segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Dois pra lá, dois pra cá


 

Eu podia estar num avião rumo a Fernando de Noronha, contemplando o mar azul-cartão-postal.
Mas estou aqui, duelando com a senhoria do meu cafofo, contas atrasadas e aquela sensação de fracasso latindo no calcanhar.
Piso no freio, tento acionar o velho e gasto Foda-se, que falha quase sempre.
Entro e saio do prédio como ladrão de galinha: queimei o aluguel numas aventuras pouco narráveis.
A velha vê tudo - a caninana de olhos treinados - e a filha, ah, a filha… baixinha, com pernas talhadas pra tentação.
Uma pena não tomar mais sol. O bronzeado dela devia ser tombado pelo patrimônio afetivo da vizinhança.
Ensaiava transformar tudo aquilo num bolero barato: eu, ela, a mãe… dois passos pra lá, dois pra cá, a vida nos levando sem autorização.
Elogio as plantas “milagrosas” que cuidam na janela, embora a senhoria afogue as coitadas todo fim de tarde. Aí já penso em decapitações na praia do A. Texas, tráfico, mar gelado - e corro pro bar antes que a imaginação me mate.
Tentei ser um bom homem: nada de brigas, só minhocas disciplinadas cavoucando a fantasia das pernas da filha.
Hoje, pelo menos, o clima tá leve: a senhoria prometeu me ensinar a catar mariscos e fazer pastéis que, segundo ela, são “tudo de bom”. Vou ver se acredito.
Rapaziada, um conselho:
não batam de frente com essas entidades poderosas.
Negociem. Dancem.
Se não souberem o bolero, avancem dois passos e recuem um.
E lembrem-se:
não precisa tocar fogo na casa pra se livrar do cupim.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Ainda tem salvação


 

Uma luz colorida baixou.
pensei: é hoje!
Um sinal, talvez, de que pertenço
a um mundo melhor,
onde ninguém morre antes da hora,
as crianças brincam e riem
e os velhos dançam devagar
com a saúde pingando dos olhos.
Vim caminhando pela avenida,
vislumbrando esse mundo, vasto mundo,
e tive uma alegria danada.
Entrei na primeira academia,
pedi uma matrícula,
falei pra mim mesmo:
preciso malhar,
a salvação começa no bíceps.
Resistência muscular, sono regular,
água, só água -
chega de álcool, chega de caos.
Vai nascer um novo homem,
um homem limpo,
iluminado por dentro.
Mas aí a realidade levantou o vestido,
mostrou as coxas
e me deu um tapa de lucidez.
Uma velha deusa andarilha
riu tanto que se mijou,
gargalhando da minha cara limpa
e do meu projeto de pureza.
No semáforo, uma moleca vendendo bugiganga
me contou, sem contar:
o mundo ainda sangra.
Tem tragédia, tem guerra,
e as crianças morrem por motivos
bem filhos da p*.
Mais tarde, meu amigo chegou de carro,
parou na praça,
tirou a gaitinha do bolso
e começou a tocar “Knockin’ on Heaven’s Door”,
do Bob Dylan.
Eu respirei fundo,
encostei na mureta,
olhei o céu meio sujo de fumaça
e juro -
por um segundo, juro -
achei que esse mundo louco e complicado
ainda tem salvação.
(Pensamentos & poemas espirituosos)

domingo, 2 de novembro de 2025

Nosso amor é feito mel


 

- Como tu tá, meu gatinho?
- Tirando a birra, a preguiça
e o leve alcoolismo de quem sonha demais,
ando ótimo, baby.
Traga tua lanterna -
o dia amor-teceu,
bandos de sabiás celebram
as primaveras que esquecemos,
e gatas no cio,
loucas de luar,
nos olham como deuses desajeitados.
Essas noites de fim de mês
cheiram a cansaço,
e os bares perderam a graça.
Acende tua luz.
O meu farol desperta
e você o beija como quem bebe
a própria eternidade.
Nosso amor é feito mel,
direto da colmeia das constelações -
escorre, lambe, cura,
adoça o que restou de humano.
Descobri o poder de existir,
o prazer e a dor
misturados num mesmo copo,
um presente dos deuses
para que o cérebro não exploda
e o coração não apodreça.
Baby,
um dia ainda pintaremos nossa casa
com as cores que resistem ao tempo,
sabendo - quando o dia virar noite -
que o riso e o delírio
serão nossa rotina,
e que a rotina
jamais
vai nos derrubar.
(B. B. Palermo)

Ainda não éramos zumbis

  Rapaz, lembra que em 1996 você comprou um 3 em 1 e começou a se interessar por blues, ouvia CDs do Eric Clapton e sentia que aquelas ...