quinta-feira, 3 de junho de 2021

Dando uns tiros no cafofo

 

Beiço aterrissou aqui em casa

com cara de desconfiado, óbvio,

quis me pegar com a boca na botija.

Invadiu meu lar e encarou minha alma nua.

Eu vestia um pijama surrado,

guardanapos molhados de cerveja sobre a mesa,

cobertores enrolados sobre o sofá,

folhas de jornal espalhadas pelo chão,

a pia entupida de louça pra lavar.

Ele foi logo averiguando quais livros

estavam espalhados sobre a mesa

- que drogas eu andava lendo?

Tudo se confirmou.

Alguém tinha assoprado:

Cadelão, por algum motivo surreal,

ou talvez por estar com medo de morrer,

quis encontrar algum sentido

nos livros de Allan Kardec.

Não sei se o cretino falava sério

ou se apenas debochava:

"Tu para com essa frescura de espirituosismo, Cadelão,

senão um dia desses eu pego meu 38

e dou uns tiros neste cafofo!".

Eu estava realmente oco,

creio que por ter acordado há pouco,

forçava, forçava, e não me vinha

qualquer pensamento bizarro ou austero.

Logo depois olhei pro teto e a verdade se revelou:

Beiço contara a todos os imbecis

que chamamos de amigos

o triste fim do Cadelão,

em sua fraquejada espirituosa.

Eu tenho minhas cartas na manga,

e sei que eles não compreendem,

porque não conhecem os segredos

do escritor intuitivo.

Os cretinos se encheram de existencialismo

e materialismo,

e não sabem a dimensão de minha alegria

ao captar as energias cósmicas que me acariciam

com suas lufadas inspiradoras.

Pobrezinhos desses irmãos céticos,

nunca vão acreditar que, neste exato momento,

estou sendo inspirado por Leminski e Bukowski.

Dois grandes, claro, dentre outros vários FDPs

que de madrugada sopram e assopram

versos perversos.

Meus amigos jamais vão alcançar

minhas "verdades" ocultas.

Quando ouço Mozart, por exemplo,

eu literalmente verto lágrimas,

tamanha é a alegria que a beleza da música

desse espírito da porra

assopra em minha alma.

 

(B. B. Palermo)

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