segunda-feira, 27 de abril de 2020

Morte - passagem de um estado para outro...


DÚVIDA
Velha governanta do filósofo Descartes; avarenta e pechincheira, desconfia de tudo e de todos, menos dela.

GUERRA
Método Prático de Geografia.

MORTE
Nada de maior; simples passagem de um estado para outro - assim como quem se muda do estado do Rio Grande do Sul para o estado de Santa Catarina...

POBRES
Espetáculo predileto dos ricos.

RICOS
Espetáculo predileto dos pobres.

FRASES QUE MATAM
- Mas como você está bem conservado!

(Mario Quintana - Caderno H).

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Máscaras, máscaras, máscaras



Já nem sei se ela é personagem ou de verdade.
Sei que a dona da verdade estrangula meu ego:
- Cansei de apostar em você!
-Tu sabe que levo a sério o que tu promete.
- Agora já nem sei mais...

Como tu vai sair desse labirinto
e quebrar o cadeado dessa gaiola, Cadelão?
Ah, pois bem, tu corre e se refugia no bar... Bonito!

Dobro a esquina e sigo pela avenida e vejo rostos sérios,
nada de narizes e bocas, só máscaras, mascaras, máscaras.
Faço minha parte. Coopero com a ordem social,
guardo num saquinho que trago no bolso uma máscara preta e uma branca.
Testei antes de sair de casa e adorei o cheiro do pano novo,
e a senhora da loja foi gentil:
- Eu não lavo com água sanitária, esfrego com água e sabão de glicerina,
e o resto deixo por conta do sol.
Ao me despedir alcançou-me álcool-gel e eu senti um calafrio,
meu nariz farejou doses de uísque.
As pernas seguem pela avenida, enquanto a consciência fica presa
aos mandamentos da Tininha.
Ao cruzar por pré-adolescentes com seus fones de ouvido
me vem uma lembrança,
a vontade que sempre tive de saber os nomes dessas criaturas.
Um nome tem seus códigos, inclusive o desejo dos pais que o escolheram.
Penso em Virgília e Capitu e Marcela.
Penso nessa galera do Machado de Assis.
Sei, o nome marca o leitor tanto quanto o perfil psicológico do personagem.
Tento me colocar no lugar de Brás Cubas.
Esse soube contar, depois de defunto, a vida
enfadonha que teve.
Penso: qual dessas garotas tem o nome de personagens de nossa literatura?
Duas garotas correm, corpos atléticos, tênis confortáveis e estilosos.
Os nomes... Quero saber os nomes!
O meu amor, recordo agora, tem nome e apelido e muitos planos e desistências fáceis.
Fez umas corridas, insistiu pra que a acompanhasse, inventei uma desculpa,
acho que foi "não tenho pulmão, baby". Logo ela também desistiu.
Tinha seu ritual antes de flanar pela ciclovia.
Amarrava o cabelo e distribuía fartamente o protetor solar
e escolhia um dos seus quinze bonés maravilhosos.

- Tu é um insensível!
A frase ribomba por dentro e eu fantasio encontros com Sherazade,
contando-me aventuras grandiosas e maravilhosas de princesas e príncipes,
todos se redimindo de erros do passado através do amor.
É isso, uma contadora de histórias descongelaria meu coração.
Seria a pessoa certa para me salvar. Cadê?

Há um festival de máscaras que parecem ansiosas pra ter vida normal,
de cara limpa, sem medo de monstros invisíveis.
Apenas eu sigo devagar, atento a tudo, vou pra direita, vou pra esquerda,
vacilo, olho pra trás, sim, pareço bêbado.
Ando, paro, gesticulo em voz alta.
Diante de uma igreja fechada o padre diz à beata, outra ansiosa:
- As máscaras vão cair, igual as folhas deste outono.

Tininha espera o de sempre: que eu seja o cara que toda mulher e a comunidade sublima.
E assim ela me obriga a dirigir. E assim eu me mantenho quase sóbrio.
Rodamos de cabeça erguida, como convém, eu trocando as marchas, segunda e terceira, nunca a quarta ou a quinta, e ligando as setas e acelerando e pisando no freio como faz um verdadeiro líder.
Ela investigando o néctar da poluição desses ares incríveis do final de abril.

Estou perdido. Sou pobre e indeciso poeta, que prefere voltar a pé e sozinho para casa,
com cerveja suficiente para sentir a inspiração da noite e a alegria do crédito de uma semana liberado.
Nessas noites, acompanhado pela música barroca de Bach e dos blocos de papel e das canetas e sem a presença dela, sinto que o amor tem o momento certo para pulsar e correr na minha direção.
Foi o que lhe disse:
- Baby, não acelere esse calhambeque que é me reabilitar... Sou o que sou, sem uma vírgula pra tu regenerar. No momento certo, nosso encontro no jardim das almas vai florir. Não ligue pra esses obstáculos, são eles que nos vão aproximar.
Estou cansado de dizer pro meu bem:
- Guria, eu te ofereço poesia e filosofia e alegria e sexo razoável e tu me oferece juventude e energia... mais do que isso, tu atrai a explosão cósmica que é a essência do amor!
Eis o nosso embate. Tina de novo me leva a sério e ficamos bem por uma semana. Mas, é óbvio, eu preciso de um ventilador, mais do que isso, eu preciso de um respirador, quero uma UTI só para mim...
... pode ser o boteco mais próximo.

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Uma folha cheia de beijos com cinquenta tons de batom



Eu nunca sei se o cabelo dela está loiro ou castanho. Deve ser porque só tenho olhos pra aquele rabo sensacional. Ou porque meu tesão quer que ela seja loira. Sim, tem a ver também com minha condição etílica, mas isso é meu estado quase natural.
Demorei pra sacar que dentro dela habitam dois dogs. Isso, duas cadelas em conflito permanente. Uma shih tzu dócil e atenciosa e carinhosa, e uma pit bull indisciplinada e enlouquecida. Esses dois eus me obrigavam a planejar cada ação. E as suas várias explosões me indicavam o caminho.
É claro que eu adorava brincar com a dócil e carinhosa, mas ao mesmo tempo sentia que faltava algo, e isso deve ter relação com a busca por adrenalina. Assim: às vezes tinha vontade de aprisionar a pit bull num canil, mas aí ela me fitava com aqueles olhos. Primeiro chispando, e depois, aos poucos, serenando, e essa cena fazia a vara retesar no meio das pernas.
De qualquer maneira, ela era enigmática. Em muitas ocasiões rolava uma dificuldade pra decifrar suas mensagens e áudios que me enviava pelo Whats. Dizia: "Eu tenho o coração fechado". Isso me obrigava a demorados exercícios reflexivos, que demandavam, no mínimo, uma garrafa de vinho. Deus Baco me botava faceiro e então eu ligava pra ela e chutava opinião e ela chutava de volta, e estava tudo certo. Nos despedíamos com um "já estou com saudades" e "amanhã eu te ligo, paixão".
Gente, acreditando que agora estava no radar do amor verdadeiro, esses dias eu fui pra cama com dois litros de vinho na pança, duelando com a insônia e caindo na real: nosso papo foi muito barulho, como um carro de som anunciando uma boa nova, mas com pouca sinceridade. Jesus! Como chegamos a esse ponto?
Enquanto via na Tininha dois animaizinhos conflituosos, ela via no Cadelão um desajeitado e confiante mané perdigueiro. Isso, um excelente farejador de botecos onde jorrava uísque de segunda e vinho e cerveja. Mas não pensem que suas críticas faziam cócegas na minha autoestima. 
Como é mais cômodo falar dos outros do que de nós mesmos, adiantarei pra vocês uma coisinha: saquei que a guria se metamorfoseava, só pode, pela influência do pó. Ela sempre encontrava motivos pra se ajoelhar nas carreiras. Antes de uma prova pra obter carteira de motorista. Prova final de uma disciplina na universidade. Antes de ir pra balada. Na balada. No final da balada, ao retornar para casa, estando alegre ou frustrada.
Se estava em casa bebendo, esperando ela voltar de uma dessas festas, partíamos pra roleta russa, como mencionei na história anterior. Rolava uma discussão, eu alfinetava seus pontos fracos, Tininha incendiava e logo nos agarrávamos e dávamos aquela trepada inesquecível. Ao gozar, ela enfiava as unhas nas minhas costas e ombros e eu corria pro banheiro e o espelho mostrava o espetáculo do sangue escorrendo, diante de meus olhos aquelas unhas compridas e coloridas e bem feitas penetravam meu rosto feito de barro, aí o tesão maluco dançava, e o cheiro do sangue misturado ao seu cheiro de cavala galopavam. Corria pra cama onde ela me esperava, e logo estávamos brigando pela ponta no último páreo, e eu era o jóquei e dava uns tapas cada vez mais fortes nas suas ancas e garantíamos o primeiro lugar no final.

Já disse, uísque vagabundo altera meu estado de consciência. Devia ficar só na cerveja e um vinhozinho de vez em quando. Ontem a guria se comportou feito garotinha, isso, uma shih tzu toda afetuosa se enroscando no Cadelão. Imaginem, me presenteou uma folha cheia de seus beijos com cinquenta tons de batom. Não me contive e disse "meu bem, às vezes parece que tu é embalada por impulsos juvenis". Tininha se retesou, me lançou aquele olhar e eu pensei "hoje não vai ser arremesso de prato, vai ser de ventilador". Então o anjinho direcionou seu olhar para a mesa e apanhou umas coisas que eu tinha rabiscado. Decerto pensou que eu anotara umas ideias geniais. Amassou, calma e metodicamente, como se fosse cartesiana, e arremessou pra cesta do lixo. Porra! Foi um arremesso de três pontos! Apanhei a carteira e coloquei no bolso da calça, agarrei suas mãos, nossos corpos se roçaram, nossas energias vibraram, senti um tesão beliscando, era algo mais divino do que mundano, sussurrei no seu ouvido "eu também te amo"... e nos dirigimos, cambaleantes e esperançosos, para o bar do maneta.

(B. B. Palermo)


terça-feira, 14 de abril de 2020

Ela jogou contra a parede um prato Duralex que foi do enxoval de mamãezinha



Velho, tá complicado atravessar essa quarentena. Teoricamente quero me tornar sujeito melhor, menos corrompido, mas na prática a bebida fala mais alto.
Meus amigos de um posto de combustíveis deixam-me sentar num cantinho da loja de conveniência. Pulo um cordão de isolamento e me refugiu num pequeno espaço, sento num banquinho e escondo a cerveja e o copo atrás de uns objetos e faço de conta que escrevo, compenetrado, incríveis poemas e fascinantes ensaios.
A toda hora chegam os caras da POE, sei lá se indo ou se voltando do serviço, e é impressionante, eles não notam minha presença. A concentração se vai, o foco idem, como é que é, os cretinos não vão dar crédito pro poeta? Tu acha, maluco, que pra polícia eu sou invisível?
O sol atravessa as janelas do bar e a garçonete pede se eu quero que ela feche as cortinas. Não - respondo. É um crime não aceitar a companhia desse sol de abril. Além do mais, Baby, o deus sol, que nos observa e aquece e cuida, nos dá de graça vitamina D.
Em casa o tédio anda de muletas, e os cães do bairro ficam sem graça e latem por qualquer coisa e evaporam seu repertório, e eu me pergunto por que não tenho contemplado detalhes do que me cerca com o mesmo entusiasmo de outros tempos. Não posso esquecer de exercitar os cinco sentidos e multiplicar pelo menos por 10 o uso da imaginação.
Quando um ônibus dobra a esquina e bate de frente com meus olhos, tento rabiscar uma boa frase. Então o celular me desperta, Tininha envia uma mensagem. Merda, esqueci de deixar o aparelho no silencioso, não quero agora me preocupar com ela.
Daqui do meu cantinho visualizo o monitor do computador do caixa do bar, e na tela aparece o número 111. Bingo, vou apostar no Bicho. Aí a garçonete me lembra do isolamento, as bancas de jogo também estão de quarentena.
É isso. Restou-me apenas um jogo: roleta russa, com a Tininha. Regado com bom estoque de cerveja e paciência. Confesso que ela é a parte mais dolorida desses dias. Sua quarentena lembra as TPMs, e eu também fico pilhado com sua implicância, e então é aquela tentação, como aconteceu várias outras vezes, desejo partir pra uma DR.
Muito louca. É a mudança de rotina, quase não sai pra rua, nada de festas e outros programas com suas amigas, e depois isso: Tininha agarra meu calcanhar, bah, cara, não tenho escrito porra nenhuma, quero distância do teclado do noty, sim, como se o infeliz também estivesse contaminado pelo vírus. A doidona... e seus amigos. Eles não conseguem ter vida normal sem frequentar academia. Credo, não leia suas postagens  no Facebook. É cada coisa que as criaturas se envolvem, brincadeirinhas e polêmicas na política, por não suportarem o tédio do tempo livre.
Eu me pergunto: o que as amebas e os vermes e as bactérias e os vírus estão tramando nesse exato momento? Aposto que num século vindouro qualquer eles vão foder com os humanos. Sim, cara, com certeza eles estão se aperfeiçoando, enquanto os homo sapiens babacas, em vez de valorizarem e investirem na ciência, voltam seus lindos olhos para pseudogurus e pseudoteorias. Bah, cara, e quem consegue aguentar aquelas merdas, as tais das "teorias da conspiração"?
Rapaz, os "sapiens" dedicam boa parte da sua vida a um trabalho meio que escravo, repetitivo, mecânico. Eis o epicentro de suas vidas, tanto é que nos fins de semana, nas horas de lazer, enlouquecem os vizinhos com galanteios ridículos e música horrível a todo volume. Então, quando há a necessidade de se isolar por algumas semanas, longe da correria do trabalho e do comércio, eles não suportam a diferente rotina.
Caralho, lembrei agora dos cães, que foram domesticados pelos "sapiens" ao longo dos milênios, e essa sua "evolução" fez com que aceitem a condição de ficarem amarrados ou enjaulados em canis, como se esse fosse seu destino natural. Velho, onde foi parar toda a sua potencialidade? Pense no que os bichos e nós somos, e o que poderíamos ser.

Pra finalizar, criatura, nem te conto. Descobri que a Tininha tem uns cacoetes. Quando bebe e come uns salgadinhos ela tem vontade de palitar os dentes. Eu digo "Não!" e ela responde "Grrrrrr!". Aprendi com mamãezinha que isso é feio. E tem mais: esses dias exagerei no trago (que novidade) e, juro, quando ela se dirigiu à geladeira me pareceu que manquitolava, fiquei invocado, só faltava ela ter um defeito de nascença... Meu, insinuei uma sandice qualquer. Bah, a garota ficou furiosa, apanhou um prato que estava sobre a mesa e arremessou na parede. Era um dos pratos Duralex que ganhei de mamãezinha, isso, do seu enxoval, acho que da década de 70. Meu, pra quebrar um prato daqueles tem que pegar de jeito. Maluco, o prato virou farinha. Tá vendo só o que esse vírus de bosta tá fazendo com nossos nervos?

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Um silêncio tenso na sala de espera



No silêncio tenso da sala de espera
pobres guarda-chuvas dementes
deixam escorrer pingos da chuva.
Ela me observa
de máscara e olhos apavorados.
Cruzo e descruzo as pernas,
meu olho raio-x percorre
seu corpaço.
Acalmo-a através de
mensagens telepáticas.
"Não fique em pânico.
Isso não é nada.
Logo vai passar".

Pendurada numa parede,
Michelle Pfeiffer observa,
e eu lembro da adolescência,
quando sua performance nas telonas
inspirou tantas punhetas
gozadíssimas.
Sua juventude e alegria
não existem mais.
Agora ela vem me censurar
com semblante carregado,
balbuciando, num movimento
de lábios: "Que feio!".

Pobre Cadelão,
está cara a cara com o espelho.
Agora vai usar e estocar
dezenas de máscaras,
vai se camuflar e proteger
deses olhares
amedrontados.

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 3 de abril de 2020

Que mais queres tu, sublime idiota? ("Memórias póstumas de Brás Cubas" - Machado de Assis)


Essa cambada de informações
que chegam de todo lado
deixam-me mais e mais vazio.
Um tédio compartilhado com quem não aprendeu
a pensar e a sentir, em tempos de ócio.
O que me faz doer as bolas é ter que dividir o oxigênio
com um bando de desocupados
que vomitam nos ouvidos sua gororoba.
Valha-me Deus,
que sorte poder ler um Dostoiévski
ou Leminski ou Machado... E tantos outros...
Também posso ouvir boa música, Um Schubert
ou Mozart ou Stravinsky... E tantos outros...
Não sinto falta dos aviões cortando o espaço aéreo
que minha vista alcança,
o que me enche o saco são mosquitos e papagaios,
verborrágicos e imbecis.
Não, não posso me queixar.
O que requer esforço maior
é deixar pra lá o celular
e evitar um passeio nesse mercado público
das opiniões obsessivas.
Ouvi dizer que o sexo continua em falta,
mesmo com o tempo disponível,
bocejando a nossos pés,
igual a um cão fiel.
Aqui estamos, devorando a sobremesa
do tempo
que temos à disposição
e não estamos nem aí.
Isso... Não admitimos
que logo seremos pontuais
em nossas sepulturas.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Tudo cairá no esquecimento feito cusparada numa vitrine de loja de grife



Vou driblar o puto do vírus
afogá-lo no álcool
aniquilá-lo através do cansaço,
algumas várias doses
até ele sucumbir
com falta de ar.

O cretino não vai ter chance
nada de tubos de oxigênio
e enfermeiras dedicadas e empáticas,
nas UTIs.
Vou atropelar essa natureza
audaciosa
com meu carrão blindado.

Não há poesia,
não há mistério,
só há tecnologia.
Até os meteoros são fotografados
como se fossem xoxotinhas das ninfetas
em sites pornôs.

Um tempo insuportável,
cretinos matraqueando política
como se soubessem abrir as janelas
para compreender esse mundo
em ebulição.
Papagaios filhos da puta
espalham gotículas do nada
misturando gasoso com líquido
e líquido com gasoso,
deixando a realidade
uma velha conhecida
massa miojo.
E esse nada
não será depurado
nem com oceanos de
álcool-gel.

Ainda bem que isso vai passar.
Tudo cairá no esquecimento,
como cusparada na vitrine
de loja de grife,
antes do amanhecer.

(B. B. Palermo)


Reflexão num boteco, onde uma cachorra preta enorme me observa com olhos tristes

A cadela já envelhecida

pode não reter na memória
as coisas boas ou más que viveu.
Tenho muita coisa represada,
experiências desagradáveis
que espreitam,
mesmo reprimidas.
Creio que a literatura é válvula de escape,
uma saída de emergência pra essa viagem
que é existir.
Uma viagem catastrófica e, também,
tantas vezes maravilhosa,
com surpresas tais que fazem 
com que a vida valha a pena.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Velho, os vídeos são picantes



Cara, o que faço
com essas senhoras
que todo dia mandam
mensagens idênticas
pra cima e do bem,
no começo do dia
e no fim do dia...
Eu poderia vazar do grupo de Whatsapp
mas sei que elas acordarão chateadas
e com razão, afinal,
sou bom garoto
e de meia idade
e elas acenam mundos loucos
naqueles espaços e lugares
que chamamos de "conversas privadas".
Meu, tu sabe, a falta de sexo 
em casa,
algo normal, ou quase natural,
a temperatura desce 
o gelo se faz.

Ninguém está morto.
Rapaz, há muita fantasia,
elas estão na área,
basta conferir os vídeos
que recebo...
Velho, são picantes,
muito picantes.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 31 de março de 2020

Ele se chamava Apparício Júnior



Estava na boate da Janete. Circulavam por lá as garotas de sempre, desejando o de sempre, papos e música de sempre, e então algo surgiu e passou a fermentar no meu cérebro, tipo uma ideia fixa. Vagamente eu recordo que tinha a ver com prostituição e dinheiro. Outras ideias volteavam no meu cérebro. Eu devia montar um animal, creio que algum ser mitológico, e executar minha missão. Fiquei excitado só de imaginar a glória, isso, alcançar a fama, ser reconhecido por essa grande descoberta. Velho, concentrei tanto nessa ideia fixa, que apaguei.
- E aí...
Cara, tu sabe que gosto de voltar para casa a pé, de madrugada, pelo menos algumas vezes. Adoro caminhar enquanto a cidade dorme. Na rua, sozinho, as imagens e ideias se multiplicam, miro à vontade pra todos os lados, e até danço no meio da rua.
Da boate não lembro mais nada. Quando dei por mim, eu vinha pela avenida Só Nós Dois e divisei algo, um quadrúpede, bem maior do que um cachorro e menor do que um cavalo. Flanava em minha direção. Bah, tareco, pisquei os olhos, já começava a clarear o dia. A criatura se aproximava cabisbaixa, num roinc roinc, devia pesar uns 300 quilos. Cor branca, focinho rosado, rabo não enroscado, e aquelas bolas. Beiço, Beiço...
- Nem vem, Cadelão. Tu andou delirando. O que foi que tu cheirou... ou fumou?
- Nananá, cara. É sério. Se em vez de porco eu dissesse que cruzei por um hipopótamo, aí pode ser. Mas tu sabe, por essas bandas não existem zoológicos e, portanto, não existem hipopótamos.
- Kkkkk. Que viagem, cara.
- Tá, se tu não quer acreditar, não acredita.
- Diz aí... O que rolou depois?
Algo tinha que ser feito. Sei lá, interceptar o irmãozinho, antes que houvesse trânsito. Me aproximei, inseguro, balbuciando um butch butch butch e fazendo assim com os dedos. Nisso um sujeito de uns 50 anos, com cara de eletrotécnico, estacionou seu Del Rey e trouxe uma corda. Aos poucos começou a juntar gente. O miserável falou "Deixa comigo, eu sei como laçar o bicho". "Tá". "Cresci no interior. Minha família criava chiqueiradas de porcos. Esse daqui é Landrace... Mazá, bicho bonito!". "Calma, devagar". "Que nada, é só distrair o bichinho e passar a corda no pescoço".
Velho, fiquei impressionado com a habilidade do cara e com a calma do porco. Simplesmente deixou-se prender. Pensei no seu nome e, na hora, tive certeza de que se chamava Apparício Júnior. Alguém da plateia sugeriu amarrar o bicho numa árvore, ali perto. Outro comentou: "Já pensaram que carneada? Bah, olhem a quantidade de salame e toucinho e morcilha que pode sair daí."
Meu, passava um monte de gente, a pé, de bicicleta. Diminuíam a velocidade, comentavam "Eita que hoje a churrascada vai ser grande!". Cara, o trânsito aumentava, buzinadas, eu naquela ressaca, louco pra sugar uma cerveja e tentando me colocar no lugar do Apparício Júnior.
Sete da manhã, mais ou menos, estacionou uma Fiorino caindo aos pedaços. Desceu um sujeito de bigode, vestindo bermuda, camisa de botões, aberta, barrigudo, cara rosada e testa franzida. Soube pelo rádio do "estranho acontecimento, na avenida tal um suíno de cor branca, pesando em torno de meia tonelada, foi interceptado por transeuntes. Fomos informados de que dezenas de pessoas estavam prestes a abater o indefeso animal, e fazer uma churrascada ali mesmo na avenida, em pleno início de sábado. Caros ouvintes, logo mais traremos outras informações".
Para provar que era sócio-proprietário do animal, o cara da Fiorino informou o nome do mamífero. Beiço, chamava-se Apparício Armando Bronca. Sério, cara! O bicho morava na Vila Sossego, com mais 7 companheiros, e fugiu enfeitiçado por uma porca da vizinhança que estava no cio. O tempo, quando prometia chuva, deixava os suínos em polvorosa, principalmente o Apparício, um indivíduo quase virgem e portanto com um baita tesão vertendo pelos poros.
A plateia ali, de piadinhas e opiniões e preocupações ensandecidas. Não chegavam a um consenso a respeito da qualidade da carne do reprodutor. Até que um senhor, ar grave de açougueiro profissional com 40 anos de experiência, disse que a carne de cachaço não prestava para consumo humano. Foi o suficiente pra multidão se dispersar.
Bem, meu amigo, chegara o momento da operação de guerra: embarcar o Apparício na Fiorino. As pessoas ali por perto não moveram um dedo. O sócio-proprietário estava indignado com a falta de solidariedade desse povo. E o Apparício agora mostrava os dentes e babava.
Meu cérebro voltou a remexer e assoprou as brasas das ideias fixas que me nocautearam lá na boate. Tive uns flachs. Isso, era o momento de flanar em direção de casa. Agora eu só pensava em como me libertar dos meus delírios e me purificar dessa vidinha porca que levo.

(B. B. Palermo)


Cadelão, o poeta sensitivo

  Quando estou mais pra lá do que pra cá, me passa na cabeça de que sou um cara sensitivo.  Aí, dispenso a bebida por alguns dias, faço medi...