terça-feira, 18 de janeiro de 2011
O tamanho do sonho - Cíntia Moscovich
Num famosérrimo salão de beleza da Capital, eu observava um cabeleireiro que arrematava seu trabalho arrepiando com gel o que restara na cabeça de um guri duns nove anos. As laterais tinham sido sumariamente raspadas, apenas uma faixa de cabelo preenchia o espaço da nuca à testa: o corte moicano.
Achei a cena graciosa. Primeiro porque me lembrei da época em que, sem o recurso de gel, spray, musse ou cera, aquele mesmo penteado era moldado na base do sabonete. Lembrei também que o tal moicano tinha representado a mais legítima expressão de marginalidade, coisa de punks, metaleiros e outros undergrounds da vida – nada que combinasse com o salão em que estávamos.
Minha manicure, vendo que eu me interessava pelo corte do menino, esclareceu:
– É o corte Neymar. Todas as crianças querem.
Neymar, todo mundo sabe, é aquele jogador do Santos, meio desbocado e que usa correntão de ouro no pescoço. Encarnação do futebol-arte, muito jovem e, desculpem, muito brega.
Sei, no entanto, que as crianças não estão nem aí e imitam seus ídolos de futebol – até me lembro de uns pobrezinhos usando a infâmia do topete em meia-lua do Ronaldo Fenômeno. Também sei que cada época gera seus próprios ídolos e que eu tenho mais é que respeitar a escolha do tempo em que vivo.
Só uma pergunta: por que aquela criança, por cujo corte a mãe desembolsou uns R$ 50, idolatra um jogador de futebol? Por que, para sermos um pouquinho originais, nossa infância não escolhe outro tipo de paixão? Por que nossos pequenos nivelam seus sonhos aos pés de um moleque?
E se nossa juventude cobiçasse ser grande não só no esporte? Como seria se os pequenos passassem a venerar bons engenheiros, a adorar bons pintores, a se espelhar em bons filósofos, bons atores, bons dançarinos?
E se o ideal dessa gurizada fosse se tornar bom escritor, bom estilista, bom pesquisador, cineasta, músico, será que a gente não evitaria sermos a mixórdia que somos? E se, ao invés de show, déssemos à infância o silêncio da civilidade? E se, ao invés de berros, ensinássemos palavras?
Acompanhando aquele gurizinho do salão de beleza se transformar num punk de mentirinha, senti também uma espécie de desânimo e concluí que o mau gosto prevaleceu e que chegamos ao fim da picada.
Pior: me dei conta de que estamos nisso por nossa incompetência para sonhar, já que a gente é matéria e tamanho de nossos sonhos. Naquela hora, só me ocorreu pedir à manicure o esmalte mais roxo que fosse possível encontrar. Seria minha homenagem à contestação, à criatividade, à invenção e à arte.
Viva o sonho. E viva tudo o que não for ídolos com pés de absoluto e medíocre barro.
Zero Hora, 18 de janeiro de 2011.
domingo, 16 de janeiro de 2011
AS RÃS
A primavera
foi úmida
e das rãs.
elas partiram
e o verão secou...
Secaram
as cigarras
e a alegria
dos meus vizinhos.
Estão de férias
a inspiração
e os sorrisos...
Pra não ficarmos
duros graves e tantãs,
que voltem as rãs!
sábado, 15 de janeiro de 2011
O ciclo de Pedro Malazarte
De como Malazarte fingiu que se matava
Vendo que a vitima vinha em sua perseguição, deu tudo quanto tinha e, ao aproximar-se de um riacho, encontrou uma mulher a lavar roupa. Estava perdido, porque a lavadeira daria ao perseguidor a sua direção.
Mais que depressa tocou a carneirada a atravessar o riacho, e tomando um dos carneiros, tirou-lhe as tripas e meteu-as debaixo da camisa. Quando a manada passou, ele arrancou da faca, fingiu que abriu o ventre e deixou cair na água as tripas do carneiro, que ali levou ocultas.
A lavadeira deu um grito, caiu desmaiada ao presenciar tal cena e Malazarte desapareceu.
Quando o perseguidor chegou à toda, e perguntou à lavadeira se tinha visto passar um homem tocando uma carneirada, ela respondeu, quase sem poder falar, que Pedro Malazarte havia feito o que ficou dito.
E, porque Pedro já estava longe com o rebanho, o homem voltou soltando um milhão de pragas.
De como Malazarte passa adiante a carneirada
Já muito longe, encontrou um porqueiro que vinha tocando também. Pedro Malazarte que já previa que o fazendeiro havia de vir no seu rasto, propôs troca dos carneiros, (que valiam menos, pelos porcos, que valiam mais).
Fecharam o negócio, tendo o porqueiro feito uma volta em dinheiro.
Malazarte seguiu com a porcada e o outro com os carneiros, em direção oposta.
O porqueiro foi pousar em casa do dono dos carneiros. Ao ver o seu rebanho, o homem avançou para o porqueiro, e exigiu entrega do que era seu. O porqueiro quis resistir, mas vendo que o homem estava armado até os dentes e tinha muitos capangas, não teve outro remédio senão fazer a restituição, ficando no prejuízo, e tocou pra trás a ver se encontrava o Malazarte que já estava longe, tendo tomado por um atalho que foi dar numa fazenda. E, vai então, vendeu a porcada por um precinho barato, mas com a condição de o comprador deixar que ele cortasse a ponta do rabo de cada porco.
Fecharam o negócio e Pedro Malazarte meteu no embornal os rabinhos dos porcos e bateu o pé na estrada.
De como Malazarte rouba as jóias de uma família.
E foi dar no castelo de um ricaço que era casado e tinha uma filha, e ofereceu-se para empregado. E foi aceito. Como era tempo de chuva, o chiqueiro estava que era mesmo um lameiro. E Malazarte teve logo uma idéia. De noite tocou para longe a porcada do ricaço e, voltando, espetou no lameiro as caudas dos porcos. E, quando de manhã o dono da casa veio ver a porcada, Malazarte lhe apontou o lameiro e disse-lhe que os porcos estavam atolados, apenas com os rabos de fora.
O dono da casa mandou-o logo que fosse em casa buscar duas enxadas a ver se podiam desenterrar os animais. Pedro Malazarte foi numa corrida e, lá chegando, viu a dona e a filha passeando no jardim e lhes disse:
- O patrão mandou que as senhoras me acompanhem. Elas duvidaram, mas Malazarte gritou, perguntando ao patrão que estava lá embaixo:
- As duas, patrão?
- Sim, as duas, e sem demora! As duas, pateta!
E, então, as senhoras não puseram mais diferença e acompanharam Pedro que tomou com elas outra direção. Já longe o velhaco amarrou-as numa árvore, tirou-lhes todas as jóias que eram de grande preço, fugiu e foi tocar a porcada que tinha ocultado no dito retiro.
E, quando o ricaço, cansado de esperar, foi a casa e não encontrou a mulher e a filha, bateu a procurá-las até que as achou amarradas onde Malasartes as havia deixado.
Quando voltou é que viu que dos porcos só havia os rabinhos, que ele é que era um pateta de marca.
A muitas léguas dali, o Malazarte negociou a porcada, recebeu o cobre, comprou um bom terno de roupa e foi parar em certa cidade, onde, logo na entrada, havia uma bonita chácara que era do dr. Juiz de Direito.
De como Malazarte faz mais uma que parecia duas
Eram já por umas dez da noite. O Malazarte bateu à porta e pediu pousada, dando o nome de doutor Fulano, que vinha visitar aquela terra. O Juiz costumava entrar tarde, pois ficava até à meia-noite fora de casa, jogando marimbo com um seu compadre. E vai então o filho do Juiz na sua simplicidade, mandou entrar o hóspede e, depois de um bom chá, deu-lhe pousada, no quarto da sala, onde o Juiz costumava se vestir. E quando o Juiz chegou, o filho lhe contou o que se tinha passado e o tolo ficou muito satisfeito daquela hospedagem.
E vai então lá pela madrugada o Malazarte começou a sentir umas coisas na barriga…Procurou o vaso e, não o encontrando, abriu a janela… mas lá fora havia uma cachorrada, que foi um barulho de latidos que nunca se viu.
O Malazarte estava suando frio. Mas nisto avistou na prateleira uma caixa. Abriu, havia dentro uma cartola de pelo. Estava salvo! Tirou a cartola, fez nela o que quis, pôs outra vez na caixa e esta no lugar onde antes estava.
De manhã, quando ouviu tropel dos criados saiu e… este mundo é meu!…
Quando vieram chamar o Malazarte para o café, não o acharam mais.
À hora do almoço, o Juiz saiu do quarto e foi para o cômodo em que se costumava vestir.
Era dia de júri. Vestiu a sobrecasaca, e, distraído, tirou a cartola que enterrou, de um golpe, na cabeça.
Para que tal fizeste! Ficou com a cara enlameada e sentiu um cheiro que quase o afogou. Começou então a gritar. A família veio toda, pensando que tinha acontecido alguma desgraça.
Ao vê-lo naquele estado, correram todos a buscar socorro. O filho trouxe-lhe um banho, a filha água florida, a mulher sabonete de cheiro.
E depois houve risada que não foi brinquedo, enquanto o Juiz bufava de raiva. E os jurados já estavam cansados de esperar por ele…
Mas o Malazarte já estava longe. Até parecia que tinha parte com Belzebum.
Do livro Os grandes contos populares do mundo. Organizado por Flavio Moreira da Costa.
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
De como Malazarte vendeu o urubu
O dono da casa, vendo que o urubu de Pedro Malazarte era encantado e sabia descobrir todos os segredos, propôs-lhe comprá-lo.
Malazarte, pescando que estava em véspera de fazer um bom negócio, encareceu ainda mais as virtudes do urubu e pediu este mundo e o outro.
O homem vacilou em fechar o negócio, e Pedro, justamente quando uma preta velha veio trazer café à sala, disse ao dono da casa, de modo que a mucamba ouvisse:
- Este bicho é deveras encantado, patrão. Ele é capaz de descobrir outras coisas que se passam em sua casa sem o senhor saber.
- Não me diga isto!
- É o que lhe digo. Mas, para que ele não emudeça e possa contar tudo que tenha visto, é preciso que haja o maior cuidado para que nenhuma mulher lhe verta água na cabeça. E se quiser experimentar deixe-o esta noite ficar no corredor, que amanhã teremos que saber muitas novidades.
O homem aplaudiu a proposta e prometeu comprar o urubu, se saísse certo o que lhe dizia o Malazarte.
Mas a preta que tinha ouvido a combinação mal saiu da sala foi contar tudo à senhora, que ficou muito assustada, pois que, naquela noite, havia de receber a visita do sacristão da vila, e não sabia como arranjar para que o urubu candongueiro não pusesse tudo a perder.
A preta teve uma luz, e disse que não havia perigo, pois ela se encarregaria de verter água na cabeça do urubu para que ele perdesse o encanto.
Às tantas da noite todos se foram acomodar, tendo Malazarte cuidado de deixar o bicho no corredor, fazendo de sentinela.
Vai senão quando, lá para a virada da noite, a dona da casa, pé que pé, veio abrir a janela, por onde saltou para dentro o sacristão, enquanto a preta estava fazendo o que prometera na cabeça do urubu.
Quando o bicho se viu com a cabeça toda molhada, não teve mais conversa – tico! e deu uma bicada na preta lá onde quis e ela ficou segura, e vai então a negra soltou um grito.
A senhora, temendo que o marido despertasse, correu para arrancar sua mucamba do bico do bicho. Agarrou-a pelo braço, mas não houve meio. A rapariga, então no auge do aperto, apregou-se no braço da senhora, que se pôs também a gritar. O sacristão acudiu para ver se podia ajudar as duas a desvencilharem-se. Mas já a este tempo, Pedro Malazarte havia despertado o dono da casa. E os dois correram a ver o que era e encontraram aqueles três assim como estavam.
E vai então o dono da casa descobriu tudo, desancou o sacristão a pau, moeu os ossos tanto da senhora como da escrava e resolveu comprar o urubu.
Mas aí é que foi a história. Pedro Malazarte pediu pelo bicho cinco contos de réis. Abate que não abate, o homem teve mesmo de encorropichar o cobre, vintenzinho por vintenzinho, e Pedro Malazarte, deixando ficar o urubu, de quem se despediu chorando, pôs-se a caminho, mas vendo no pátio da fazenda uma carneirada, resolveu levá-la também e foi tocando como se fosse dono dela.
Do livro Os grandes contos populares do mundo. Organizado por Flávio Moreira da Costa.
Malazarte, pescando que estava em véspera de fazer um bom negócio, encareceu ainda mais as virtudes do urubu e pediu este mundo e o outro.
O homem vacilou em fechar o negócio, e Pedro, justamente quando uma preta velha veio trazer café à sala, disse ao dono da casa, de modo que a mucamba ouvisse:
- Este bicho é deveras encantado, patrão. Ele é capaz de descobrir outras coisas que se passam em sua casa sem o senhor saber.
- Não me diga isto!
- É o que lhe digo. Mas, para que ele não emudeça e possa contar tudo que tenha visto, é preciso que haja o maior cuidado para que nenhuma mulher lhe verta água na cabeça. E se quiser experimentar deixe-o esta noite ficar no corredor, que amanhã teremos que saber muitas novidades.
O homem aplaudiu a proposta e prometeu comprar o urubu, se saísse certo o que lhe dizia o Malazarte.
Mas a preta que tinha ouvido a combinação mal saiu da sala foi contar tudo à senhora, que ficou muito assustada, pois que, naquela noite, havia de receber a visita do sacristão da vila, e não sabia como arranjar para que o urubu candongueiro não pusesse tudo a perder.
A preta teve uma luz, e disse que não havia perigo, pois ela se encarregaria de verter água na cabeça do urubu para que ele perdesse o encanto.
Às tantas da noite todos se foram acomodar, tendo Malazarte cuidado de deixar o bicho no corredor, fazendo de sentinela.
Vai senão quando, lá para a virada da noite, a dona da casa, pé que pé, veio abrir a janela, por onde saltou para dentro o sacristão, enquanto a preta estava fazendo o que prometera na cabeça do urubu.
Quando o bicho se viu com a cabeça toda molhada, não teve mais conversa – tico! e deu uma bicada na preta lá onde quis e ela ficou segura, e vai então a negra soltou um grito.
A senhora, temendo que o marido despertasse, correu para arrancar sua mucamba do bico do bicho. Agarrou-a pelo braço, mas não houve meio. A rapariga, então no auge do aperto, apregou-se no braço da senhora, que se pôs também a gritar. O sacristão acudiu para ver se podia ajudar as duas a desvencilharem-se. Mas já a este tempo, Pedro Malazarte havia despertado o dono da casa. E os dois correram a ver o que era e encontraram aqueles três assim como estavam.
E vai então o dono da casa descobriu tudo, desancou o sacristão a pau, moeu os ossos tanto da senhora como da escrava e resolveu comprar o urubu.
Mas aí é que foi a história. Pedro Malazarte pediu pelo bicho cinco contos de réis. Abate que não abate, o homem teve mesmo de encorropichar o cobre, vintenzinho por vintenzinho, e Pedro Malazarte, deixando ficar o urubu, de quem se despediu chorando, pôs-se a caminho, mas vendo no pátio da fazenda uma carneirada, resolveu levá-la também e foi tocando como se fosse dono dela.
Do livro Os grandes contos populares do mundo. Organizado por Flávio Moreira da Costa.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
De como Malazarte fez o urubu falar
Quando o pai de Pedro Malazarte entregou a alma a Deus, fez-se a partilha dos bens – uma casinha velha – entre os filhos e tocou a Pedro uma das bandeiras da porta da casa, com o que ele ficou muito contente. Pôs a porta no ombro e saiu pelo mundo. Em caminho viu um bando de urubus sobre um burro morto. Atirou a porta sobre eles e caçou um urubu que ficou com a perna quebrada.
Apanhou-o, pôs a porta às costas e continuou viagem.
Obra de uma légua ou mais, avistou uma casa de onde saía fumaça, o que queria dizer que se estava preparando o jantar.
Pedro Malazarte, que sentia fome, bateu à porta e pediu de comer.
Veio atendê-lo uma preta lambisgóia que foi logo dizer à patroa que ali estava um vagabundo, com um urubu e uma porta, a pedir de jantar.
A mulher mandou que o despachasse – que sua casa não era coito de malandros.
O marido estava de viagem e a mulher no seu bem-bom a preparar um banquete para quem ela muito bem o destinava. Neste mundo há coisas!
Pedro Malazarte, tão mal recebido que foi, resolveu subir para o telhado, valendo-se da porta que trazia e lhe serviria de escada. Subiu e ficou espreitando o que se passava naquela casa, tanto mais que sentia o cheiro dos bons petiscos.
Espiando pelos vãos das telhas viu os preparativos e tomou nota das iguarias, e ouviu as conversas e confidências da patroa e da negra.
Justamente na hora do jantar chegou o dono da casa, que resolvera voltar inesperado da viagem que fazia.
Quando a mulher percebeu que ele se aproximava mandou esconder os pratos do banquete e veio recebê-lo e abraçá-lo, muito fingida, muito risonha, mas por dentro queimando de raiva.
Vai daí mandou pôr na mesa a janta, que constava de feijão aguado, paçoca de carne-seca e cobu, dizendo:
- Por que não me avisou, marido? Sempre se havia de aprontar mais alguma coisa...
Sentaram-se à mesa.
Pedro Malazarte desceu de seu posto e bateu na porta, trazendo o urubu.
O dono da casa levantou-se e foi ver quem era.
O rapaz pediu-lhe um prato de comida e ele chamou-o para a mesa a servir-se do pouco que havia.
A mulher estava despreparada, desconfiando da volta do Malazarte.
Pedro tomou assento, puxou o urubu para debaixo da mesa, preso pelo pé num pedaço de corda de pita. Estavam os dois homens conversando, quando de repente o Malazarte pisou no pé quebrado do bicho e este se pôs a gritar: uh! uh! uh!
O dono da casa levou um susto e perguntou que diabo teria o bicho.
Pedro respondeu muito sério:
- Nada! São coisas. Está falando comigo.
- Falando! Pois o seu bicho fala?!
- Sim senhor, nós nos entendemos. Não vê como o trago sempre comigo? É um bicho mágico, mas muito intrometido.
- Como assim?
- Agora, por exemplo, está dizendo que a patroa teve aviso oculto da volta do senhor e por isso lhe preparou uma boa surpresa.
- Uma surpresa! Conte lá isso como é.
- É deveras! Uma excelente leitoa assada que está ali naquele armário...
- Pois é possível! Ó mulher, é verdade o que diz o urubu deste moço?
Ela, com receio de ser apanhada com todo o banquete, e certa já de que Pedro sabia da marosca, apressou-se em responder:
- Pois então? Pura verdade. O bicho adivinhou. Queria fazer-te a surpresa no fim do jantar.
E gritou pela preta:
- Maria, traze a leitoa.
A negra veio logo correndo, mas de má cara, com a leitoa assada, na travessa.
Daí a pouco Pedro Malazarte pisou outra vez no pé do urubu, que soltou novo grito.
O dono da casa perguntou:
- O que é que ele está dizendo?
- Bicho intrometido! Está candongando outra vez. Cala a boca, bicho!
- O que é?
- Outras surpresas...
- Outras!
- Sim senhor: um peru recheado...
- É verdade, mulher?
- Uma surpresa, maridinho do coração. Maria, traze o peru recheado que preparei para teu amo.
Veio o peru. E pelo mesmo expediente conseguiu Pedro Malazarte que viessem para a mesa todas as iguarias, doces e bebidas que havia em casa.
Ao fim do jantar, o dono da casa, encantado com as proezas do urubu, propôs compra-lo a Pedro Malazarte, que o vendeu muito bem vendido, enquanto a mulher e a preta bufavam de raiva, crentes também no poder mágico do bicho, que assim seria um constante espião de tudo quanto fizessem.
Do livro: Os grandes contos populares do mundo. Organização de Flávio Moreira da Costa.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
Quando vejo tua foto
Quando vejo tua foto
o desejo se entusiasma
e me escapa
e traça um mapa
detalhado
dos encontros que teremos
nos lugares
mais secretos...
Pouco importa
se o desejo
vai se esconder
debaixo da cama
ou atrás da porta
ou se vou contar
pra todo mundo...
já que essa paixão
não é comum
(arroz com feijão)
vou soltar rojões
e espalhar pra todos
que encontrar pela frente
- menos aos amigos e parentes!
o desejo se entusiasma
e me escapa
e traça um mapa
detalhado
dos encontros que teremos
nos lugares
mais secretos...
Pouco importa
se o desejo
vai se esconder
debaixo da cama
ou atrás da porta
ou se vou contar
pra todo mundo...
já que essa paixão
não é comum
(arroz com feijão)
vou soltar rojões
e espalhar pra todos
que encontrar pela frente
- menos aos amigos e parentes!
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
Terapia alternativa - Martha Medeiros
Conheci Zeca Baleiro no final de 2010 e, além de confirmar seu talento musical, descobri que ele escreve bem e que inclusive publicou um ótimo livro, Bala na Agulha, em que reúne crônicas postadas em seu blog, e também versos e frases soltas.
Entre suas reflexões sortidas, encontrei um poeminha que diz: "Terapia/faço em casa/ao pé da pia". Alguns anos atrás escrevi um texto em que defendia essa mesma ideia, a de que lavar louça é uma terapia alternativa das mais eficazes: quando estou com a cabeça encardida de pensamentos inúteis, pego esponja e detergente e começo a lavar todos os copos e pratos empilhados na bancada da cozinha.
É como se eu desaguasse ralo abaixo todas as minhas dúvidas e inquietações.
Dou fim à gordura que se acumula na minha massa cinzenta, as ideias vão ficando mais límpidas e, ao término do serviço, a cabecinha fica pronta pra ser usada de novo, tinindo como um cristal.
Caio Fernando Abreu, a quem ando relendo, também escreveu: “Ninguém enlouquece quando tem um tanque de roupa suja pra lavar”. Ou seja, a vida prática pode nos salvar da loucura.
O fato é que ninguém discorda: a ociosidade é mesmo um passaporte para o universo das caraminholas. A falta de um trabalho e de tarefas a cumprir nos transforma em experts em deduções estapafúrdias e em criadores de problemas inexistentes. Uma pia lotada de louça e um tanque transbordando de roupa suja é a metáfora perfeita para a salvação. Foque no que deve fazer e pare de buscar o sentido da vida.
A loucura tem sempre a ver com excesso, inclusive excesso de tempo livre. É muita angústia, muita cobrança, muita indagação, muita procura de cabelo em ovo.
À medida que usamos nosso tempo para atividades que exigem concentração específica no que se está fazendo, como, por exemplo, um projeto para concorrer ao Nobel de pesquisa científica ou lavar louça, o tempo excedente servirá para descansar e deixar que aflorem apenas os pensamentos mais prioritários. Adeus às elocubrações desnecessárias.
Se mesmo quem possui uma rotina atribulada vive em constante hemorragia mental, imagina quem pode ficar a manhã inteira se espreguiçando na cama, não tem supermercado pra fazer, não precisa ficar atento aos horários dos ônibus e com patrão nenhum exigindo eficiência: acaba mesmo pirando na batatinha. É muita inapetência a serviço do Coisa Ruim.
Portanto, ocupe-se. O trabalho não só dignifica, mas economiza nossos neurônios – não os desperdice matutando, matutando, matutando. Quando estiver pensando muita besteira, amarre um avental na cintura e mantenha sua sanidade.
Zero Hora, 9 de janeiro de 2011
domingo, 9 de janeiro de 2011
Três epifanias triviais (I) - Paulo Henriques Britto
Seria trágico se não fosse bobagem.
Seria uma solução se houvesse um problema
possível de resolver. Seria uma imagem
poética se houvesse espaço pra um poema.
Estando as coisas como estão, não é mesmo nada.
O que é uma pena. Pois o gesto em si é belo
como uma ruína, ou uma xícara quebrada.
(Mas não é bem gesto, e sim a intenção de fazê-lo.
É mais a idéia de uma coisa que uma coisa,
apenas um projeto, e a plena convicção
de que mais nada vai acontecer depois,
a consciência de que a pseudo-solução
há de doer a vida inteira na lembrança,
como um castigo injusto imposto a uma criança.)
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
TEU AMOR PERDEU O LUME
Escultura de Clara Fernandes
Teu amor
perdeu
o lume
e foi derrotado
pelo caos
do ciume...
Teu amor
é torto
e esquisito
já não me fascina
entrar
nesse labirinto.
Você se perdeu
na hora de montar
o quebra-cabeças
dos pensamentos
já vai tarde demais
pra se libertar
dos meus sentimentos.
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