para fugir disso, rabisco agendas, tiro fotos de pessoas e lugares, invento frases com pretensão de serem pensamentos. Guardo caixas e caixas de objetos antigos, mesmo camuflados diante dos olhares desconfiados dos outros.
Na "necessidade" de chamar a atenção, perdi a noção do que é perene e do que é efêmero.
Como não há solução, porque é relativo o que permanece e o que é descartável, me divido entre o canto do sabiá nesse começo de primavera, os objetos (descartáveis?) que posso comprar com o salário que ganho, e a possibilidade (necessidade?) de manter viva a idéia de amor que seja mais do que paixão (efêmera?). 
Será que o Vinicius de Morais nos sacaneou quando disse, sobre o amor:

(...)Quem sabe a morte, angústia de quem vive

quem sabe a solidão, fim de quem ama
eu possa me dizer do amor ( que tive ) :
que não seja imortal, posto que é chama
mas que seja infinito enquanto dure.

Ah! Pelo menos do amor nós esperamos a perenidade. Mas o problema não é o amor em si: somos nós, que amamos do jeito que amamos!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Cada um com a sua vaca! - Ziraldo



Era uma vez dois irmãos. O pai deles morreu e eles herdaram duas vacas. Depois do enterro, foram dividir a herança.
- Zé, como vamos fazer pra saber qual é a sua vaca e qual é a minha?
- Olha, Tunico, tive uma idéia. Eu corto a orelha da minha vaca. A vaca com orelha fica sendo sua e a sem orelha fica sendo minha.
E assim fizeram. Mas eles tinham um vizinho que adorava enganar os outros e de noite foi lá e cortou a orelha da outra vaca. De manhã, os irmãos entraram em pânico:
- E agora Zé, como fazemos pra saber qual é a sua vaca e qual é a minha?
- Vamos cortar a outra orelha da sua vaca. A vaca que tem ainda uma orelha fica sendo minha e a sem orelhas fica sendo sua.
Concordaram. Mas, de noite, o vizinho foi lá e cortou a orelha da outra vaca também.
Na manhã seguinte, novo pânico.
- Que fazemos, Tunico?
- Vamos cortar os chifres.
E cortaram os chifres de uma das vacas pra fazer a diferença.
O vizinho foi lá e cortou os chifres da outra vaca.
E aí surgiu outro impasse.
- E agora, Zé?
- O rabo, Tunico.
E cortaram o rabo de uma das vacas.
- Agora a vaca com rabo é sua e a sem rabo é minha – disse o Tunico.
Na manhã seguinte, o vizinho malvado tinha cortado o rabo da outra vaca.
Os dois irmãos se desesperaram.
- E desta vez, o que vamos fazer?
Tunico pensou, pensou. Zé pensou, pensou. Ao mesmo tempo, os dois tiveram uma idéia:
- Vamos fazer o seguinte: você fica com a vaca branca e eu fico com a vaca preta.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Meu ideal seria contar uma história... sobre a nossa Pátria



Meu ideal seria contar uma história... engraçada de nossa pátria.
Dizem que nossa pátria-moça está doente, por causa de tanta violência, corrupção e miséria... Gostaria que todos, quando ouvissem minha história sobre nossa pátria, rissem e se alegrassem tanto, tanto, que telefonassem para seus irmãos, amigos, vizinhos, para que todos ficassem espantados ao ver a história de nossa pátria tão alegre.
Que minha história sobre a pátria “seja como um raio de sol (...) quente, vivo”, e possa assim iluminar essa moça-pátria que dizem estar sofrida, enlutada, doente...
Que as pessoas que estivessem mal-humoradas, estressadas e sem esperança, pudessem ser atingidas pela minha história, e se alegrassem a mais não poder. Que se lembrassem dos velhos tempos, repletos de sonhos de um mundo melhor para todos.
Que nas cadeias, hospitais e escolas, a história de minha pátria chegasse – “e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria”.
Que nossos representantes políticos, depois de ouvirem a minha história sobre nossa pátria, se envergonhassem de qualquer gesto que não seja em defesa do bem comum. Que cada cidadão, ao escolher seus representantes políticos, não esquecesse de que suas escolhas eleitorais são apostas no futuro.
Enfim, que todos tratassem melhor seus empregados, suas crianças, e todos os seus semelhantes, em alegre e espontânea homenagem à nossa pátria amada.
“E que minha história se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras”, que fosse atribuída a todo e qualquer habitante do mundo, de qualquer cultura ou religião. “Mas que em todas as línguas ela guardasse a sua pureza, o seu encanto surpreendente”. E que no fundo de cada vilarejo um camponês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: ‘Nunca ouvi uma história sobre a pátria assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem; foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina”.
“E quando todos me perguntassem – ‘mas de onde é que você tirou essa história?’ – eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história de nossa pátria-moça...”
“E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo” quando ouvi dizer que minha pátria está triste e doente, esquecida e abandonada por todos nós.
Essa história inventada é, portanto, um gesto de amor e solidariedade, repleto de vontade de tornar melhor o futuro de nossa pátria, que significa o futuro de todos nós.

(O texto acima é uma releitura da crônica de Rubem Braga, transcrita abaixo.)

Meu ideal seria escrever... (Rubem Braga)

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".


Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.


Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.


E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".


E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".


E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

A crônica acima foi extraída do livro A traição das elegantes, Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág.91.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O mundo precisa de mais orgasmo



Não fui eu que inventei. Um amigo descobriu. Disse que essa valente indiada não tá precisando só de comida, bebida, roupa nova, cama, mesa, banho e coisa e tal.
Satisfeitas as necessidades vitais, é de orgasmo que o mundo precisa.
A vizinha ou colega que morre de inveja da outra, e que só faz fofoca, é por causa do vazio do orgasmo, não tem dúvida. O marido ou amante com certeza anda estressado, com pressa pra acumular e, na hora h, diz estar com enxaqueca. Descuidou do orgasmo (dele e o dela), e é por isso que os donos dos motéis enriquecem a mil.
As brigas por qualquer coisa, e as divergências políticas, Maragatos e Chimangos campo a fora, esquerda, direita, ideologias, o motivo é o mesmo: a ressaca do orgasmo, não pode ser outra coisa!
Os vícios, as drogas, bebedeiras, marmanjos com carros barulhentos e em alta velocidade, é tudo por falta de orgasmo.
Alguns enlouquecem, se enforcam nas neuroses e manias, morrem de inveja do sucesso dos outros, só por descuidarem do orgasmo.
Eu tenho um orgasmo quando leio o Poeminha do contra, do Quintana:


Todos esses que aí estão
atravancando meu caminho
eles passarão...
Eu passarinho!


Pra terminar, afirmo (antes que alguém me jogue isso na cara), que eu tenho essa obsessão por escrever alguma coisa aos meus leitores (cinco ou seis??) porque ando carente de orgasmo. Vá saber...

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Era uma vez um sapo...



Ela me disse que as histórias que conto se parecem comigo. Ora - pensei – mas que garota pretensiosa!
Na tentativa de arrumar minha defesa e surpreender no contra-ataque, em vez de me olhar no espelho fui chafurdar seus defeitos. Droga, não encontrei nenhum! Algo errado acontece comigo...
Eu só queria rir um pouco, neste final de inverno cinzento, úmido e frio, com a tristeza passeando à vontade, pela vida e pelas folhas dos jornais.
Sim, eu sei que ela me enxerga um velho sonhador (não significa exatamente o mesmo que “sonhador velho”). E sei que e a história que contei pra ela fala, realmente, de um sapo sonhador!
Para não ser chato, decidi pular esse assunto, por isso não recitei o poema do Mário Quintana, que fala assim dos sonhos:

Se as coisas são inatingíveis... ora! 
Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mas ela – com seu olhar de inicio de primavera e ironia cortante como o vento sul de agosto – tem razão, ao me colocar dentro das histórias que conto, com a roupa dos personagens.
Bem, vai a seguir as história que eu contei pra ela.


Dois sapos – o sapo sapo


Era uma vez um sapo que pensava que era um príncipe transformado no bicho verde e enrugado que agora era. Ele lembrava de ter morado num castelo, vestido roupas de seda e brincado de cavalgar um pônei branco de pelúcia.
Mas, para conseguir um beijo de uma princesa, ele precisava de uma pepita de ouro. Ele cansou de procurar a pepita salvadora e não achou. Então ele pintou uma pedra com tinta dourada e cantou a música de chamar princesas beijoqueiras. Apareceu uma que nunca tinha beijado um sapo antes, e, por isso, não sabia direito como era uma pepita de ouro. Ela acreditou que a pedra pintada fosse mesmo de ouro e foi logo pegando e beijando o sapo.
Acontece que o sapo não era príncipe encantado coisa nenhuma e continuou sendo o bicho verde e enrugado que sempre foi. A princesa jogou a pedra pintada para o sapo e foi embora correndo, envergonhada, pensando que o beijo dela não tinha funcionado.
A pedra bateu na cabeça do sapo e ele se lembrou de que as memórias do castelo, roupas de seda e pônei de pelúcia eram de um sonho lindo que uma noite ele tinha sonhado.
Envergonhado, também, e triste, o sapo pulou para dentro da lagoa onde morava, resolvido a se matar afogado. Mas lembrou que sabia nadar bem até demais, ganhando a nota máxima de sua turma na escola, e por mais que tentasse não conseguia se afogar. E então já ia pular para uma estrada que havia lá perto, para ser atropelado por uma carroça, quando viu uma sapa que tomava sol sobre uma grande flor cor-de-rosa.
Seu coração bateu depressa, sua lingua se esticou para fora da boca. A sapa piscou para ele, dengosa. E lá se foi o sapo, nadando nas águas da lagoa,  já se esquecendo dos pôneis de seda, castelos de pelúcia e roupas de pedras pintadas com tinta dourada!

(Flávio de Souza. Príncipes e princesas, sapos e lagartos. São Paulo, FTD, 1996.

sábado, 20 de agosto de 2011

Aquele estranho animal - Mário Quintana




Os do Alegrete dizem que o causo se deu em Itaqui, os de Itaqui dizem que foi no Alegrete, outros juram que só poderia ter acontecido em Uruguaiana. Eu não afirmo nada: sou neutro.

Mas, pelo que me contaram, o primeiro automóvel que apareceu entre aquela brava indiada, eles o mataram a pau, pensando que fosse um bicho. A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que ouvi dizer, metade pelo que inventei, e a outra metade pelo que sucedeu às deveras. Viram? É uma história tão extraordinária mesmo que até tem três metades... Bem, deixemos de filosofança e vamos ao que importa. A coisa foi assim, como eu tinha começado a lhes contar.

Ia um piazinho estrada fora no seu petiço – tropt, tropt, tropt – (este é o barulho do trote) – quando de repente ouviu – fufufupubum! Fufufupubum chiiiipum!
E eis que a “coisa” então invisível, apontou por detrás de um capão, bufando que nem touro brigão, saltando que nem pipoca, se traqueando que nem velha coroca, chiando que nem chaleira derramada e largando fumo pelas ventas como a mula-sem-cabeça.
“Minha Nossa Senhora!”

O piazinho deu meia volta e largou numa disparada louca rumo da cidade, com os olhos do tamanho de um pires e os dentes rilhando, mas bem cerrados para que o coração aos corcoveios não lhe saltasse pela boca.
É claro que o petiço ganhou luz do bicho, pois no tempo dos primeiros autos eles perdiam para qualquer matungo.
Chegado que foi, o piazinho contou a história como pôde, mal e mal e depressa, que o tempo era pouco e não dava para maiores explicações, pois já se ouvia o barulho do bicho que se aproximava.

Pois bem, minha gente: quando este apareceu na entrada da cidade, caiu aquele montão de povo em cima dele, os homens com porretes, outros com garruchas que nem tinham tido tempo para carregar de pólvora, outros com boleadeiras, mas todos de a pé, porque também nem houvera tempo para montar, e as mulheres umas empunhando as suas vassouras, outras as suas pás de mexer marmelada, e os guris, de longe, se divertindo com os seus bodoques, cujos tiros iam acertar em cheio nas costas do combatentes. E tudo abaixo de gritos e pragas que nem lhes posso repetir aqui.


Até que enfim houve uma pausa para respiração.


O povo se afastou, resfolegante, e abriu-se uma clareira, no meio da qual se viu o auto emborcado, amassado, quebrado, escangalhado, e não digo que morto porque as rodas ainda giravam no ar, nos últimos transes de uma teimosa agonia. E quando as rodas pararam, as pobres, eis que o motorista, milagrosamente salvo, saiu penosamente engatinhando por debaixo dos escombros de seu ex-automóvel.


- A la pucha! – exclamou então um guasca, entre espantado e penalizado – o animal deu cria!


Poetinhas, contenham-se!

  Não caminhava sozinho, estava rodeado de uma legião de capetas, rindo, zombando. Vestiam branco e jogavam pro alto seus cantos vindo...