- Velho, por que
ela não é igual a todo mundo?
Curte música
clássica e rock progressivo...
Bem que ela podia
curtir as baladas que a gurizada frequenta,
aquelas sertanejas
repetindo e repetindo histórias de amor
que duram tanto
tempo quanto feiras de finais de semana.
Beiço, ela é anormal.
E jura que eu também sou.
Manda dezenas de
áudios falando de seus livros favoritos.
É a Capitu e o
Quincas Borba do Machado de Assis,
é a Madame Bovary,
do Flaubert. Bah, cara, disse que teve uma fase
de Macabéa, a
personagem da Clarice Lispector em A hora da estrela.
Não entendi se ela
se identificou com o fim trágico da pobre retirante
tentando a vida
numa cidade grande, ou se teve empatia,
tomando consciência
das desigualdades históricas deste país.
Tu acha, Beiço, que
ela é uma joia rara no meio de tanto cascalho?
É claro que isso me
assusta. Como vou encarar frente a frente uma deusa de primeiro escalão?
- Cadelão, tá na
hora de tu parar com tanto delírio. Mais realidade, cara.
Tu compra jaquetas
de 30 pilas nos brechós, e se diz satisfeito por se deslocar as 24 Horas
atrás de fardos de
cerveja barata.
- Nem me fale em
cerveja barata, meu velho. Ontem disse pra psicanalista
que não consigo
deixar um latão de cerveja na geladeira até o dia seguinte.
Perguntei pra ela
em qual neurose ou psicose eu me enquadro, e ela apenas riu.
- Tareco, marque
presença nos bailões do Gervi nos domingos de tardinha
e te deixe seduzir
por uma Balzaquiana de uns 50 anos que busca companhia e estabilidade na vida.
- Ah tá, desde
quando tenho condições financeiras e estrutura psíquica pra dar estabilidade
pra uma senhora?
- Já pensou,
Cadelão, dançar umas marchinhas, tomar uns latões de Brahma e então deixar rolar
aquele olhos nos
olhos e a inevitável declaração "tu é o amor de minha vida..."?
Rapaz, é sério, por
que tu não te acomoda e fica satisfeito em dividir com ela um Xis Calota no
sábado de noite,
mais um litrão de
refri, e aos domingos tomar chimarrão nos parques,
conversando o que
todo mundo conversa? O que tem de errado nisso, cara?
Não, não, não...
não diga nada! Te conheço. Sempre fugindo pela diagonal.
Tanto é que, ao se
sentir solitário, a primeira coisa que faz é me chamar pra dar entrada num
puteiro,
pra seduzir umas
garotinhas ingênuas e carentes.
Te conheço. Se
pintar uma dona com centenas de hectares de soja plantada,
tu não vai aguentar
por muito tempo em dividir a vida com ela,
tu tá acostumado a
abrir e fechar os botecos pelo menos umas 3 vezes por semana.
- Eu mereço, Beiço...
A deusa fez moradia na minha cabeça.
Penso nela quando
estou chupando bergamota no quintal, quando estou fritando ovos,
quando estou
ouvindo Zé Ramalho, "mulher nova, bonita e carinhosa,
faz um homem gemer
sem sentir dor".
Olha só o sonho que
tive ontem de noite:
uma enorme cobra se
aproximava - pense na beleza deslumbrante da Anaconda -
e ela foi se
enroscando, e eu paralisado, e aquela língua fazendo cócegas na minha orelha,
e a filha da mãe me
apertando e sussurrando
"Cadelão, hoje
tu vai morrer de amor no meu abraço"
e, então, quando eu
já estava com falta de ar, acordei.
- Mas e daí, cara,
o que pode significar esse sonho?
- Sei lá... Pensei
numa garota poderosa me cercando e seduzindo,
e senti algo meio
ambíguo: a deusa me atrai e, ao mesmo tempo, me apavora.
- Cadelão, tu não
existe!
- Olha pra mim,
Beiço, repara no quanto sou lírico e romântico,
um poeta
maravilhado diante das belas surpresas da vida...
(B. B. Palermo)