Quem assiste o comercial da cerveja
Polar, fazendo um tributo à Revolução Farroupilha, não deixa de levar um susto.
Tendo como garoto propaganda o Peninha (Eduardo Bueno), chamado de “o maior historiador
do mundo”, o comercial pretende fazer um “revisionismo histórico”, afirmando
taxativamente que o RS venceu o Brasil – “deu de relho” na revolução.
A novidade da Polar é fazer diferente
de outras marcas de cerveja. Não vende um mundo dos sonhos, ilusório, de
juventude e beleza, etc. e tal. Ao escolher o tema da nossa tradição histórica,
nos obriga a pensar sobre a mesma – e rever nossas certezas. Além do mais,
aborda o tema usando um recurso retórico que herdamos da filosofia grega: a IRONIA.
Segundo o Aurelião, ironia vem do
grego e significa “interrogação”. E também “modo de exprimir-se que consiste em
dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo”.
Esta é a ironia do personagem, o “maior historiador do mundo”. Disse o Peninha,
numa entrevista ao jornal Zero Hora de 7/09/2014, ao ser perguntado sobre a
propaganda que ele protagoniza para a mais bairrista marca de cerveja do RS: “Será
exagerado, histriônico e debochado... como eu mesmo (risos). Sempre
achei sensacional a ideia de ironizar essa certeza tão gaúcha de que somos os
maiores e os melhores em tudo – que, aliás, eventualmente parece ser levada a
sério por certos segmentos da mídia...”.
É óbvio que Peninha faz o comercial com o
objetivo de ganhar fama e dinheiro, segundo as leis do mercado. Mas também nos
obriga a pensar nossa mania de grandeza. Toca nos temas significativos da
cultura, de forma exagerada, levando-nos à dúvida, estranhamento e ao questionamento:
“O que será que ele quis dizer?” “Será que esse historiador pensa exatamente
assim sobre a nossa história?”
Nas mensagens habituais da publicidade quase
todas as mães são loiras, as famílias são felizes, nosso carro representa nosso
poder, físico e sexual... Enfim, “você é o que consome”.
Ao
abordar o tema da Revolução, e a dúvida/certeza sobre quem venceu, o comercial da
Polar não traz uma verdade (como de início aparenta). Provoca sim o exercício
de pensamento a respeito de nossa história, além de bagunçar nossas verdades a
esse respeito. Neste sentido se aproxima da ironia do filósofo grego Sócrates –
o qual dizia que pouco ou nada sabia, e perguntava aos outros o que eles
sabiam, os quais, à medida que opinavam,
iam tomando consciência dos limites do seu saber.
Ora, considero isso mais sensato do que termos
uma verdade petrificada, um dogma, e sairmos “tocando fogo” em quem discorda de
nossa opinião.
Vivemos um momento histórico repleto
de ironias. O problema não são as ironias em si. O problema está na dificuldade
que a maioria de nós temos para compreendê-las. Certamente que, se ficarmos no
senso comum, sem buscarmos um senso crítico e o bom senso, nossa opinião
permanecerá limitadíssima.
Será que os pilares em que fundamos a
tradição gaúcha não estão com algumas (ou muitas) rachaduras? Aí, diante da
insegurança de que venham a desmoronar, em vez de fazermos um esforço reflexivo,
apelamos à violência, chamamos o “Marcos véio” para que vá lá e termine de vez
com o debate, “tacando fogo no CTG”.
Os pilares de nossa tradição não
foram feitos ao acaso. Foram construídos com nossa narrativa histórica. Fazemos
escolhas quando edificamos nossa tradição. Escolhemos contar a história de
vencedores ou de vencidos. Ou podemos dizer que em nossa tradição só houve
vencedores, inclusive os índios, os negros e, até, o “gáucho”.
Qual o problema de hoje perguntarmos:
“Será que foi bem assim, como diz Fulano? Mas qual é o interesse dele pra
contar a história dessa forma?”.
E os pilares que sustentam nossa
mania de grandeza, até quando se sustentam? Aliás, aqui cabe uma pergunta
anterior: “Nós gaúchos temos de fato mania de grandeza?”.
De seu jeito polêmico e debochado, o
“maior historiador do mundo” contribui, a meu ver, para dar uma balançada em
algumas de nossas convicções. Acho isso ótimo, até porque descobri que pensar dói
coisa nenhuma!