quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Um dia normal


 

Seria um dia normal.
Mas a neblina veio do mar às três da tarde.
E quando acordei da sesta, pouco antes das três, não havia café, nem leite, nem açúcar. As paredes descascavam devagar, como lagartas devorando borboletas.
Na tevê, o som chiado de um noticiário distante.
Um vizinho - aquele viciado em crack, TikTok e Coca-Cola - gritava do pátio:
- A professora desaparecida foi encontrada… dentro de um freezer!
O cheiro de morte libertou-se das minhas narinas e tomou conta do quarto.
Abri a janela, acendi um galhinho de alecrim.
A fumaça se misturou à neblina - modesta oferenda contra o invisível.
No celular, mais tragédias.
Uma garota cortou os pulsos e, enquanto o SAMU tentava reanimá-la,
o vídeo dela corria no Instagram -
rostos comentando com emojis e corações.
Na rua, uns malucos me olharam de um jeito torto.
O meu eu paranoico “viu” que apontavam o dedo.
- Você é o culpado!
De repente, o mundo se ergueu contra mim:
fuzis, foices, martelos, chaves de fenda descomunais,
robôs de linha de montagem da Volkswagen marchando em sincronia.
Fechei a janela, fiz as malas
decidido a mudar pra uma praia do Nordeste
no próximo inverno do A. Texas.
Silêncio.
Guardei o jornal.
O cheiro de alecrim persistia.
Na barbearia, o espelho me olhou de volta.
Por um instante, juro que vi outro homem -
mais calmo, mais velho, mais cansado -
tentando parecer normal.
(B. B. Palermo)

terça-feira, 28 de outubro de 2025

A dona me ajuda a atravessar o rio

 


Hoje me preparou um incrível café da manhã
servido na cama.

Cheia de disfarces, talvez vista roupa de enfermeira, cuidadora,
professora de meditação - ou, quem sabe,
seja analgésico, antialérgico, antibiótico ou anti-inflamatório
me bombardeando até afugentar vírus e bactérias que me atacam
nesses becos enredados por boates e bares ferventes.

É necessária e oferece sobrevida a quem for esperto
ao cruzar o seu caminho -
mas com ela nunca se é esperto.
Não no seu tamanho.

Ainda não pirei, apenas saí de mim algumas vezes.
Mas a maturidade penosa
e certas mulheres bem-intencionadas
pedem que eu abandone os maus hábitos.

Fujo das garotinhas dos traficantes,
e a cada manhã juro pra mim mesmo
que vou encarar novas rotinas -,
mas um ciclone desaba em minha alma
quando tele-entregas voam pelas ruas,
e estômagos ansiosos aguardam o xis-bacon e a pizza,
e farmácias de pernas abertas invadem madrugadas,
e ambulâncias chegam rápido,
e tudo o que preciso é manter o controle,
mas tudo o que faço é perdê-lo.

O medo ronda e espreita.

Eis que é chegada a hora:
Dona - aquela que vai apanhar minha mão
e me conduzir até o misterioso barquinho
para atravessar o último rio -
se aproxima cada vez mais,
e já escuto os seus sinais.

Chama-me com labaredas poéticas:

- Deve ser terrível, Palermo,
percorrer as romarias desse teu mundinho,
e teus olhos enxergarem apenas retângulos,
esferas e quadrados, num horizonte povoado por edifícios,
rodas de carros e motos...
Garoto, teu planetinha anda sofrível -
parece um aquário cheio de anúncios!
Vem... Vem comigo!

Dona veste minissaia e, num salto alto,
é a criatura mais linda da cidade.
Metamorfoseia-se do jeito que quiser:
loira, morena, jovem, meia-idade,
bruxa, feiticeira, musa, vilã...

Apresenta-se como se fosse da casa -
e é da casa, como os loucos amores

de outros tempos.

Se é morte ou se é vida,
não sei.
Só sei que me chama pelo nome.

Eis o derradeiro desafio:
decifrá-la, antes que me devore.

Ela ri do meu drama
e pede um último gole.

- Relaxa, Palermo,
ninguém controla nada mesmo.

E eu - meio tonto, meio lúcido -
penso que, se for pra atravessar o rio,
que seja dançando.

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Viagem ao fim da noite

 

O cachorro passa mancando...
não me percebe.
Compreendo a lição:
a vida é busca, é movimento.
Quem prova isso é o motoboy
e sua descarga barulhenta,
nas dezenas de vezes que passou hoje pela rua,
como uma retroescavadeira levantando voo.
O tonto não sabe - ou não quer saber -
da tal “poluição sonora”,
nem de que é responsável
pelas consequências de seus atos.
Alguém aí se importa?
Vou à praia ao entardecer.
A natureza me chama.
Eis que me deparo com um trator
puxando va-ga-ro-sa-men-te uma rede.
E sei lá...
fiquei triste, como a personagem da Clarice Lispector
em A Paixão segundo GH,
que devorou uma barata.
Uma tristeza que ninguém sabe explicar.
Assim que a rede saiu do mar,
fui encarado por um peixe-espada,
e seus olhos me fuzilaram:
- Eu não desejava morrer!
Vieram lembranças de andanças e fiascos
nas noites boêmias,
num tempo em que meus olhos estavam
em melhor estado de conservação
do que o pobre peixe agonizando na areia.
Mais cedo ou mais tarde (e que isso sirva de consolo)
seremos todos arrastados - alegres ou tristes -
pela mesma rede que chamam
de viagem ao fim da noite.
(Pensamentos & poemas espirituosos)

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Toda Lorena

 


Olhava pro fogo mágico do entardecer,
que mais parecia uma lareira mandando bem
em viagens noutras esferas.
Me encanto ao ver minha musa pela manhã
toda serena,
e na pegada do dia toda Lorena,
ariana sem papas na língua,
fogueiras acesas por todos os poros,
prática e desenrolada - e dúzias de atributos
que me fazem sonhar.
Caminha bem à frente, e eu faço de tudo pra alcançá-la.
Dia após dia ela ri
da minha fúria poética,
e nossos tempos ficam dançando.
Diz que minha chama precisa superar o álcool.
Bom garoto - não nego.
Talvez adore isso. Ou não.
Sou um poeta torto, e sei
que minha desimportância é risível,
mas pra minha teimosia é a coisa mais importante
do mundo.
Fujo das multidões:
O cara que se imagina muito comentado
e pouco compreendido,
como a Bíblia.
É pena nossa rotina
não virar novela.
Queria falar da vida mágica nas ruas do Texas,
areia esbranquiçada, grama verdinha,
a primavera chegando -
mas meu bem me empurra
pro abismo da realidade,
contando moedas
no fim do mês.
Mesmo assim fico doido
pra descrever o entardecer avermelhado,
a lua cheia no cenário,
até ela lembrar que tais cores
vêm das queimadas no Centro-Oeste.
Como não amá-la,
se é ela quem me diz
que poesia não paga as contas,
mas ajuda a esquecê-las?
(B. B. Palermo)

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Pobres

 

Os pobres - dizem - só pensam em grana,
mas o ouro que buscam
é o mesmo que brilha no coração de quem teme a fome.
Talvez sejamos todos mendigos
da própria luz,
pedindo migalhas de sentido
ao grande silêncio do tempo.

Falam que não leem poesia,
mas há verso nas mãos calejadas,
há filosofia no olhar de quem acorda cedo
e enfrenta a tempestade dos dias.
A alma, ainda que adormecida,
pulsará quando o vento disser o seu nome.

Na beira do mar, à entrada da noite,
ouço bandos de pássaros nômades
trazendo recados de outros céus.
Chove no Saara, neva no Nordeste,
e quero-queros dançam valsas sobre a areia,
como se anunciassem um renascimento.

Sou o pão que se reparte,
sou o Maná que desce da nuvem,
mas o som de minha voz
não alcança as janelas fechadas -
moradores da rua
tor-nam-se
sur-dos
de es-pí-ri-to.

E então compreendo:
não há ricos nem pobres,
há apenas os que esquecem
e os que lembram.

Piso fundo na terra
e sinto que o ego é só poeira,
um véu entre nós e o infinito.
E da poeira nasce uma pergunta antiga,
agora suave, como quem reza:
- O que é essencial para você?

(Pensamentos & Poemas Espirituosos)

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

O surdinho noiado



Sentei pra meditar e foi uma doideira.

Tentava não pensar, mas vinha seu rosto lindo
em todos os contornos:
olhos, traços da boca divina, sobrancelhas, o cabelão...
Focava de novo em não pensar
e vinha o calor do seu corpo e abraços
disparando choques de 1500 volts
que me levavam a outras dimensões,
algo bem próximo do paraíso.
Sua voz murmurando coisas que só uma feiticeira
sabe dizer pra encantar um garoto carente de amor,
mas que a vida, pela dor dos afetos, ensinou a enfrentar,
sempre fugindo e dizendo não.
“Prefiro estar sozinho, tenho medo de perder quem amo”.
Enamorado, hoje me finjo de surdo para as suas dicas
de como seduzi-la e ser o cara
pra uma garota de classe.
Eu sei, pelo brilho dos seus olhos,
que o feitiço virou contra a feiticeira,
e ela também se enamorou.
E ficamos nessa:
vivemos com intensidade o momento,
e aí me faço de desentendido,
desejando sempre um novo bis,
e dou gargalhadas deliciosas
quando a ouço dizer:
- Você sempre pede pra que eu repita
as coisas mais divinas que eu tenho pra te dizer...
Assim não dá, meu surdinho noiado!

Dois pra lá, dois pra cá

  Eu podia estar num avião rumo a Fernando de Noronha, contemplando o mar azul-cartão-postal. Mas estou aqui, duelando com a senhoria do meu...