domingo, 9 de outubro de 2011

Janela sobre as paredes - Eduardo Galeano

Escrito em um muro de Montevidéu: As virgens têm muitos Natais, mas nenhuma Noite Boa.

Em Buenos Aires: Ressuscitaremos, ainda que isso nos custe a vida!

Em Quito: Quando tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas.

No México: Salário mínimo para o presidente, para ver o que ele sente.

Em Lima: Não queremos sobreviver. Queremos viver.

Em Havana: Tudo é dançável.

No Rio de Janeiro: Quem tem medo de viver não nasce.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Para Maria da Graça - Paulo Mendes Campos



Quando ela chegou à idade avançada de 15 anos eu lhe dei de presente o livro Alice no País das Maravilhas.


Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucuras. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.


Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego"?


Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.


A sozinhez (esquece esta palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. "A porta do poço!". Só as criaturas humanas, nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados, conseguem abrir uma porta bem fechada e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.


Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e tens a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências.


Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece geralmente às pessoas que comem bolo.


Maria, há uma sabedoria social ou de bolos; nem toda sabedoria tem de ser séria ou profunda.


A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de acordo em casa de enforcado. Por isso te digo para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostaria de gatos se fosse eu?"


Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os corredores chegam exausto a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não conseguirá saber quem venceu. Para o bolso: se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupes com a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.


Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance." Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois um romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.


Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crecer novamente.


E escuta está parábola perfeita: Alice tinha diminuíndo tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida toda uma quantidade imensa de camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem-disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nosso domínio disfarçado de camundongo. Mas como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa médica para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixa preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de sofrimento ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.


Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".


Conclusão: a própria dor tem a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Tenho andado distraído


 
Meus pensamentos te querem perto, 
mas o eco dos labirintos que nos separam 
grita mais alto.

O sol já vinha capenga
e faltou energia. 
Inventei punhados de sonhos 
pra iluminar o meu dia.

Se eu perder meus cinco sentidos, 
do que poderei me lembrar? 
Tenho andado distraido. 
O cheiro do amor 
que ela me deixou 
comigo vai ficar.

Agora que o amor foi perdido
vivo a tempestade
no meio do oceano
- só tem mar se agitando
pra todo lugar!

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Com que lingua eu vou pra copa?


Não costumo dedicar muita atenção (até pela falta de tempo) às mensagens que recebo por e-mail. Mas essa daí achei divertida. Por isso a repasso a todos vocês.


CURSO 'THE BOOK IS ON THE TABLE'


O Brasil sediará a Copa de 2014.
Como muitos turistas de todo mundo estarão por aqui, é imprescindível o aprendizado de outros idiomas (em particular o inglês) para a melhor comunicação com eles.
Pensando em auxiliar no aprendizado, foi formulada uma solução prática e rápida!!
Chegou o sensacional e insuperável curso 'The Book is on the Table', com muitas palavras que você usará durante a Copa do Mundo de 2014.


Veja como é fácil!
a.) Is we in the tape! = É nóis na fita.
b.) Tea with me that I book your face = Chá comigo que eu livro sua cara.(essa é SEN-SA-CI-O-NAL !!!!! )
c.) I am more I = Eu sou mais eu.
d.) Do you want a good-good? = Você quer um bom-bom?
e.) Not even come that it doesn't have! = Nem vem que não tem!
f.) She is full of nine o'clock = Ela é cheia de nove horas.
g.) I am completely bald of knowing it . = To careca de saber.
h.) Ooh! I burned my movie! = Oh! Queimei meu filme!
i.) I will wash the mare. = Vou lavar a égua.
j.) Go catch little coconuts! = Vai catar coquinho!
k.) If you run, the beast catches, if you stay the beast eats! = Se correr, o bicho pega, se ficar o bicho come!
l.) Before afternoon than never. = Antes tarde do que nunca.
m.) Take out the little horse from the rain = Tire o cavalinho da chuva.
n.) The cow went to the swamp. = A vaca foi pro brejo!
o.) To give one of John the Armless = Dar uma de João-sem-Braço.


Gostou? Quer ser poliglota?
Na compra do 'The Book is on the table' você ganha inteiramente grátis o incrível 'The Book is on the table - World version'!!! Outras línguas:


CHINÊS
a.) Cabelo sujo : chin-champu
b.) Descalço: chin chinela
c.) Top less: chin-chu-tian
d.) Náufrago: chin-chu-lancha
f.) Pobre : chen luz, chen agua e chen gaz


JAPONÊS
a.) Adivinhador: komosabe
b.) Bicicleta: kasimoto
c.) Fim: saka-bo d.) Fraco: yono komo
e.) Me roubaram a moto: yonovejo m'yamaha
f.) Meia volta: kasigiro
g.) Se foi: non-ta
h.) Ainda tenho sede: kiro maisagwa


OUTRAS EM INGLÊS:
a.) Banheira giratória : Tina Turner
b.) Indivíduo de bom autocontrole: Auto stop
c.) Copie bem: copyright
d.) Talco para caminhar: walkie talkie


RUSSO
a.) Conjunto de árvores : boshke
b) Inseto : moshka
c.) Cão comendo donut's : Troski maska roska
d.) Piloto: simecaio patatof
e.) Sogra : storvo


ALEMÃO
a.) Abrir a porta : destranken
b.) Bombardeio: bombascaen
c.) Chuva: gotascaen
d.) Vaso: frask

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O vaivém

  
Zuza era um velho que trabalhava como carpinteiro.
Sua oficina estava sempre limpa, e as ferramentas eram bem cuidadas  e guardadas no seus devidos lugares.
O velho tinha a mania de batizar cada ferramenta com um nome.
O martelo chamava-se toc-toc, o formão rompe-rompe e o serrote, vaivém.
Quando um vizinho precisava de uma ferramenta, corria logo até a oficina do velho Zuza, para pedir emprestado. 
mas eles aprontavam ao velho, demorando pra devolver, ou até ficando com as ferramentas. Por isso o velho resolveu não emprestar mais.
Certo dia um menino, a pedido de seu pai, foi até a oficina, e disse:
- Papai pede para que o Senhor empreste o vaivém.
O velho Zuza fez uma carranca e respondeu assim:
- Menino, lembra do antigo ditado: "Mão vai, mão vem. Mão vem, mão vai. Mão vai, mão não vem, mão não vai mais!"?
E arrematou, dizendo pro guri:
- Volta e diz ao teu pai que, se vaivém fosse e viesse, vaivém ía, mas como vaivém vai e não vem, vaivém não vai! 

(Adaptado do livro Contos populares brasileiros, de Lindolfo gomes).

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Causos do Nono

Meu pai, Seu Carleto, levava uma vida exemplar. Se algum amigo ou vizinho saía da "verga", ele era chamado pra colocar as coisas no lugar.
Qualquer desavença familiar, briga de marido e mulher, ou algum vizinho ou conhecido que "loquiou", seu Carleto logo era chamado.
Um dia o filho do Bépi veio contá que seu pai tava variando. Pensava que era metade gente, metade animal. Era um vivente tranquilo, com seu palheiro e o mate, sua fala mansa. Mas ultimamente tinha um comportamento estranho. Meu pai quis saber detalhes do caso:
- Que animal ele pensa que é?
- Cavalo.
- Que metade?
- A de baixo.
Curioso, meu pai foi visitar o Bépi. Era hora do lanche da tarde, e o o Bépi mastigava seu milho.
- Buenas tardes - disse meu pai - um cavalo meu fugiu, e acho que veio pra essas bandas.
Bépi duvidava muito de que um cavalo de meu pai estivesse nas suas terras. Mesmo assim saíram para o campo. Meu pai a cavalo e seu Bépi trotando do seu lado. Olharam toda tropa. E então meu pai começou a examinar o Bépi de cima até embaixo.
- Tá me examinando por que? - perguntou seu Bépi, desconfiado.
Aí meu pai falou:
- Acho que tô reconhecendo meu cavalo.
- Tá louco? Eu sou o Bépi!
- Só até a cintura.
- Pra baixo trambém é meu!
- Então mostra a marca!
- O quê??
- Quero ver a marca na bunda. Se não tem marca, então é meu!
Discutiram uns minutos e, no fim, seu Bépi se convenceu de que não era metade cavalo. A família suspirou aliviada. Não aguentava mais a bosta no tapete!

***

Na hora de explicar uns acontecimentos estranhos, que deixavam todo mundo de queixo caído, meu pai recorria a um punhado de provérbios. Eis alguns deles:
"Mate e china, quanto mais novo, mais quente".
" Hai mil regras pra comê mas nenhuma pra cagá".
"Pra segurá mulher em casa e cavalo em campo aberto, só carece de um pau firme".
"A gengiva não morde mas segura os dente".
"Puro-sangue ou bagual, a bosta é igual".
"Meleca de rainha é igual à minha".
"Roda de carreta chega cantando e se vai gemendo".
"Mas vale ser touro brocha que boi tesudo".
"Más sagrado que Deus e a mãe, só dívida de jogo".
"Más triste que tia em baile".
"Cavalo de borracho sabe onde o bolicho dá sombra".
"Marido de parteira dorme do lado da parede".
"Viúva moça é como louça: já foi usada mas não se joga fora".
"Se Deus fez o mundo em sês dias, só no Rio Grande gastou cinco".

(História recontada a partir de L. F. Verissimo, do livro A velhinha de Taubaté. L&PM Editora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A crônica





Na Semana da Pátria postamos aqui a crônica intitulada "Meu ideal seria contar uma história...sobre nossa pátria", que foi inspirada na crônica de Robem Braga, Meu ideal seria escrever...
Apresentamos esse texto na abertura da Semana da Pátria do IMEAB (Instituto Municipal de Ensino Assis Brasil/Ijui/RS). A professora dessa escola e do CSCJ (Colégio Sagrado Coração de Jesus/ Ijuí/RS), Nilza Piovesan Mânfio, exercitou o gênero crônica com seus alunos das sextas séries do CSCJ, partindo do meu texto e da crônica de Rubem Braga. Vai, a seguir, um pouco dos resultados da oficina realizada por ela. 


CRÔNICA

A crônica é um gênero narrativo que trata de temas da atualidade. Normalmente é publicada em jornal ou revista. Destina-se à leitura diária ou semanal e trata de acontecimentos cotidianos.
A crônica se diferencia da notícia por não buscar a exatidão da informação. O cronista procura analisar os acontecimentos, dando a eles um colorido emocional, incluindo elementos de ficção e fantasia.
É um texto geralmente curto, escrito em 1ª pessoa, podendo conter diálogo ou não.

Leia algumas crônicas produzidas pelos alunos da 6ª série

Saudades daquele gaúcho - Júlia Dalmás

Saudades daquele gaúcho...
Que não se importava e colocava botas, bombacha, lenço no pescoço e vestia o orgulho de trabalhar no campo.
Que ao invés de cerveja e cigarro, tomava chimarrão e saboreava o churrasco.
Saudades daquele gaúcho que não se preocupava com contas para pagar, com roupas caras e com joias para a esposa. Que nas tardes de domingo reunia a família, tomava chimarrão e contava causos.
Saudades de quando esse mesmo gaúcho, cantava o hino do Rio Grande do Sul com orgulho, sem pensar muito em trabalho, ou no carro zero Km que tanto queria comprar.
Saudades daquele gaúcho, que passeava com seu cavalo na querência amada, só para sentir o vento bater no rosto e respirar o ar puro da natureza.
Hoje em dia o ar que respiramos é o da poluição, fazendo com que as árvores morram, deixando um ar pesado de tristeza.
E hoje, o gaúcho que vemos, é moderno, usa roupas de marca e anda em seu poderoso carrão.
O gaúcho de hoje perdeu a cultura, o orgulho, embora ainda se chame de forte. O gaúcho de hoje mais se parece um americano esbanjando chiqueza, do que aquele dos campos, que era forte, cultivava a cultura e suas raízes.




Ponto de vista - Giovani Pasquali Piovesan
 O juiz já estava no meio do campo e a TV ainda mostrava a novela das nove. No bar a torcidinha organizada aguardava o início com batata frita, refrigerante, cerveja, torrada e até xis. Estava lá ele, Afonsinho, o ídolo do time, o camisa 10, ansioso, pois poderia fazer o seu milésimo gol, e então, como sempre, ele faria de pênalti.
Num prédio ao lado, um grupo de empreendedores se decidia entre o produto novo e o velho que rende mais, mas eles sempre vão pelo caminho mais fácil.
Na rua, dois homens discutem, um sábio e um burro. O sábio fala uma frase e o menos inteligente não entende, e então repete a frase e sai se achando. Gostaria de saber por que a sociedade é assim? Por que é tudo pelo caminho mais fácil, por que não tentamos viver uma vida mais tranquila, sem tantas preocupações e mais feliz?

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Vidraça




A chuva envidraçou



Uma tela surreal


Com sua tinta incolor.






As nuvens no céu

eram para o menino


orquestras

de dinos e monstros.



Fiz a bolha de sabão


na garrafa de minha idade


abusei da infância


no tropel de


minhas brasas...



E abri vertentes


de mãos e rugas


doidas das minhas

asas!


sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O nariz - Luis Fernando Verissimo


Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sombrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.


- O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.
- Isso o quê?
- Esse nariz.
- Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei.
- Logo você, papai…


Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se.


- Tire esse negócio.
- Por quê?
- Brincadeira tem hora.
- Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou.
- Aonde é que você vai?
- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
- Mas com esse nariz?
- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque é um nariz…
- Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo o senhor, doutor…”) fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
- Ele enlouqueceu?
- Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi ele assim. Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
- Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.
- Vou. Aliás, não vou mais tirar esse nariz.
- Mas, por quê?
- Por quê não?


Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.


- Papai…
- Sim, minha filha.
- Podemos conversar?
- Claro que podemos.
- É sobre esse nariz…
- O meu nariz outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
- O nariz é meu e vou continuar a usar.
- Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
- Não tem porque não quer…
- Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?
- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença.
- Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
- Se não faz diferença, porque não usar?
- Mas, mas…
- Minha filha…
- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!


A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.


- Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento de meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar, Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como era antes.
- Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
- É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…


O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A arte de esquecer




Meu PC está com Alzheimer e eu me pergunto o que (não) fiz para evita-lo.
Tenho um blog que encho de histórias, boa parte contadas pelos outros, porque morro de medo de começar a sofrer desse mal.
A amnésia do meu computador, dizem, é porque ele está com a memória muito cheia. Mas eu não queria descartar o que gravei nele durante esses anos.
De minha parte, morro de medo de cair no esquecimento, por isso devoro textos e autores, como a traça que não quer morrer de fome.
Já estou sofrendo, imaginando o dia que for trocar o PC antigo por um atualizado. Não quero perder o rastro que nele deixei e, ao mesmo tempo, não quero me torturar diante de uma memória (cibernética?) quase ilimitada.
Já tive minha vontade de dilúvio, apagar tudo, começar do zero. Como fez Noé, continuar com o que se tem de melhor. Ou como faz a cozinheira, quando escolhe os grãos de feijão para colocar na panela. Porém, com as lembranças não dá para classificar, separar o joio do trigo. Temos que negociar com a memória a recordação das coisas ruins – por exemplo, as da infância que, mesmo camufladas, podem um dia retornar e nos atormentar.
Recebo uma mensagem por e-mail implorando para que não esqueça do Holocausto. Ainda mais diante de alguns discursos que circulam por aí dizendo que nada disso aconteceu.
Essa realidade me assusta: não estou exercitando, diariamente, a amnésia, ao olhar só para frente, instigado por desejos que não são meus desejos? É. Diariamente somos empurrados, pela sociedade, ao esquecimento.
Para fugir disso, rabisco agendas, tiro fotos de pessoas e lugares, invento frases com pretensão de serem pensamentos. Guardo caixas e caixas de objetos antigos, mesmo camuflados diante dos olhares desconfiados dos outros.
Na "necessidade" de chamar a atenção, perdi a noção do que é perene e do que é efêmero.
Como não há solução, porque é relativo o que permanece e o que é descartável, me divido entre o canto do sabiá nesse começo de primavera, os objetos (descartáveis?) que posso comprar com o salário que ganho, e a possibilidade (necessidade?) de manter viva a idéia de amor que seja mais do que paixão (efêmera?). 
Será que o Vinicius de Morais nos sacaneou quando disse, sobre o amor:

(...)Quem sabe a morte, angústia de quem vive

quem sabe a solidão, fim de quem ama
eu possa me dizer do amor ( que tive ) :
que não seja imortal, posto que é chama
mas que seja infinito enquanto dure.

Ah! Pelo menos do amor nós esperamos a perenidade. Mas o problema não é o amor em si: somos nós, que amamos do jeito que amamos!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Cada um com a sua vaca! - Ziraldo



Era uma vez dois irmãos. O pai deles morreu e eles herdaram duas vacas. Depois do enterro, foram dividir a herança.
- Zé, como vamos fazer pra saber qual é a sua vaca e qual é a minha?
- Olha, Tunico, tive uma idéia. Eu corto a orelha da minha vaca. A vaca com orelha fica sendo sua e a sem orelha fica sendo minha.
E assim fizeram. Mas eles tinham um vizinho que adorava enganar os outros e de noite foi lá e cortou a orelha da outra vaca. De manhã, os irmãos entraram em pânico:
- E agora Zé, como fazemos pra saber qual é a sua vaca e qual é a minha?
- Vamos cortar a outra orelha da sua vaca. A vaca que tem ainda uma orelha fica sendo minha e a sem orelhas fica sendo sua.
Concordaram. Mas, de noite, o vizinho foi lá e cortou a orelha da outra vaca também.
Na manhã seguinte, novo pânico.
- Que fazemos, Tunico?
- Vamos cortar os chifres.
E cortaram os chifres de uma das vacas pra fazer a diferença.
O vizinho foi lá e cortou os chifres da outra vaca.
E aí surgiu outro impasse.
- E agora, Zé?
- O rabo, Tunico.
E cortaram o rabo de uma das vacas.
- Agora a vaca com rabo é sua e a sem rabo é minha – disse o Tunico.
Na manhã seguinte, o vizinho malvado tinha cortado o rabo da outra vaca.
Os dois irmãos se desesperaram.
- E desta vez, o que vamos fazer?
Tunico pensou, pensou. Zé pensou, pensou. Ao mesmo tempo, os dois tiveram uma idéia:
- Vamos fazer o seguinte: você fica com a vaca branca e eu fico com a vaca preta.

Poetinhas, contenham-se!

  Não caminhava sozinho, estava rodeado de uma legião de capetas, rindo, zombando. Vestiam branco e jogavam pro alto seus cantos vindo...