terça-feira, 10 de março de 2020

Para tentar compreender nossos tempos



O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo. 

(Nelson Rodrigues. Escrito em 27/12/1967. Do livro O óbvio ululante).

segunda-feira, 9 de março de 2020

A sorte um dia volta



- Daí, Beiço, tens jogado muito no Bicho?
- Bah, Cadelão, tô meio que desistindo. Sei lá, venho atravessando uma onda de seca na minha sorte.
- Meu, de tanto ver e ouvir notícias da prisão do Ronaldinho no Paraguai, sonhei com o número 171.
- Sério? Vou jogar pesado nele, esta semana. Se a sorte me sorrir, 20% é teu!

(B. B. Palermo)

domingo, 8 de março de 2020

O deus maligno de nossos dias


No séc. XVI o filósofo Descartes desconfiava que um deus maligno podia nos enganar o tempo todo. Para evitar isso, propôs como método de pensamento o exercício da dúvida. Hoje, o deus maligno são as fake News. Dada a maneira como têm feito a cabeça das varas de porcos descerebrados, desconfio que brevemente todos chafurdaremos na mesma lama. 

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 4 de março de 2020

Maridos jovens e velhos - Nelson Rodrigues



(...) Ontem vou dobrar a esquina da rua Irineu Marinho quando uma voz me chama: - "Nelson, Nelson!". Viro-me e dou de cara com um gordo, desses que têm uma papada maior do que a de Dumas pai. Não sei se sou famoso. Mas admitindo que o seja, tenho um tipo de ralação inefável: - o "desconhecido íntimo". São sujeitos que eu nunca vi e que me tratam com uma intimidade jucunda e fulminante. Pois o gordo citado já abria para mim riso total.
Antes de me estender a mão enxugou-a num vasto lenço, explicando: - "Suo muito nas mãos". De minha parte tive bastante descaro e o tratei como a um amigo de infância. E ele me perguntava: - "Não se lembra mais de mim?". Há um suspense e o desconhecido íntimo insiste: - "Vê bem". Palavra de honra, eu não me lembrava. Ao longo de minha vida tenho tido vários amigos gordos. Mas não conseguia me lembrar nem daquela papada, nem daquelas bochechas. Na minha frente ele continuava a enxugar as mãos de um suor talvez imaginário.
E, súbito, exausto do suspense, o outro dá o berro: - "Eu sou o Neves!". Sim, era um Neves radiante de o ser. O Neves, o Neves! E o simples nome deflagrou em mim todo um maravilhoso fluxo de memória. Na minha infância profunda o Neves fora meu vizinho. Muitas vezes pulara eu o muro para ir roubar carambolas no seu quintal. Disse-lhe: - "Se me lembro!". E, já varado de nostalgia, suspirei: - "Bom tempo, bom tempo".
(...)
Foi uma conversa, entre nós dois, que se arrastou por hora, hora e meia. Falta-me espaço para contar todas as verdades eternas que dissemos um ao outro. Mas estava ficando tarde e quis me despedir. Foi aí que, mudando o tom, o Neves exala um gemido. Baixando a voz, começa: - "Preciso de uma opinião, um palpite". Novo gemido. - "É o seguinte: tenho uma filha linda, linda. Dezoito anos, aluna da PUC, um crânio. Mais inteligente do que eu, do que a mãe, do que os tios. Um portento. A garota estava noiva de um rapaz de vinte anos". Faz uma pausa e puxa um cigarro. Ou por outra: - o Neves não fuma. Não puxa o cigarro e diz trêmulo: - "Com data marcada para o casamento, minha filha se apaixona, e sabe por quem?".
Disse, por entre lágrimas: - "Por um velho". E como ele chorava na via pública ao meu lado, tive uma vergonha brusca e desalmada daquele pranto de gordo. Não sei por que, talvez injustamente, sempre achei que a lágrima do magro constrange menos. Apelei: - "Não faça isso!". Olhava para os lados, esbaforido, como se o homem que chora fosse, por isso, obsceno: - "Filha única! Filha única!". Arrisquei a pergunta: - "Mas é tão velho assim?". Disse: - "Quarenta anos!".
O Neves estaria disposto a aceitar que a menina deixasse um jovem por outro jovem. E repetia, desatinado: - "Mas, por um velho! Um velho!". Digo-lhe: - "Calma, calma!". Pula, furioso: - "Você diz calma porque a filha não é sua. Nós somos calmíssimos com as filhas dos outros. Queria ver se fosse contigo. Responde: não é uma tragédia?" Fui taxativo: - "Tragédia nenhuma! Pelo contrário: sorte para sua filha, sorte para você, para a sua mulher, para a sociedade brasileira. Você e o Brasil estão de parabéns". Aterrado, balbucia: - "Que piada é essa?".
Tive de jurar-lhe que não fazia nenhuma piada. Estava falando com uma seriedade total. Expliquei o que acho: - a esposa pode ter qualquer idade e não importa. Mas o marido não pode ser jovem. É trágica a união do homem e da mulher da mesma idade. Falei da minha experiência pessoal. Aos vinte anos eu não sabia como se cumprimenta uma mulher, como se diz "bom dia" a uma mulher, como se olha, ou sorri para uma mulher, como se protege e como se salva uma mulher. Claro que, aos dezessete, vinte anos, o sujeito tem uma plenitude de bárbaro. Mas é uma vitalidade cega, feroz, destrutiva. Quando marido e mulher são jovens a convivência é o próprio inferno. Nunca se improvisou um marido. Marido é métier, é tempo, é virtuosismo, sabedoria, lúcida paciência.
O Neves repetia, fora de si: - "Mas o cara tem quarenta anos!". Parecia-lhe que, aos quarenta anos, o homem é de uma velhice infinita, milenar. Achei graça no seu terror. Disse-lhe que, a partir dos quarenta, o homem já pode ser marido. Aprendeu fazendo sofrer outras mulheres, dilacerando outras mulheres. Ao passo que, aos vinte, com a sua feroz vitalidade sem alma, ele pode ser tudo, menos marido. Não tem nem alma, porque a alma vem depois, vem com o tempo. Neves ouvia, atônito. Por fim, admitiu: - "Realmente, aos vinte anos eu era uma boa besta". E pergunta, quase convertido: - "Quer dizer que não é uma desgraça?". Só faltei jurar: - "Uma sorte grande" (...).

Do livro O óbvio ululante. Companhia Das Letras.

Cadelão e seus amigos e suas mães loucas

Gente, esse cara é muito louco!

https://www.youtube.com/watch?v=hkE8WpNf21A&t=64s

Cervejinha e barzinho: Por que o brasileiro ama falar no diminutivo


Para um país tão famoso por suas grandes coisas, o Brasil pode, de uma maneira engraçada, ser considerado a terra dos diminutivos; praticamente nenhuma palavra está imune à diminuição.

Eu estava no Brasil havia menos de 24 horas quando me revelaram um segredinho. Em um barzinho, quando o sol se punha, um novo amiguinho brasileiro que conheci no meu hostel no Rio de Janeiro tinha uma garrafa gelada de cerveja Antarctica na mão.

Conversando sobre a noite que teríamos pela frente, ele nos serviu a bebida e me disse: "Se você quiser falar com uma garota hoje à noite, não a chame para tomar uma cerveja; pergunte se ela gostaria de uma cervejinha. Ela vai adorar se você usar essa palavra".
E foi assim que fui apresentado à fofa, porém complicada conversinha brasileira.
Não falo daqueles papinhos gentis sobre o tempo, mas do hábito que os brasileiros têm de usar diminutivos para dar um charme às suas frases, adicionando o sufixo inho/inha ou zinho/zinha.
Para muitos brasileiros, é como se uma montanha de diminutivos mudasse o sabor de suas palavras nesse processo.

Lembrança da infância

A meteorologista Carine Malagolini, de São Paulo, diz que os diminutivos são uma forma de conversa infantil que os brasileiros nunca deixaram para trás.
"Usamos muitos diminutivos e muitas vezes sem perceber. Eu acho que o uso deles veio da infância, porque nós ouvíamos e conversávamos assim com nossos pais. Por exemplo, eles perguntavam 'Você quer uma bananinha?'", diz.
Literalmente, os inhos e inhas fazem as coisas serem menores, efetivamente suavizando uma palavra, tornando-a fofa e gentil. E enquanto em inglês diminutivos são vistos como algo infantil (gatinho, cãozinho, mamãezinha), todo mundo no Brasil, de políticos a médicos, utiliza-os sem qualquer indício de ironia.
Para um país tão famoso por suas grandes coisas - a Amazônia, o Cristo Redentor e o Carnaval - o Brasil pode, de uma forma engraçada, ser considerado a terra dos diminutivos.

Praticamente nenhuma palavra está imune à diminuição.


Contexto é importante

Mas logo descobri que os diminutivos podem acrescentar todo tipo de significado oculto que pode fugir à percepção de um estrangeiro.
Contexto é tudo nessa dança linguística. Como meu novo amigo brasileiro depois me explicou, usar "cervejinha" em vez de "cerveja" implicava um convite inocente e amistoso, sem nenhuma intenção de se embebedar até tarde da noite e tudo o que isso envolve. "Genial", pensei. "Um sufixo pode dizer tudo isso?"

O linguista da Universidade de Brasília Marcos Bagno explica: "O diminutivo em 'inho' e 'inha', além de indicar o tamanho pequeno de algo, traz uma sensação de bondade e afeição - muito característicos do espírito brasileiro".

A advogada Suzana Vaz, do Rio de Janeiro, é uma das muitas brasileiras que adoram usar diminutivos. Antes de falarmos deste hábito linguístico, ela admitiu que nunca tinha realmente notado o quanto ela os usava. E explicou que "pessoas doces geralmente falam assim".
"Então, quer dizer que você é doce ou que os brasileiros são em geral?", perguntei.
"Os brasileiros são mais calorosos, amorosos. Eles gostam de contato, do corpo a corpo. Eles são vivazes. Falar no diminutivo é uma forma de carinho na maior parte do tempo, é a suavidade na fala ", disse ela.

Esperar um minutinho é uma eternidade


O engraçado dos diminutivos no Brasil é que eles muitas vezes suavizam tanto o significado das palavras que acabam dando a elas um sentido oposto.

Como quando minha namorada brasileira me pediu para "esperar só um minutinho" enquanto ela se arrumava. Depois de esperar mais 15 desses alegados pequenos minutos, perguntei como ela poderia dizer um "minuto" como "um minutinho" com a consciência tranquila.
"Mas isso faz com que esses minutos passem mais rápido", ela me assegurou com um sorriso amoroso, o diminutivo saindo de sua língua como se pudesse dobrar o tecido do espaço e do próprio tempo.
Da mesma forma, uma vez fui convidado para uma festa em uma "casinha". Algum tempo depois, meu Uber estacionava em frente a uma mansão de quatro andares com uma piscina.
"Bela 'casinha'", eu disse ao dono. "Ah, sim", ele riu. "Isso não significa que a casa é pequena, significa que é um lugar aconchegante onde você deve se sentir confortável e bem-vindo."
E no verdadeiro estilo brasileiro, em meio a uma noite de risadas e dança com um bando de estranhos, me senti em casa.

E apesar do que eu disse anteriormente, a chamada "cervejinha" normalmente se transforma em uma mesa cheia de garrafas vazias no fim da noite.


Com exemplos como esses se acumulando, comecei a entender o fato de que usar diminutivos no Brasil pode ser tanto uma maneira divertida de falar quanto literal.


O professor de português Jean Fonseca, da escola de idiomas Caminhos, nota que há casos de diminutivos que se transformaram em outras palavras.

Camisa é a palavra para a peça de roupa em português, então, camisinha naturalmente levaria você a acreditar que é uma camisa menor. Errado. No Brasil, camisinha é, na verdade, o nome popular do preservativo para o sexo. "[O nome camisinha] foi usado como uma estratégia para popularizar o preservativo entre as pessoas", fala Fonseca.
"O nome original de 'preservativo' foi apelidado de 'camisa de Vênus' por causa da deusa romana do amor. E aí se tornou 'camisinha'.

Poder de mudar as coisas

Mas os diminutivos no Brasil também têm seu lado subversivo. Tal é o seu poder que eles podem fazer algo ruim soar como algo bom, algo rude soar como algo agradável e algo chato soar como algo divertido.
Em nenhum lugar eu notei brasileiros tirarem mais proveito disso do que com apelidos.
Descobri isso quando visitei a pequena cidade costeira de Rio das Ostras, a algumas horas de carro do Rio. É um lugar onde gringos loiros como eu não são tão comuns, me transformando um pouco em uma novidade.
Enquanto conversava com uma moradora local sob as árvores frondosas de um quiosque à beira-mar devorando pastéis de carne deliciosamente crocantes, ela disse que sempre quis conhecer seu próprio Gasparzinho. "Um o quê?", perguntei, incapaz de decifrar prontamente esse diminutivo.
Ela pegou o celular, foi até as imagens do Google e tirou uma foto de Gasparznho, o fantasma do desenho infantil. Eu comecei a rir.
Ser chamado de branco fantasmagórico pode não ser o maior elogio para um australiano, mas era mais fácil aceitar isso quando falado dessa maneira.
Diminutivos também podem ser pejorativos, dependendo do nível de maldade na língua.

Como o linguista Bagno me disse: "Também pode ser uma maneira de menosprezar uma pessoa", observando que os alunos se referem a um professor de quem não gostam como "professorzinho".


Os brasileiros também usam diminutivos para se safar, como uma maneira indireta de dizer algo não totalmente lisonjeiro.

O exemplo mais famoso disso é o bonitinho/a.
No começo, imaginei que isso era um elogio e, dependendo da situação, pode mesmo ser. Mas no léxico brasileiro também é transformado para se referir a alguém que talvez não seja o mais bonito da sala, mas que tenha seu próprio charme.
Pode ser o jeito que uma mulher diz "ele é um cara legal, mas eu não estou interessada", ou "bonitinho, mas mais como irmão".

Um dos escritores contemporâneos mais famosos do Brasil, Luís Fernando Veríssimo, resumiu toda essa situação confusa em seu ensaio "Diminutivos", quando escreveu sobre a "obsessão de seu país de reduzir tudo à menor dimensão, seja café, cinema ou vida".

"O diminutivo é uma maneira afetuosa e cautelosa de usar a linguagem. Carinhoso porque costumamos usá-lo para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E cauteloso porque também o usamos para desarmar certas palavras que, em sua forma original, são muito ameaçadoras", escreveu.

O que eu aprendi durante o meu tempo no Brasil é que você não pode levar esses diminutivos ao pé da letra, literalmente, mas deve usá-los à vontade.

Quando faz isso, está realmente no caminho certo para falar como um brasileiro.

E se você estiver no Brasil procurando praticar esse tipo de conversinha fofa, mas complicada, lembre-se do primeiro passo: peça a eles para fazerem isso com uma cervejinha. Praticamente ninguém no Brasil dirá não a isso.
Lost in Translation é uma série da BBC Travel que explora encontros com idiomas e como eles são refletidos em um lugar, em pessoas e na cultura.

Diminutivos - Luís Fernando Veríssimo




Sempre pensei que ninguém batia o brasileiro no uso do diminutivo, essa nossa mania de reduzir tudo à mínima dimensão, seja um cafezinho, um cineminha ou uma vidinha. Só o que varia é a inflexão da voz. Se alguém diz, por exemplo, "Ô vidinha", você sabe que ele está se referindo a uma vida com todas as mordomias. Nem é uma vida, é um comercial de cigarro com longa metragem. Um vidão. Mas se disser "Ah vidinha..." o coitado está se queixando dela, e com toda a razão. Há anos que o seu único divertimento é tirar sapatos e fazer xixi. Mas nos dois casos o diminutivo é usado com o mesmo carinho.
 O francês tem o seu "tout petit peu", que não é um diminutivo, é um exagero. Um "pouco todo pequeno" é muita explicação para tão pouco. Os mexicanos usam o "poco", o "poquito" e - menos ainda que o "poquito" - o "poquetím". Mas ninguém bate o brasileiro.
 Era o que eu pensava até o dia, na Itália, em que ouvi alguém dizer que alguma coisa duraria um "mezzoretto". Não sei se a grafia é essa mesma, mas um povo que consegue, numa palavra, reduzir uma meia hora de tamanho - e você não tem nenhuma dúvida de que um "mezzoretto" dura os mesmos trinta minutos de uma meia hora convencional, mas passa muito mais depressa - é invencível em matéria de diminutivo.
 O diminutivo é uma maneira ao mesmo tempo afetuosa e precavida de usar a linguagem. Afetuosa porque geralmente o usamos para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E precavida porque também o usamos para desarmar certas palavras que, na sua forma original, são ameaçadoras demais.
 "Operação", por exemplo. É uma palavra assustadora. Pior do que "intervenção cirúrgica", porque promete uma intervenção muito mais radical nos intestinos. Uma operação certamente durará horas e os resultados são incertos. Suas chances de sobreviver a uma operação... sei não. Melhor se preparar para o pior.
 Já uma operaçãozinha é uma mera formalidade. Anestesia local e duas aspirinas depois. Uma coisa tão banal que quase dispensa a presença do paciente.
 - Alô, doutor? Olha, aquele meu quisto no braço direito que nós íamos tirar hoje? A operaçãozinha?
 - Sim.
 - Não vou poder ir, mas o Asdrúbal vai no meu lugar.
 - O Asdrúbal?
 - Meu assistente direto aqui na firma. Homem de confiança.
 - Mas ele vai fazer a operaçãozinha por você?
 - Ele é o meu braço direito, doutor.
 Se alguém disser que precisa ter uma conversa com você, cuidado. É coisa da maior importância. Os próprios destinos do Pacto do Atlântico podem estar em jogo. Uma conversa é sempre com hora marcada.
 Já uma conversinha raramente passa do nível da mais cândida inconsequencia. E geralmente é fofoca. A hora para uma conversinha é sempre qualquer hora dessas.
 Num jogo você arrisca tudo, até a hora. Num joguinho aceita-se até o cheque frio.
 Entre ter um caso e ter um casinho a diferença, às vezes, é a tragédia passional.
 No Brasil, usa-se o diminutivo principalmente em relação à comida. Nada nos desperta sentimentos tão carinhosos quanto uma boa comidinha.
 - Mais um feijãozinho?
 O feijãozinho passou dois dias borbulhando num daqueles caldeirões de antropófagos com capacidade para três missionários. Leva porcos inteiros, todos os miúdos e temperos conhecidos e, parece, um missionário. Mas a dona de casa o trata como um mingau de todos os dias.
 - Mais um feijãozinho?
 - Um pouquinho.
 - E uma farofinha?
 - Ao lado do arrozinho?
 - Isso.
 - E quem sabe mais uma cervejinha?
 - Obrigadinho.
 O diminutivo é também uma forma de disfarçar o nosso entusiasmo pelas grandes porções. E tem um efeito psicológico inegável. Você pode passar horas tomando "cervejinha" em cima de "cervejinha" sem nenhum dos efeitos que sofreria depois de apenas duas cervejas.
 - E agora, um docinho.
 E surge um tacho de ambrosia que é um porta-aviões.

segunda-feira, 2 de março de 2020

100 frases selecionadas de Nelson Rodrigues


Nelson Rodrigues foi o maior frasista brasileiro, o nosso Rochefoucauld. Com a contribuição milionária de Erika Nakanura, selecionamos 100 máximas que provam isso.
  • A adúltera é a mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela.
  • A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual.
  • A dúvida é autora das insônias mais cruéis. Ao passo que, inversamente, uma boa e sólida certeza vale como um barbitúrico irresistível.
  • A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.
  • A liberdade é mais importante do que o pão.
  • A maioria das pessoas imagina que o importante, no diálogo, é a palavra. Engano, e repito: – o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão.
  • A pior forma de solidão é a companhia de um paulista.
  • A platéia só é respeitosa quando não está a entender nada.
  • A prostituta só enlouquece excepcionalmente. A mulher honesta, sim, é que, devorada pelos próprios escrúpulos, está sempre no limite, na implacável fronteira.
  • A televisão matou a janela.
  • A verdadeira grã-fina tem a aridez de três desertos.
  • Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.
  • Amar é dar razão a quem não tem.
  • Amar é ser fiel a quem nos trai.
  • Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas de ambos os sexos.
  • As grandes convivências estão a um milímetro do tédio.
  • Com sorte vc atravessa o mundo, sem sorte vc não atravessa a rua.
  • Começava a ter medo dos outros. Aprendia que a nossa solidão nasce da convivência humana.
  • Copacabana vive, por semana, sete domingos.
  • D. Helder só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva.
  • Desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e neurastênica.
  • Desconfio muito dos veementes. Via de regra, o sujeito que esbraveja está a um milímetro do erro e da obtusidade.
  • Deus está nas coincidências.
  • Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro.
  • É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez.
  • É preciso trair para não ser traído.
  • Em muitos casos, a raiva contra o subdesenvolvimento é profissional. Uns morrem de fome, outros vivem dela, com generosa abundância.
  • Entre o psicanalista e o doente, o mais perigoso é o psicanalista.
  • Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.
  • Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais doce político, tenha senso moral.
  • Existem situações em que até os idiotas perdem a modéstia.
  • Falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista.
  • Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.
  • Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário.
  • Invejo a burrice, porque é eterna.
  • Jovens: envelheçam rapidamente!.
  • Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos…
  • Na mulher, certas idades constituem, digamos assim, um afrodisíaco eficacíssimo. Por exemplo:- 14 anos!
  • Nada nos humilha mais do que a coragem alheia.
  • Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.
  • Não admito censura nem de Jesus Cristo.
  • Não damos importância ao beijo na boca. E, no entanto, o verdadeiro defloramento é o primeiro beijo na boca. A verdadeira posse é o beijo na boca, e repito: – é o beijo na boca que faz do casal o ser único, definitivo. Tudo mais é tão secundário, tão frágil, tão irreal.
  • Não existe família sem adúltera.
  • Não há nada que fazer pelo ser humano:o homem já fracassou.
  • Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.
  • Nem toda mulher gosta de apanhar. Só as normais.
  • Nossa ficção é cega para o cio nacional. Por exemplo: não há, na obra do Guimarães Rosa, uma só curra.
  • Num casamento, o importante não é a esposa, é a sogra. Uma esposa limita-se a repetir as qualidades e os defeitos da própria mãe.
  • Nunca a mulher foi menos amada do que em nossos dias.
  • O adulto não existe. O homem é um menino perene.
  • O amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira. É abjeto que um homem deseje a mãe de seus próprios filhos.
  • O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.
  • O asmático é o único que não trai.
  • O biquíni é uma nudez pior do que a nudez.
  • O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.
  • O Brasil é muito impopular no Brasil.
  • O brasileiro é um feriado.
  • O brasileiro, quando não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte.
  • O cardiologista não tem, como o analista, dez anos para curar o doente. Ou melhor: – dez anos para não curar. Não há no enfarte a paciência das neuroses.
  • O casamento é o máximo da solidão com a mínima privacidade.
  • O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota.
  • O homem começa a morrer na sua primeira experiência sexual.
  • O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.
  • O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da imaturidade.
  • O morto esquecido é o único que repousa em paz.
  • O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca.
  • O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é um orçamento.
  • O ônibus apinhado é o túmulo do pudor.
  • O pudor é a mais afrodisíaca das virtudes.
  • O puro é capaz de abjeções inesperadas e totais e o obsceno, de incoerências deslumbrantes. Somos aquela pureza e somos aquela miséria. Ora aparecemos varados de luz, como um santo de vitral, ora surgimos como faunos de tapete.
  • O sábado é uma ilusão.
  • O Ser Humano, tal como imaginamos, não existe.
  • Os homens mentiriam menos se as mulheres fizessem menos perguntas.
  • Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.
  • Perfeição é coisa de menininha tocadora de piano.
  • Qualquer menino parece, hoje, um experimentado e perverso anão de 47 anos.
  • Quem nunca desejou morrer com o ser amado nunca amou, nem sabe o que é amar.
  • Se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro.
  • Se os fatos são contra mim, pior para os fatos.
  • Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.
  • Sem paixão não dá nem para chupar picolé.
  • Sexta feira é o dia em que a virtude prevarica.
  • Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam.
  • Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.
  • Só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata.
  • Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo podia-se andar nu.
  • Sou reacionário. Minha reação é contra tudo que não presta.
  • Subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos.
  • Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante.
  • Toda coerência é, no mínimo, suspeita.
  • Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.
  • Toda mulher bonita tem um pouco de namorada lésbica em si mesmo.
  • Toda mulher gosta de apanhar. Só as neuróticas reagem.
  • Toda unanimidade é burra.
  • Todas as mulheres deviam ter catorze anos.
  • Todo amor é eterno. Se não é eterno, não era amor.
  • Todo desejo é vil.
  • Todo tímido é candidato a um crime sexual.
  • Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.
100. Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora.


domingo, 1 de março de 2020

Um pouco de Cacaso



CACASO  (ANTÔNIO CARLOS DE BRITO)
(1944-1987)
Nasceu em Uberaba (MG), no dia 13 de março de 1944. Com grande talento para o desenho, já aos 12 anos ganhou página inteira de jornal por causa de suas caricaturas de políticos. Antes dos 20 anos veio a poesia, através de letras de sambas que colocava em músicas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Seu primeiro livro, "A palavra cerzida", foi lançado em 1967. Seguiram-se "Grupo escolar" (1974), "Beijo na boca" (1975), "Segunda classe" (1975), "Na corda bamba" (1978) e "Mar de mineiro (1982). Seus livros não só o revelaram uma das mais combativas e criativas vozes daqueles anos de ditadura e desbunde, como ajudaram a dar visibilidade e respeitabilidade ao fenômeno da "poesia marginal", em que militavam, direta ou indiretamente, amigos como Francisco Alvim, Helena Buarque de Hollanda, Ana Cristina Cezar, Charles, Chacal, Geraldinho Carneiro, Zuca Sardhan e outros. No campo da música, os amigos/parceiros se multiplicavam na mesma proporção: Edu Lobo, Tom Jobim, Sueli Costa, Cláudio Nucci, Novelli, Nelson Angelo, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato e muitos mais. Em 1985 veio a antologia publicada pela Editora Brasiliense, "Beijo na boca e outros poemas". Em 1987, no dia 27 de dezembro, o Cacaso é que foi embora. Um jornal escreveu: "Poesia rápida como a vida".

Em 2002 é lançado  o livro "Lero-Lero", com suas obras completas.
Fonte da biografia: www.releituras.com/

Uma girafa chamada Sofia desfila nas avenidas



Pela manhã houve um aguaceiro.
Agora, sábado de tarde, a chuva está mansa.
Momento ideal para observar três anões,
Zangado e Feliz e Dengoso,
sorridentes e imóveis e amarelados pelo sol e pela chuva,
descansando eternamente debaixo da figueira,
num lugar de minha infância.

Naquele tempo havia por aqui
um mandiocal cravado na terra vermelha,
e hoje há uma bela piscina
e um muro fazendo pose,
ao lado de trepadeiras e coqueiros
e limoeiros e outras plantas
e flores e grama.

Eis a prova irrefutável da transformação.
Minha barriga de cervejeiro quarentão
também passou por metamorfoses,
e não é saudosismo do garoto sarado
de 18, 20, 20 e poucos anos
no auge das paixões e bronhas.

Hum... Perdoem-me por permitir 
que a chuva regue antigas lembranças.
Talvez eu valorize mais uma frase carregada de estilo
do que recordar vivências que marcaram
o mundo infantil.
Quem me aconselhou foi Guimarães Rosa,
o do "Grande Sertão: Veredas",
num certo sonho.
Ele disse:
"Independente da realidade,
seja passado ou presente ou futuro,
faça literatura, faça literatura".
Segundo o próprio,
uma frase bem elaborada, estilosa,
é mais importante do que os efeitos
do Coronavírus, ou dos problemas ambientais, ou...
Não se preocupe se a maioria disser
que você faz algo estranho,
como se fosse uma girafa chamada Sofia,
ameaçada de extinção,
que teima em fazer malabarismos nas avenidas.

Tudo se transforma...
E não quero (e nem posso) carregar nas costas
os problemas desse mundo,
nem me prender às redes
de insônias políticas e ideológicas.
A arte anda meio abandonada,
ou fora de moda.
Para se embrenhar no ato criativo
é preciso transcender,
aceitar-se girafa,
caminhante solitária,
incompreendida pela multidão,
ideologicamente ensandecida.
Se nem Cristo e Buda e Maomé e Alá,
nem os santos e Marx e Freud e outros mais
resolveram os problemas desse mundo,
por que serei YO o herói?

Eba! Acabo de receber uma mensagem pelo WhatsApp...
Alguns amigos me chamam do bar.
Lá, depois de 3 ou 4 copos,
teremos encontrado soluções,
com nossos belos discursos,
(como se fôssemos lideres de classes trabalhadoras)
para resolver os problemas que nos cercam.

(B. B. Palermo)

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Os ratos voltaram



Às vezes o canto do olho flagra uns ratinhos fantasmas disparando entre os móveis da sala. Falei pro Beiço, esses dias, de que tenho recebido no cafofo essas loucas companhias.
Um dos ratinhos conseguiu entrar na lareira e escalar sua parte interna. Disse ao amigo que penso fazer, à noite, aquele fogo e cheirar algo sinistro no ar.
Beiço chamou a atenção para a crueldade do meu ato. Eu retruquei: "Mudei a lei do Darvin. Não é o mais forte que sobrevive, e sim o mais cruel".
O Beiço me mandou tomar naquele lugar e aí acertamos a conta e partimos pra outro boteco.
- Tu é doido. Vive queimando dinheiro com bebidas e mulheres e agora quer queimar um pobre camundongo.
- Meu, é que ontem de noite sonhei que esse roedor de merda raptou minha carteira e roeu toda a grana que juntei (li-ci-ta-men-te) durante a semana.
- Hehehe... Lembrei de um livro que li na Década de Oitenta, "Os ratos", de Dyonélio Machado. O personagem principal, Naziazeno, teve um sonho parecido. A diferença é que ele era um trabalhador cheio de angústias e dificuldades financeiras, enquanto tu, que eu saiba, é um desocupado dos bem folgados...

(B. B. Palermo)

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...