sexta-feira, 6 de abril de 2012

No 13 de um hospital qualquer

Ao revirar caixas com textos, apostilas, anotações, me espantei com o que vi.
Creio que fazer isso ajuda a desvendar quem somos - às vezes desconhecidos de nós mesmos, às vezes imprevisíveis e inconstantes, ou o contrário...
O poema abaixo foi escrito a mais de duas décadas, e foi inspirado (provavelmente) por uma daquelas paixões adolescentes.

Amigo,
se encontrares meu amor por aí
diga-lhe que estou no 13 de um hospital
qualquer.
Tenho as veias perfuradas
batidas do coração descompassadas
não tomo banho a dois dias
e as visitas estão escassas.

Diga a ela pra me procurar
é certo que vai me encontrar
com os olhos amarelados
enterrado numa cama antiga
cheio de coceira na cabeça
alérgico às enfermeiras
coitadas, me querem tão bem!
Dão uma força tremenda
dizem que não morrerei dessa vez...

Amigo,
se ela estiver dengosa
diga-lhe que a vida não tem replay
vivo por um fio
e já não carrego o mesmo orgulho.
Nosso amor vai florescer
prometo não ser mais eu
quando voltar a viver.

Amigo,
se a encontrares pela manhã
diga para que venha de tarde
- tomo soro de manhã.
E que traga flores
gosto de rosas vermelhas.
Se a encontrares, amigo,
diga-lhe que traga consigo
seu belo sorriso
para espantar meus pensamentos loucos.

Imploro, amigo:
traga logo meu amor
traga ela e uma flor
nosso amor não morrerá
seja como for
agora será
infecto-contagioso!

sábado, 31 de março de 2012

Engarrafamento - Roseana Murray


Nada a fazer
no meio do engarrafamento,
a não ser
desamarrar os nós do pensamento.
E se deixar levar
para a longínqua
Transilvânia,
Atlantida,
Passárgada,
para o galho mais alto de um sonho.
E de lá de cima,
olhar o mundo
com profunda
paciência.


Do livro Paisagens. Belo Horizonte: Lê, 1996.

domingo, 25 de março de 2012

O time foi rebaixado


Quando ouvimos falar do fracasso dos outros, não perdemos tempo para investigar os diversos motivos que levaram a tal desfecho trágico. Focamos nossa atenção na ponta do iceberg, a que aparece, e não conhecemos toda a sua base, que é imensa, e que ficou submersa.
Observo a fotografia do time, na coluna de esportes do jornal. Do lado esquerdo está o auxiliar técnico, um novato que faz pós-graduação em Educação Física. Ele gesticula, com ar de muito conhecimento. Seu sonho é fazer um estágio na Espanha, no grande Barcelona, treinado por Guardiola.
À direita, à sua frente, estão os jogadores, de mãos na cintura, meias arriadas, olhar distraído. O gramado, desparelho, meio verde amarelado, completa o ar de desolação ao cenário. O tema da palestra é "Dicas para ser um vencedor".

O time foi rebaixado.

Grande parte dos jogadores do time não passaram pelas categorias de base. Aprenderam a jogar futebol, desde a infância e adolescência, nos campinhos de várzea, nas vilas das cidades. Quebraram muitas vidraças das casas, dividiram espaço com vira-latas e cavalos, quase sempre de pés descalços.
Do mesmo jeito que o lendário Garrincha, que primeiro jogava pelo prazer, e depois para vencer, boa parte desses jogadores, principalmente os que jogavam do meio para frente, estavam mais preocupados em fazer jogadas de efeito, cheias de categoria, do que em fazer o gol. A bola na rede era um fim, não um meio.

O rebaixamento resultou de uma cobrança de pênalti, desperdiçada pelo artilheiro do time, Tom Zé.
O jogo estava nos acréscimos, e seu time perdia por uma a zero. Se ele empatasse o jogo, faturariam um ponto, que era o que faltava para não cair pra segundona.
Nos segundos que antecederam à sua cobrança, um filme de sua vida passou pela cabeça. Todas as jogadas repletas de categoria, os gols de “Pelé”, enfim tudo o que ele aprendeu nos campinhos de várzea, desde guri, quase sempre de pés descalços.
Se ele era o “Pelé” sem chuteiras, imagina agora com suas chuteiras importadas!
Dito e feito. Tom Zé decidiu bater o pênalti do que jeito que fazia nos velhos tempos.
Recuou uns dez passos da bola, correu e... fez uma cavadinha... Porém, a bola não ganhou altura e o goleiro adivinhou o canto. Tudo isso nos acréscimos...

Dois minutos depois, a caminho do vestiário, Tom Zé foi demitido pelo presidente do time, com a seguinte sentença:

- No meu time não joga perdedor!


 


domingo, 18 de março de 2012

Mapa do céu


Aos doze anos, a maturidade do meu Guri remove a máscara da ingenuidade, que se formou em mim.
Foi-se o tempo de crença na evolução linear. Agora vivemos os sustos da pressa que nos transporta de um lado para o outro, sonhando pra frente, andando pra trás.
Ele encontra no meio dos livros algumas agendas que usei, nos anos passados. Balança a cabeça e não me diz nada.
Então eu acordo: vivo a recolher o que já passou e não vai voltar.
Ainda acredito ser possível reciclar o passado, como sementes que, a qualquer momento, irão germinar.
A inocência é tanta, que olho pro céu e espero que os deuses decidam, em ruidosos congressos, um destino glorioso pra mim.
Agora o céu se abriu, como um mapa misterioso, sobre a minha cabeça.
Cada estrela me observa, no seu silêncio e distância infinita.
Tento puxar conversa, mas só ouço o eco de meu medo do desconhecido.
Meu Guri trouxe um mapa dos grandes, que ele encontrou numa enciclopédia.
Agora temos a geografia das estrelas no céu, seu nome e origem.
Mostrou-me o que guarda o céu. Divertiu-se com minhas lembranças ruidosas. Comentou curiosidades e jogou os meus medos ao léu.
Desperto e liberto o sorriso. Mesmo distantes, as estrelas têm nome e endereço, e eu estou vivo!

domingo, 11 de março de 2012

Homem no mar - Rubem Braga

De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.


Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.


Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.
É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".


Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.


Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A velha contrabandista - Stanislaw Ponte Preta

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.


Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:


- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?


A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:


- É areia!


Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.


Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.


Diz que foi aí que o fiscal se chateou:


- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.


- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:


- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?


- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.


- Juro - respondeu o fiscal.


- É lambreta.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Mãe em sonho - Paulo Mendes Campos

Diz um provérbio judaico que Deus, não podendo estar em todos os lugares, fez as mães. Como as mães são terríveis, como urdem dia e noite a trama do amor e da vigilância, como se inclinam, incessantes, ilimitadas, sobre os filhos, almas sempre verdes, sempre ameaçadas. Um homem põe barba e quer pensar com o  seu nariz; uma menina põe busto e quer pensar com o seu coração. De que ardis se socorrem as mães para endireitar corações e narizes sem machucá-los.
Sonhei com ela. Almoçávamos em sua casa, e eu tinha acabado de comer uma salada imensa, muito temperada, quando minha mãe me falou com uma voz superlativamente doce: Meu filho, você anda comendo muito, cuidado com a arteriosclerose.
Acordei em pânico e cheio de lúcida gratidão. Aparecer em sonho para aconselhar-nos é uma das espertezas das mães. Mas a sutileza de minha mãe foi ainda mais fina. Não ando comendo muito e nenhum sinal aparente me faz candidato à arteriosclerose. Minha mãe queria me dizer outra coisa. Usou do estratagema de que eu estava comendo muito para não magoar o filho. Na realidade, confesso, andava eu era exagerando na bebida, festas inelutáveis, exposições, lançamentos, um amigo que chegou, um amigo que se foi, coisas. Sim, tinha exagerado nesses últimos tempos. E o que minha mãe pretendia dizer é claro como água de filtro: Meu filho, você anda bebendo muito, cuidado com a cirrose.
Mas foi do coração que eu morri.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

E o Oscar vai para...


Basta olhar com algum cuidado para perceber que estamos rodeados por alguns TIPOS de pessoas.
Um dos tipos é aquele que não resiste ao impulso de chamar a atenção dos outros, a todo momento. Enche nossa caixa de mensagens com e-mails de auto-ajuda, motivação... “Deus isso Deus aquilo...”. Seu recado vem com a observação de que é importante lê-lo, é algo sensacional e que vai mudar nossa vida.
Nesse tipo temos os bem-intencionados, os mal-intencionados, e (ambos) os ingênuos.
Há uma derivação do tipo acima. Se um bando adere a algum movimento reivindicatório, lá encontraremos nosso herói. Ele sempre é voluntário para qualquer moda que surgir. Basta um tsunami se formar através das redes sociais, e lá está ele discursando, dono da verdade. Ele se junta ao rebanho, e aumenta os decibéis de sua voz. Notamos isso, por exemplo, na insatisfação (emocional e não-racional) com o técnico do time de futebol, quando seu time é derrotado.
Um segundo TIPO, recomenda: “Passe a mensagem adiante, senão um grande mal vai se abater sobre você...” Esses reclamam por qualquer coisa, em qualquer área, e para isso acampam nas redes sociais virtuais. O monstrinho vai devorando boa parte do tempo desses bucéfalos, que ficam horas e horas hipnotizados por ele.
Um outro TIPO está sempre atento a tudo e a todos, sejam amigos, colegas de trabalho, vizinhos. Considera sua MISSÃO, nessa “grande” vida, se intrometer. Ele precisa colocar o dedo na água fervente das relações humanas. Se, por um lado, esse tipo tem muito de intrometido, por outro sua inteligência é atrofiada, pois não percebe que seu “toque genial” pode causar sofrimento nas pessoas envolvidas.
Há um tipo hiper-moderno, afeito a VIDEAR tudo o que vê pela frente. Sempre carrega uma câmera, seja do celular ou fotográfica. Para ele qualquer coisa que vê é um registro importante, e que “merece entrar” para a história.

Bem, esses são apenas alguns tipos que daremos uma estatueta.
É diante dessa visão plana, nebulosa, que temos ao encarar a realidade, que afirmo, com o filósofo Merleau-Ponty: “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”.
Em vez de nos encaixarmos em algum tipo que, com sua ação, está atrofiando sua inteligência, vamos aprender a olhar a realidade de outros ângulos, de preferência mais criativos e menos nocivos.
Mas vamos enxergar com a originalidade de quem é livre, e não embuçalado pelos outros.
O mundo é cheio de detalhes que o olhar viciado não consegue captar. Vamos usar a inteligência (e não o LSD, por favor!) para abrir as portas de nossas percepções.

Farei aqui uma simples analogia entre nossos tipos e alguns animais: os bois, os leões e as águias.
Muitos bois são barrigudos, queixam-se a toda hora dos outros. Desconfiam tanto, tanto, que só têm tempo para satisfazer seus instintos. Muitos vezes ficam cegos, tristes e aflitos, e não encontram saída para os seus labirintos.
Muitos leões estufam o peito e gostam de mandar. Outros andam com os ombros caídos, são tímidos e se curvam, aos poucos, aos olhares dos outros. Porém, há leões que dobram de altura, quando vivem novas aventuras.
As águias possuem o centro de gravidade no meio da testa. Carregam a bondade no coração e seus olhos funcionam como espelho da mente.
Gostaria que deixássemos de ser (mansos) como os bois, tivéssemos a bravura (bem-intencionada) do leão, e o olhar afiado e inteligente da águia.

A história a abaixo, cito-a para dar ênfase àquilo que escrevi aqui.


Maria vai com as outras (Sylvia Orthof)


ERA UMA VEZ UMA OVELHA CHAMADA MARIA.
ONDE AS OUTRAS OVELHAS IAM, MARIA IA TAMBÉM.
AS OVELHAS IAM PRA BAIXO.
MARIA IA PRA BAIXO.
AS OVELHAS IAM PRA CIMA.
MARIA IA PRA CIMA.
MARIA IA SEMPRE COM AS OUTRAS.


UM DIA, TODAS AS OVELHAS FORAM PARA O POLO SUL.
MARIA FOI TAMBÉM.
AI, QUE LUGAR FRIO!
AS OVELHAS PEGARAM UMA GRIPE!!!
MARIA PEGOU GRIPE TAMBÉM.
ATCHIM!


MARIA IA SEMPRE COM AS OUTRAS.


DEPOIS TODAS AS OVELHAS FORAM PARA O DESERTO.
MARIA FOI TAMBÉM.
AI, QUE LUGAR QUENTE!
AS OVELHAS TIVERAM INSOLAÇÃO.
MARIA TEVE INSOLAÇÃO TAMBÉM. UF! PUF!


UM DIA, TODAS AS OVELHAS RESOLVERAM COMER SALADA DE JILÓ.
MARIA DETESTAVA JILÓ.
MAS, COMO TODAS AS OVELHAS COMIAM JILÓ, MARIA COMIA TAMBÉM.
QUE HORROR!


MARIA PENSOU, SUSPIROU, MAS CONTINUOU FAZENDO O QUE AS OUTRAS FAZIAM.


ATÉ QUE AS OVELHAS RESOLVERAM PULAR DO ALTO DO CORCOVADO
PRA DENTRO DA LAGOA.
TODAS AS OVELHAS PULARAM.
PULAVA UMA OVELHA,
NÃO CAIA NA LAGOA, CAIA NA PEDRA,
QUEBRAVA O PÉ E CHORAVA: MÉ!
PULAVA OUTRA OVELHA,
NÃO CAIA NA LAGOA, CAIA NA PEDRA,
QUEBRAVA O PÉ E GRITAVA: MÉ!


E ASSIM QUARENTA E DUAS OVELHAS PULARAM,
QUEBRARAM O PÉ, CHORANDO: MÉ ! MÉ! MÉ!


CHEGOU A VEZ DE MARIA PULAR.
ELA DEU UMA REQUEBRADA,
ENTROU NUM RESTAURANTE E COMEU UMA FEIJOADA.


AGORA, MÉ , MARIA VAI PARA ONDE CAMINHA O SEU PÉ!

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Órion - Carlos Drummond de Andrade


A primeira namorada, tão alta
que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.

Luzia na janela do sobradão.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Anota aí, vai


Ah, se pudéssemos recuperar aquelas frases de efeito, ditas de um jeito espontâneo, na mesa do bar!
Na hora pareciam interessantes, e alguém falou, recomendando: "Anota aí, vai".
Mas nunca carregamos papel e caneta, e deve ser porque não acreditamos que temos capacidade de escrever algo interessante.
Se acaso alguma frase ou fragmento surgir, recorremos ao garçon, indiferente, desconfiado ou cúmplice, para trazer um pedaço de papel e caneta.
Como num jogo de cartas, as vontades são embaralhadas na mesa do bar. Cada um torce para que a sorte lhe traga melhores frases de efeito ou - que não é diferente - fartos olhares.
É pela quantidade de chopes que arriscamos apostas que, de dia, devido a claridade e a censura, nunca o faríamos.
E o círculo se completa na manhã seguinte, quando somos despertados pelo sentimento de culpa: "O que que eu fui fazer?!"
Espiamos nossos pecados.
Espiamos também as ditas frases "geniais" anotadas no pedaço de papel, e descobrimos, ridículos, que elas são bem fraquinhas...
Mas crescemos assim.
Lembremos da sutileza com que espiávamos pela fechadura segredos agitados pela curiosidade. Sabíamos o momento certo para entrar em cena.
Depois, éramos corroídos pela culpa, até o dia da confissão ao padre.
Crescemos e deixamos de ser atores. Ficamos medrosos do ridículo.
Medrosos até o segundo chope. Depois, dada a ordem ou súplica do "Anote aí, vai", temos certeza de que nossa idéia genial vai revolucionar o mundo.
Finalmente nosso cérebro processou algo interessante!

Vamos ao bar para espiar e anotar, quando possível.
Não o tamanho do lanche e refris pet que os casais, pais e filhos devoram.
Espiamos o frescor dos seus segredos, as trocas de olhares, caras alegres ou semblantes franzidos, lábios trêmulos ou bem desenhados.
Espiamos de cá e de lá, na ânsia de que algum olhar se choque com nosso olhar, e que se tivermos essa carta na manga (curinga?) aplacaremos, um pouco, nossa solidão.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

No dia em que o gato falou - Millôr Fernandes


Era uma vez uma dama gentil e senil que tinha um gato siamês. Gato de raça, de bom-tom, de filiação, de ânimo cristão. Lindo gato, gato terno, amigo, pertencente a uma classe quase extinta de antigos deuses egípcios. Este gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano. Mas falar não falava. E sua dona, triste, todo dia passava uma ou duas horas, repetindo sílabas e palavras para ele na esperança de que um dia aquela inteligência que via em seu olhar explodisse em sons compreensivos e claros. Mas nada!

A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, preso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era somente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo, muito mais do que devia. Um papagaio, que falava pelas tripas do Judas. Curiosa natureza, pensava a mulher, que fazia um gato quase humano, sem fala, e um papagaio cretino mas parlapatão. E quanto mais meditava mais tempo gastava com o gato no colo, tentando métodos, repetindo silabas, redobrando cuidados para ver se conseguia que seu miado virasse fala.
Exatamente no dia 16 de maio de 1958 foi que teve a ideia genial. Quando a ideia iluminou seu cérebro, veio acompanhada da critica, auto-crítica: “Mas, como não me ocorreu isso antes?” O papagaio viu no brilho do olhar da dona o seu (dele) terrível destino e tentou escapar, mas estava preso. Foi morto, depenado e cozinhado em menos de uma hora. Pois o raciocínio da mulher era lógico e científico: se desse ao gato o papagaio como alimentação, não era evidente que o gato começaria a falar? Era? Não era? Veria. O gato, a princípio, não quis comer o companheiro. Temendo ver fracassado o seu experimento científico, a dama gentil e senil procurou forçá-lo. Não conseguindo que o gato comesse o papagaio, bateu-lhe mesmo – horror! – pela primeira vez. Mas o gato se recusou. Duas horas depois, porém, vencido pela fome, aproximou-se do prato e engoliu o papagaio todo. Imediatamente subiu-lhe uma ânsia do estômago, ele olhou para a dona e, enquanto esta chorava de alegria, começou a gritar (num tom meio currupaco, meio miau-miau-miau, mas perfeitamente compreensível):
– Madame, foge pelo amor de Deus! Foge, madame, que o prédio vai cair!
A mulher, tremendo de emoção e alegria, chorando e rindo, pôs-se a gritar por sua vez.
– Vejam, vejam, meu gatinho fala! Milagre! Fala o meu gatinho!
Mas o gato, fugindo ao seu abraço, saltou para a janela e gritou de novo:
– Foge, madame, que o prédio vai cair! Madame, foge! – e pulou para a rua.
Nesse momento, com um estrondo monstruoso, o prédio inteiro veio abaixo, sepultando a dama gentil e senil em meio aos seus escombros.
O gato, escondido melancolicamente num terreno baldio, ficou vendo o tumulto diante do desastre e comentou apenas, com um gato mais pobre que passava:
– Veja só que cretina. Passou a vida inteira para fazer eu falar e no momento em que falei, não me prestou a mínima atenção.


MORAL: O mal do artista é não acreditar na própria criação.


Utopia

  Ontem cruzei pelo Janjão, sujeito meio andarilho e meio morador das ruas do A. Texas, e perguntei-lhe se está curtindo a leitura do li...