Deixa eu contar aqui: meu português não é bom. Não é. Sei pouco das regras. Crase? Odeio. Os porquês? Nenhum sentido. Concordância: bastante dificuldade. Esse texto que você lê agora está bonitinho porque a Gabriele Branco revisa ele para nós. Mexe aqui e ali e puxa minhas orelhas quando passo muito do limite. Mas aí você diz: ah, vá, conta outra. Como pode ter o português ruim e querer ser escritora? Como pode dizer que sabe nada e ter feito 23 acertos das 25 questões na prova de português da UFRGS? Lógica, meus amigos. A simples lógica. Quando aluna, eu não entendia como meus colegas podiam ter tanta dificuldade na matéria. Para mim, era evidente. Eu lia a frase, às vezes em voz alta, e entendia se fazia sentido ou não. Se encaixava. Interpretação, então? Puts, parecia zoeira. Só lia obviedades.
É um resultado da infância. Dos livros de pano que eu brincava na banheira ainda sem saber ler. Do “Uma História por Dia” que os meus pais liam todos os dias antes de eu dormir. Minha vó conta que por vezes, tarde da noite, ela cansada, tentava pular as páginas ou resumir o trecho do livro, mas não me enganava: “Tá errado, vó, volta!”. Era quase um jogral, tamanha minha ansiedade em entender as letras de uma vez por toda. Não fui prodígio, aprendi o bê-á-bá no tempo normal. E me agarrei às páginas que se abriam à minha frente. Às revistinhas da Turma da Mônica que chegavam mensalmente lá em casa e eu economizava para não devorar tudo na mesma tarde. Às coleções do Erico Verissimo, Monteiro Lobato e aos contos de fada que se empoleiravam na estante. E aí, numa crescente para Pedro Bandeira, Os Karas, a biblioteca da escola, Agatha Christie, Sidney Sheldon, e até as leituras obrigatórias de sala de aula – que à época eram chatas para caramba, mas eu encarava até o final, mesmo sem entender bulhufas (tchê, recomendem livros com temas que interessem aos pré-adolescentes). Foi assim que eu aprendi Português. Assimilei. Tipo os números de vocês.
Eu lia e via se o negócio era coerente ou não. As regras ficaram para depois.
Então vocês imaginam o meu choque ao me deparar com um país que ocupa a posição de número 18 dos lugares com menos acesso à literatura do mundo. O Laos. O dado atual mostra que pouco mais da metade da população vai à escola (61%) e, dessa parcela, a maioria só teve acesso aos livros didáticos ou textos entregues no colégio. Vamos calcular o quê? Menos de um quarto da sociedade pegou, cheirou, apreciou, folheou, dobrou uma orelha de burro para marcar uma página, sublinhou com caneta marca-texto, deixou para terminar o capítulo no outro dia. A experiência da literatura segue um desafio para o país. Livros são artigos raros, quanto mais livrarias e bibliotecas. Outra questão é pertinente: como consequência, quase não há autores na língua local. Quando os laosianos leem, recorrem à língua inglesa ou francesa. Ou seja, há também uma forte campanha em prol do ensino destes idiomas na região. Difícil.
Eu me preocupo com quem não lê. Não só pela questão do português, ou da gramática da língua que for. Livros são companhia, fuga, fantasia, miragem, poesia, amor, saudade, insights. Nestes seis meses na estrada, li uma média de um título a cada 10 dias. Se estou triste, então, mergulho de ponta-cabeça nos personagens, nas frases, naquele universo ali encadernado. Sou capaz de ficar horas presa no quarto do hotel, imersa, fechada, transportada. Quando terminei a saga de “A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, no Camboja, senti que um pedaço meu tinha ficado preso naquelas páginas, fiquei sozinha. Que loucura, né? Aí que me refiro. Por isso me preocupo. Tenho a impressão de que quem não consegue se conectar a um livro tem dificuldade de viajar. Não se permite criar, entrar em devaneios, imaginar pessoas, cenários e contextos.
Livros dão ideias. Por isso foram queimados em diversos países enquanto na repressão ou ditadura. Propagam magia. Bruxaria, mesmo.
Tenho sorte, por exemplo, de ter criado um Harry Potter bem diferente de Daniel Radcliffe na minha mente. Ninguém precisou me induzir a visualizar o personagem. Eu consegui desenhar ele na minha imaginação, com a ajuda de J. K. Rowling, óbvio, bem antes do cinema. Sei de quem tenha aliviado a depressão atrás das letras e frases bem formuladas. Eu uso o meio como remédio contra a solidão, o tédio, a insônia, a falta de inspiração. Por isso temo pelas crianças do Laos e penso o quanto aquela vida dura de um lugar carente de tanto poderia ser aliviada, em partes, por um emaranhado de sílabas. Talvez seja ingenuidade minha, mas me parece um antídoto simples para o veneno da realidade.
E você aí, não lê porque sim. “Não gosto”. A gente só não gosta do que não entende. “Não tenho tempo”. Mas passa horas jogando Candy Crush. “Tenho dificuldade de concentração”. Troca o livro ou o ambiente, provavelmente, você não se identificou. “Não quero”. Ok, aí estamos conversando. Entendo que existam outras prioridades, outros caminhos e aquela preguiça de imaginar. Dá um trabalhão invocar a criatividade e colocar o pé para fora do quadrado, mais econômico assistir séries em série. Mas, vem cá, se sobrar um tempo, manda os teus livros empoeirados para L’Etranger Books and Tea: P.O Box 148, Luang Prabang, Laos, 06000, e dê a chance para uma população carente de sonhar.
Outras maneiras de ajudar o Laos a ler:
Big Brother Mouse: O projeto já publicou cerca de 30 livros, a maioria por crianças que são treinadas por professores voluntários. Qualquer doação é bem-vinda – você pode também “patrocinar” um livro.
The Language Project: Auxilia as crianças a aprender inglês e monta bibliotecas em escolas e templos para incentivar a literatura. A maneira de ajudar é doar milhas áreas para bombar a lista de livros do projeto no Amazon.com.
(Zero Hora/revista Donna, 10 e 11 de novembro de 2018)