sábado, 26 de fevereiro de 2011

O último viandante - Mario Quintana


Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem sabia mais aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
porque são os passos que fazem os caminhos!



do livro A cor do invisível. Editora Globo, 1989.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Cueca lilás. Carpins pretos - David Coimbra



Débora era o nome dela. Débora. Pronunciávamos num suspiro: “Déboraah…”, com reticências no fim. Você sabe como são as mulheres com nomes proparoxítonos. Você sabe. Nomes proparoxítonos, vogais explosivas, só podia dar no que deu: uma mulher serpente, com curvas e aclives de pista de rali. E ruiva, ainda por cima. Déboraah… Pensei nela por causa do Antônio Lopes.


Você vai achar estranho eu pensando na Débora por causa do Antônio Lopes. Bem, é que, na verdade, não foi exatamente na Débora que pensei em primeiro lugar. Não. Foi no Odone Carpim. Pois lá estava o Antônio Lopes, no Japão, com sua camisa da sorte, suas calças da sorte, seu sapato da sorte. Então lembrei do Odone Carpim. Justamente devido a isso de roupa da sorte.


Está certo, é comum no futebol essa história de roupa da sorte. O Foguinho tinha uma. Um colete. Torcedores e jogadores acreditavam que, quando o Foguinho usava seu colete, o Grêmio não perdia. Acontece que o colete era de lã, quente, e Foguinho tinha de usá-lo mesmo no verão. Uma vez, o Grêmio ia jogar no Interior, o ônibus da delegação já deixara a cidade, quando Foguinho, remexendo na mala, comentou, distraído:


– Esqueci meu colete…


Num repente, todo o bulício dos jogadores, as risadas, os gritos, os jogos de cachetinha, tudo cessou. As respirações ficaram em suspenso. O silêncio se tornou tão pesado que ameaçou estourar os pneus do ônibus. Os olhares se voltaram para o técnico. Esqueceu? Meia-volta. Todos à casa de Foguinho, atrás do colete.


Times vencedores cultivam superstições. O Inter de 75. Os jogadores entravam e saíam do ônibus sempre na mesma ordem, sentavam nos mesmos lugares. E havia o perfume. O massagista Moura borrifava as camisetas com um perfume odor alfazema que dizia ser mágico. O time entrava em campo todo cheiroso, intrigando os adversários.


Um amigo meu, o Jorge Barnabé, acreditava ardentemente que o Grêmio só vencia se ele fosse ao jogo com uma certa cueca lilás. Empenhado na conquista do campeonato, ele não perdia uma partida. O pessoal se encontrava com ele na arquibancada e nem dava boa-tarde:


- Tá com a cueca? Tá com a cueca?


E ele, sorridente, puxava uma ponta de pano lilás do lado das calças e mostrava:


– Oh! – todos suspiravam de alívio.


O brabo é que a cueca essa era daquelas “cuecas machão”, lembra? Um tecido furadinho, quadriculado, baratíssimo, vinham várias delas dentro de um cilindro plástico vendido a parcos centavos. Chegava uma hora que as tais cuecas começavam a pinicar a pele do usuário. Aí, o Jorge ficava inquieto na arquibancada, sentado de lado, levantando, incomodando a torcida ao redor.


Aquelas cuecas se gastavam rapidamente. Certa feita, a mãe do Jorge, vendo o estado lamentável da cueca lilás dele, atirou-a no lixo. No dia do jogo o Jorge procurou a cueca e não a encontrou. Revirou as gavetas, o cesto de roupa suja. Nada. Pressentindo a tragédia, correu para a cozinha:


– Mãe! – berrava. – Cadê a minha cueca lilás?


Agora você sabe por que o Grêmio perdeu tantos campeonatos na década de 70.


Mas a história que interessa é a do Odone Carpim. Como você é esperto, já adivinhou que a roupa da sorte do Odone Carpim era, exatamente, um par de carpins. Pretos. Comuns. Meia canela. Em outras rodas consagradas como “peúga”.


Olha, o Odone não venceria nenhum concurso de mister elegância com seus carpins, mas parecia ter sorte mesmo. No futebol, a bola batia na canela dele e entrava. Sorteio, ganhava todos. Vivia achando dinheiro na rua. A todas essas, repetia: é o carpim, é o carpim.


Odone usava os carpins quase todos os dias. Resultado: os carpins começaram a gastar. Ficaram puídos, desbotados. Até que chegou um tempo em que ele foi deixando de usá-los. Não sem se lamentar pungentemente:


– Sou um comum sem o carpim. Um comum.


O curioso é que a sua sorte realmente mudava. As coisas não davam mais tão certo para ele. Talvez porque sua confiança diminuísse sem os carpins. Foi então que surgiu Débora. A Débora proparoxítona. Todos nos apaixonamos pela Débora. Todos a assediávamos. Ela nem bola.


Uma tarde, a Débora estava perto do campinho do IAPI com três amigas. Nós cochichávamos a alguns passos. Sobre ela, claro. “Como é exibida, nem olha pra gente”. Então, o Odone bradou:


– Vou dar um jeito nisso.


E saiu correndo. Foi em casa. Voltou de bermudas.


E carpins. Os velhos carpins da sorte. Veio gingando, sorrindo, em nossa direção. Subitamente, desviou para o lado das meninas. Óbvio: ia apresentar os carpins para a Débora. Tensão. Daria certo? Débora se apaixonaria pelo Odone por causa dos malditos carpins? Odone chegou perto dela. Bem perto. A roda das meninas também silenciou. Aí, ele se abaixou, ajeitou os carpins demoradamente, chamando a atenção para eles. Todos, inclusive a Débora, olhamos para os carpins. Ele olhou para trás, para nós. Sorria maliciosamente. Sorrindo ainda, olhou para cima. Para Débora. Ergueu-se. Ficou diante dela, sorrindo. Então deu-se o inacreditável. Débora sorriu para ele. Era a primeira vez que sorria para alguém da turma. Dissemos: “Oooh”. O Odone olhou para trás, vitorioso. E Débora, incrível!, falou com ele. Disse assim:


- Tu que és o Odone Carpim?


Ele, orgulhoso:


– Eu mesmo.


Ela, ainda sorrindo, mas desta vez olhando para as outras meninas:


– Vocês têm razão: é um nojo.


Ao que deu as costas para Odone e foi embora.


Moral da história: superstição só funciona no futebol.


Do livro O mundo é uma bola. Editora Atica, 2007.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Me perdoe - Sergio Capparelli

Perdoe, amor,
meu coração não entra em rede.
Triste, sem viço, sem mapa astral, ele geme.
Meu amor entrega os pontos,
cai no fosso, preso no brete,
e você, minha querida,
mando-lhe rosas pela internet?
Não diga que estou fora do esquema
que sou antigo, intruso num ciberpoema,
fora da tela do monitor
você sabe, amor platônico
me deixa sem jeito, com coágulo,
prefiro um ciberatômico
que explode, apaixonado.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Louco, igual meu amor






A toda hora
eu rabisco
um compromisso
em forma de torpedo
para deixar o nosso amor
mais eterno.

Em vez de flores
eu mando poemas
para amenizar o desejo
de morar no colo dela
me enroscar nas suas pernas
e farejar o seu cheiro...

Sou bombeiro
que apaga focos de incêndio
que a danada da paixão
acende no coração...

Sou vigia noturno
espreito esquinas e quintais
tudo pra ver se consigo
cruzar com seu olhar...

Sou astrólogo mago e adivinho
quero saber tintim por tintim
o que quer o meu amor...

E fico atento como gato
em cima do telhado
fugindo do cão

farejo o perigo
triplico a adrenalina
judio meu coração...

Brigo brinco desconverso
durmo pouco não sossego
só pra ficar ainda mais louco
parecido com meu amor!

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Vida em manchetes - Luis Fernando Verissimo


- Viu só? Caiu outro avião.


- É. Desta vez foram 85 mortos.


- Já tomei uma decisão: nunca mais entro em avião.


- Bobagem.


- Bobagem é morrer.


- Então não entra mais em carro, também. Proporcionalmente, morrem mais pessoas em acidentes de...


- Mas não entrar em automóvel eu já tinha decidido há muito tempo! Você não notou que eu ando mais magro? É de tanto caminhar.


- Você caminha por onde?


- Como, por onde? Pela calçada, ué.


- Dá todo dia no jornal. “Ônibus desgovernado sobe na calçada e colhe pedestre. Vítima tinha jurado nunca mais entrar em qualquer veículo.” A chamada ironia do destino.


- Quer dizer que calçada...


- É perigosíssimo...


- O negócio é não sair de casa.


- E, é claro, mandar cortar a luz.


- Por que cortar a luz?


- Pensa num dedo molhado e distraído na tomada do banheiro. “Caiu da escada quando trocava lâmpada. Fratura na base do crânio.”


- Está certo. Corto a luz.


- “Tropeça no escuro e bate com a têmpora na quina da mesa. Morte instantânea.” E você vai cozinhar com quê?


- Gás.


- Escapamento. “Visinhos sentiram cheiro de gás e forçaram a porta: era tarde.” Ou: "Explosão de botijão arrasa apartamento.”


- Fogareiro a querosene.


- “Tocha humana! Morreu antes que...”


- Comida enlatada fria.


- Botulismo.


- Mando comprar comida fora.


- Espinha de peixe na garganta. Ossinho de galinha na traquéia. “Comida estragada, diarréia fatal!”


- Não preciso de comida. Vivo de injeções de vitamina...


- Hepatite...


- ... e oxigênio


- Poluição. “Autópsia revela: pulmão tava pior que saco de café.” Estrôncio 90 francês.


- Vou viver no campo, longe da poluição, do trânsito...


- Picada de cobra. Coice de Mula. Médico não chega a tempo.


- Não saio mais da cama!


- Está provado: 82 por cento das pessoas que morrem, morrem na cama. Não há como escapar.


- Mas eu escapo. A mim eles não pegam. Tenho um jeito infalível de escapar da morte.


- Qual é?


- Eu vou me suicidar.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O MEU AMOR É ENGRAÇADO




Vou fazer um catálogo
com palavras certas
para acalmar
o epicentro
do coração
do meu amor.

palavras são flechas
desgovernadas
quando a paixão
ainda mora
em nossa casa
e o amor se esconde
todo indeciso.

Vou jogar fora
os velhos medos
sair de casa
para acolhê-la
cantar canções
apaixonadas
para aquecê-la
depois do banho
da chuva fria.

O meu amor
é engraçado
que até arrepia:
me dá um susto
a toda hora
a todo o dia.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Biografia de uma árvore - Carpinejar


Na eternidade, ninguém se julga eterno.
aqui, nesta estada, penso que vou durar
além dos meus anos, que terei
outra chance de reaver o que não fiz.
Se perdoar é esquecer, me espera o pior:
serei esquecido quando redimido.

Não me perdoes, Deus. Não me esqueças.
O esquecimento jamais devolve seus reféns.

A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.

Do livros Caixa de sapatos - Antologia. Editora Cia das Letras, 2003.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

VIVA E DEIXE VIVER


Tudo se renova
cresce envelhece
                   morre
   e volta a nascer

tudo se renova
em menos de um segundo

viva e deixe viver
para o bem de todo mundo.

Nem tudo
tem uma razão
para acontecer
o mais importante
                    no final

é o coração poder dizer
qual o sentido de tudo

viva e deixe viver
para o bem de todo mundo.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Leitura - Adélia Prado




Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras.



As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha


de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas


fora do seu tempo desejadas.


Ao longo do muro eram talhas de barro.


Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo


que lá fora o mundo havia parado de calor.


Depois encontrei meu pai, que me fez festa


e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,


os lábios de novo e a cara circulados de sangue,


caçava o que fazer pra gastar sua alegria:


onde está meu formão, minha vara de pescar,


cadê minha binga, meu vidro de café?


Eu sempre sonho que uma coisa gera,


nunca nada está morto.


O que não parece vivo, aduba.


O que parece estático, espera.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Maktub - Paulo Coelho



Somos seres preocupados e agir, fazer, resolver, providenciar.
Estamos sempre tentando planejar uma coisa, concluir outra, descobrir uma terceira.
Não há nada de errado nisto - afinal de contas, é assim que construimos e modificamos o mundo. Mas faz parte da experiência da vida o ato da Adoração.
Parar de vez em quando, sair de si mesmo, permanecer em silêncio diante do Universo.
Ajoelhar-se com o corpo e com a alma. Sem pedir, sem pensar, sem mesmo agradecer por nada. Apenas viver o amor calado que nos envolve. Nestes momentos, algumas lágrimas inesperadas - que não são nem de alegria, nem de tristeza - podem jorrar.
Não se surpreenda. Isto é um dom. Estas lágrimas estão lavando sua alma.

Maktub, Paulo Coelho. p. 49. Editora Planeta.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Nós - Ricardo Azevedo



Se há o nó que desata
há sempre o nó que segura
há o nó que desamarra
mas há o nó que estrangula
há o nó que algema e prende
há o nó que corta e machuca
há o nó que enforca e pendura
há o nó que nunca tem cura

outros nós enquanto isso
quando se encontram, se abraçam
se entrelaçam, se arrebatam
se aconchegam, se agasalham
se combinam, se completam
se misturam, se embaralham
se emaranham, se atravessam
se penetram, se confundem
e até se fundem
feito nós


do livro Ninguém sabe o que é um poema. FNDE.

Ovelha desgarrada

  Manhã de domingo, Beiço deu as caras: – Velho. Andei pensando. Está na hora do Cadelão parar de cair nas sarjetas próximas a bares para ...