segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Panis et circensis - Caetano Veloso e Gilberto Gil
Eu quis cantar, minha canção iluminada de sol
soltei os panos sobre os mastros no ar
soltei os tigres e os leões nos quintais
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer, de puro aço luminoso punhal
para matar o meu amor e matei
às cinco horas na Avenida Central
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar, folhas de sonho no jardim do solar
as folhas sabem procurar pelo sol
e as raízes procurar, procurar
mas as pessoas na sala de jantar
essas pessoas na sala de jantar
são as pessoas na sala de jantar
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
A CABEÇA DOS SONHOS E DOS OUTROS
Meus sonhos vivem bem informados
com tudo o que se passa
com parentes, amigos e conhecidos.
Quando se trata de mim
usam subterfúgios
falam através de enigmas
para me deixar confuso.
Meus sonhos são delicados
não querem abrir o jogo
para não me fazer sofrer.
E essa confusão toda
me faz pensar neles
por um bocado de tempo,
ao acordar pela manhã.
Pretensiosos,
eles tudo sabem
sobre tudo,
do amor eterno
ao amor verdadeiro...
É que eles não têm compromisso com o tempo,
que me enrola o tempo todo.
Abusados, meus sonhos riem dos amores
que encontro pelo caminho,
frágeis e passageiros.
Meus sonhos vivem fazendo acordos
com pessoas que me rodeiam e que convivo.
Fui sequestrado por meus sonhos, que anarquizam
minha cabeça, e a cabeça dos outros...
"...Somos prisioneiros não só da nossa cabeça, mas da cabeça dos outros, do que eles pensam a nosso respeito, do que imaginam que iremos fazer, das conclusões a que chegam, das interpretações que fazem sobre o que lhes contamos.
Não há escapatória. Estamos sujeitos ao que nossas narrativas revelam, e elas nem sempre revelam nossa pureza. Estamos sujeitos ao que nossos atos revelam, e eles nem sempre revelam o que sentimos. O que somos de verdade e o que queremos de fato, só nós sabemos. Só nós. Sós.
O planeta é povoado por bilhões de solitários tentando se comunicar em meio a situações de euforia, desespero, descrença e êxtase. Quantas vezes tentaram adivinhar o que sentíamos, e erraram. Julgaram nossas ações, e erraram. Tiveram certeza sobre nossos propósitos, e erraram. Balas perdidas disparadas a esmo, bilhões tentando compreender uns aos outros e passando longe do alvo. Reverenciamos tanto a conexão, mas ela segue mais rara do que nunca.
A cabeça do outro é nosso juiz mais implacável. Acreditamos que temos controle sobre nosso destino, mas esse controle está atrelado ao pensamento do outro sobre nós, o sentimento (ou ressentimento) que ele nutre a despeito de todas as nossas boas intenções.
Nossos pais, nossos amigos, nossos filhos, nossos clientes, nosso amor: tudo andará bem desde que sejamos fiéis ao que estava previsto. Mas somos seres imprevisíveis por natureza, o que nos faz passar a vida inteira correndo riscos".
(Martha Medeiros, Zero Hora de 17/11/2010).
com tudo o que se passa
com parentes, amigos e conhecidos.
Quando se trata de mim
usam subterfúgios
falam através de enigmas
para me deixar confuso.
Meus sonhos são delicados
não querem abrir o jogo
para não me fazer sofrer.
E essa confusão toda
me faz pensar neles
por um bocado de tempo,
ao acordar pela manhã.
Pretensiosos,
eles tudo sabem
sobre tudo,
do amor eterno
ao amor verdadeiro...
É que eles não têm compromisso com o tempo,
que me enrola o tempo todo.
Abusados, meus sonhos riem dos amores
que encontro pelo caminho,
frágeis e passageiros.
Meus sonhos vivem fazendo acordos
com pessoas que me rodeiam e que convivo.
Fui sequestrado por meus sonhos, que anarquizam
minha cabeça, e a cabeça dos outros...
"...Somos prisioneiros não só da nossa cabeça, mas da cabeça dos outros, do que eles pensam a nosso respeito, do que imaginam que iremos fazer, das conclusões a que chegam, das interpretações que fazem sobre o que lhes contamos.
Não há escapatória. Estamos sujeitos ao que nossas narrativas revelam, e elas nem sempre revelam nossa pureza. Estamos sujeitos ao que nossos atos revelam, e eles nem sempre revelam o que sentimos. O que somos de verdade e o que queremos de fato, só nós sabemos. Só nós. Sós.
O planeta é povoado por bilhões de solitários tentando se comunicar em meio a situações de euforia, desespero, descrença e êxtase. Quantas vezes tentaram adivinhar o que sentíamos, e erraram. Julgaram nossas ações, e erraram. Tiveram certeza sobre nossos propósitos, e erraram. Balas perdidas disparadas a esmo, bilhões tentando compreender uns aos outros e passando longe do alvo. Reverenciamos tanto a conexão, mas ela segue mais rara do que nunca.
A cabeça do outro é nosso juiz mais implacável. Acreditamos que temos controle sobre nosso destino, mas esse controle está atrelado ao pensamento do outro sobre nós, o sentimento (ou ressentimento) que ele nutre a despeito de todas as nossas boas intenções.
Nossos pais, nossos amigos, nossos filhos, nossos clientes, nosso amor: tudo andará bem desde que sejamos fiéis ao que estava previsto. Mas somos seres imprevisíveis por natureza, o que nos faz passar a vida inteira correndo riscos".
(Martha Medeiros, Zero Hora de 17/11/2010).
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Paulo Bentancur - A palavra desenha o mundo
No início de novembro pude assistir palestra com o escritor, oficineiro e crítico literário gaúcho Paulo Bentancur. Grande palestra, com texto poético, pegando de surpresa boa parte do público, acostumado a textos mais modestos, introdutórios. O autor é finalista, na categoria de livro infanto-juvenil, ao concurso Açorianos de literatura. Vai a seguir entrevista que retirei do seu blog.
- Há mais de 20 anos você é crítico literário, julgando outras obras e escritores. Qual o critério que utiliza para avaliar as próprias publicações?
Diria que se procuro ser justo com os outros autores que comento, comigo prefiro (claro, exagerando um pouco) até mesmo ser injusto. Exijo ao máximo de mim (e nem seria bom que exigisse menos que isso). Um bom livro deve ser criativo na trama, ter personagens interessantes e uma linguagem saborosa, com ritmo, quase musical, e ao mesmo tempo fácil de ler. Não posso, como crítico, abrir mão de encontrar isso em qualquer livro que analiso. A diferença é que quando se trata de um livro meu, bom, aí então eu levo essa exigência a um nível extremo. Procuro, em resumo, escrever o livro que eu, como leitor, sonho um dia encontrar para ler. Difícil chegar a tanto, mas não custa tentar (risos).
- Você já escreveu para o público adulto e também para o infantojuvenil. Qual a diferença entre eles? Toda e nenhuma.
Nenhuma porque quando se escreve, busca-se uma doação sem a qual o artista não é artista, mas mero prestidigitador. Entregando-se inteiro ao que conta, vai junto como ser, e acontece junto de sua história, entregando aos leitores um livro que vale uma pessoa inteira e suas obsessões e encantamentos. E também, nos aspectos externos, há toda uma diferença. Isto porque o público adulto, bem, a gente nunca fica sabendo quem é. O infantojuvenil é que faz com que você, como autor, seja convidado a ir nas escolas, e é entrevistado daquela forma livre e espontânea, típica das crianças e adolescentes: perguntam de tudo. A garotada não se intimida na hora da curiosidade. Os leitores adultos já são mais dados a uma reserva compreensível, o que é raro quando se trata de jovens. Quando publico para adultos, acontece uma sessão de autógrafos, sai crítica na imprensa, com sorte ganho algum prêmio, e o resto é um enigma só. Quando publico infantojuvenil, fazem encenações sobre os meus livros, cartazes, me escrevem cartinhas manuscritas lá do interior, mandam recado até pelo Orkut – é uma festa!
- Já são cerca de 30 obras publicadas e sempre com uma história diferente. Como surgem as ideias para escrever os livros?
Como surgem todas as idéias em todas as cabeças de qualquer pessoa. Imprevisivelmente (a gente deve estar sempre de “portas” e “janelas” abertas; no sentido figurado, claro), ao acaso, como quem sai para brincar no parque e nem sabe o que vai acontecer e então se depara com muitos fatos. A vida nos apronta muitas surpresas. Basta não ter medo de imaginar. No fundo, bem lá no fundo, todos nós já temos, como quando estamos sonhando, histórias prontas à espera de que a gente as descubra e as traga para fora de nossa mente e as coloque no papel. Eu sempre sento na frente no computador quase que não tendo a mínima ideia do que vou escrever. Eu disse "quase". Evidentemente, há um projeto básico, um desejo forte que me impele para a frente mas não se mostra visível enquanto não escrevo as primeiras frases. Começo então a escrever, inevitavelmente. De acordo como está o meu espírito nesse dia. E as coisas vão rolando (como uma bola que eu fosse chutando)... e a história tranca aqui, destranca ali, tranca de novo, mas, de repente, acontece! Quando termino um livro, surpreendo-me e digo para mim mesmo: “mas então era isso que eu tinha para contar?!”
- No livro “Três pais” você associa Hamlet com o livro. Como isso acontece
Desconfio que muitas das histórias já escritas no mundo de alguma forma dialogam umas com as outras. No caso do Hamlet, o príncipe é visitado pelo fantasma de seu pai que foi assassinado, pai que pede vingança ao filho, e Hamlet sofre com a presença paterna a exigir dele a difícil justiça e, ao mesmo tempo, o príncipe também sofre com a ausência desse pai, que já não pode se defender. Na outra história, “Carta ao Pai”, do Kafka, o filho acusa o pai de ter sido muito duro, exigente, e aí invertem-se os papéis: é o filho que deseja justiça. E na terceira história, criada por mim, “Pai embrulhado para presente”, eu narro a história de um pai que é desafiado a ficar longe das duas filhas para vencer na carreira, no trabalho. Mas a realização profissional, nesse caso, quase arrisca colocar o afeto pra escanteio. Bom seria ter os dois em seu ponto máximo... Mas é o caso de buscar equilibrar as prioridades, a afetiva e a material – obviamente não excludentes. Naturalmente, esse pai jamais vai parar de trabalhar, ele prefere enfrentar alguns sacrifícios porém sua escolha principal, ali, é ficar sempre perto das filhas. Entre a glória e a fortuna ou o afeto (na verdade uma questão que não podemos aceitar que seja posta assim), ele escolhe o afeto como glória e fortuna legítimas. Dele, do amor paterno, tirará a energia para construir o resto. E aí, voltando ao Hamlet da pergunta, a angústia que se apodera do príncipe que precisa denunciar o assassino de seu pai – o tio! –, é o afeto a força decisiva para que ele crie a coragem nunca antes demonstrada. Afinal, sem afeto de que adiantaria existirem pais e filhos? Que sentido e sabor teria, enfim, a vida?
(Entrevista a Melissa Stranieri)
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Catecismo
Canalizaram a água
da cachoeira
man-sa-men-te
formou-se um lago
fez bem e estragos
o que sei,
que agora guardo
são margens e leito
o meu abrigo.
Em meio aos mandamentos
do mundo
faço o dever de casa
Pela manhã
obedeço a Deus
e no final do dia
recolho na poupança
meus pecados.
da cachoeira
man-sa-men-te
formou-se um lago
fez bem e estragos
o que sei,
que agora guardo
são margens e leito
o meu abrigo.
Em meio aos mandamentos
do mundo
faço o dever de casa
Pela manhã
obedeço a Deus
e no final do dia
recolho na poupança
meus pecados.
sábado, 13 de novembro de 2010
DESPEDIDA
Enfim, despedimo-nos
da infância.
Depois do parque
do circo e da praça
doamos a fantasia
aos irmãos mais novos.
Agora
nos emprenstam
vergonha
se ficamos nus.
Passam os dias
e todos aguardam
para que prendamos a rebeldia
nos porões do coração.
Mas a liberdade, alucinada,
acena por detrás dos muros...
Repetem, repetem,
os mais velhos:
- Vamos olhar pra frente
e viver a nossa idade!
Enquanto isso
nossos desejos mais profundos
brincam de esconde-esconde
nos labirintos da saudade!
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Pejuçara - Escobar Nogueira
O jornal publicou os finalistas do 16º prêmio Açorianos de literatura. Corro os olhos para ver quais os indicados, em quais categorias. Detenho-me em Poesia.
Não é que o Escobar Nogueira, com o livro Pejuçara, é um dos indicados ao prêmio?
Conheci o Escobar em fevereiro de 2010. Conversei com ele no dia em que ele fez uma palestra para os professores municipais, na abertura do ano letivo, no município de Ijuí/RS.
Extrovertido, simpático, como o é um professor de cursinho pŕe-vestibular. Após a palestra ganhei seu livro, autografado, de presente. Cheguei em casa, coloquei o livro na estante, mas não dediquei o tempo suficiente, que ele merecia, para desfrutar de sua companhia.
A questão que me faço, agora, é: por que damos valor às coisas só depois que elas se tornam conhecidas/reconhecidas?
Hoje, após saber de sua indicação ao prêmio, lí o livro com afobação. Vou ter muito tempo, nessa época do ano, para lê-lo e relê-lo, bem devagar, como toda poesia merece.SLOW CITIES
Eu,
o cachorro,
o trator,
tudo vai devagar.
Como não lembrar
do poema do Drummond?
Itabira,
Pejuçara,
cidadezinha qualquer,
onde não é preciso correr
pra viver,
nem pra morrer.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Sina
Obedientes
ao mundo
as pombas
ciscam.
Amanhã
o mundo pode
ruir...
Tudo precisa ser feito:
arrumar o ninho
por ovos, chocar...
O destino ordenou
para ter pressa
que a vida vale
o entardecer.
Observo a sina
atrás da cortina
da janela
choca-me a corrida
desigual:
sou pombo
que não tem asas
para fugir.
domingo, 7 de novembro de 2010
Gata
Ela é toda
ardilosa
com sorrisos
e guizos
caninos
molares
me paralisam
ela é dona
do pedaço
que mandou
meus sonhos
pro espaço
o espaço
confunde
na porcentagem:
100% felicidade
ou 100% realidade?!
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Pai não entende nada - L. F. Verissimo
-Um biquíni novo?
-É, pai.
-Você comprou um no ano passado!
-Não serve mais, pai. Eu cresci.
-Como não serve? No ano passado você tinha 14 anos, este ano tem 15. Não cresceu tento assim.
-Não serve, pai.
-Está bem. Toma o dinheiro. Compra um biquíni maior.
-maior não, pai. Menor.
Aquele pai, também, não entendia nada.
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
GODOFREDO
Sou refém do Godofredo
um celular cheio de dengos
que vibra fora de hora
aloprando os meus medos!
Vivo numa casa
sem flores na sacada
no mais não tenho nada
além dos tiques do Godofredo...
Ele sempre me acorda
até num sonho profundo
com seus fricotes estranhos
de coisa do outro mundo!
Extravia caminhos
elimina meus sonhos
de desejo e esperança
com sotaque de criança!
Sei que posso desligar Godofredo
seja dormindo ou acordado,
mas o que posso fazer
com o tagarela do outro lado?
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
DIÁLOGO - Moacyr Scliar
- Pai, Deus existe?
O homem deixou de lado o livro que estava lendo e ficou olhando para o garoto sem dizer nada.
- Pai, eu perguntei se Deus existe.
- Eu ouvi. Estou pensando.
- Precisa pensar? Eu só quero saber se Deus existe ou não - disse o garoto irritado.
- Bom - o homem, cauteloso - para algumas pessoas existe, para outras não.
- Para mim não existe - disse o menino.
- Não existe?
- Não, quer ver? - Olhou para cima: - Deus, eu quero uma bicicleta nova. Agora.
Esperou um pouco - muito pouco - e disse, triunfante mas amargo:
- Viu? Viu como Deus não existe?
- Bem - disse o pai, sentindo o terreno movediço - isto não chega a ser urna prova. As pessoas não conseguem logo o que querem.
- Ah, mas se Deus existe, ele tinha de me dar uma bicicleta. Deus não existe.
O homem não disse nada.
- Deus não existe - insistiu o garoto. - Ouviu? Não existe. Ou então está morto. Deus morreu, pai.
Meu Deus, pensou o pai, o garoto está dizendo aquilo que Nietzsche levou anos para descobrir. O seu bom humor, porém, logo desapareceu: o menino estava chorando. Está cansado, pensou o homem. Tomou-o nos braços, sentou com ele na cadeira de balanço, embalou-o, até que o menino adormeceu. Então colocou-o na cama; mas aí já não tinha vontade de ler; de modo que pôs o pijama e foi dormir também.
Acordou de manhã cedo. O menino estava ao lado da cama do casal, uma expressão de triunfo no rosto:
- Sabe o que sonhei, pai? Sonhei que estava cercado de inimigos que queriam me matar. Aí caiu do céu uma metralhadora, e eu matei todos os inimigos. Todos, pai! Com a metralhadora! Foi Deus quem mandou aquela metralhadora!
O pai suspirou, aliviado. Finalmente, Deus estava dizendo a que vinha.
SCLIAR, Moacyr. Diálogo. In: Para gostar de ler - vol. 18 - crônicas - Ática, 2010.
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