terça-feira, 30 de julho de 2024

Caminhando na chuva sem me molhar


 

Apresentação

 

Sábias agudezas...

Refinamentos...

‒ Não!

Nada disso encontrarás aqui.

Um poema não é para te distraíres

Como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.

[...]

Um poema que não te ajude a viver

E não saiba preparar-te para a morte

Não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.


(Projeto de Prefácio ‒ Mário Quintana)

 

Nem agudezas, nem refinamentos encontrarás aqui. Nem temas meramente trazidos para a distração nas imagens caleidoscópicas colhidas pela óptica de Palermo em pequenos fragmentos coloridos. Por seus espelhos articulados, Palermo produz imagens refletidas do universo em que habita e de onde extrai a matéria-prima de sua prosa poética. É na beleza de seu lugar que o poeta encontra razões pra cantar, seja pra festejar, seja pra protestar.

É das intervenções e vivências próprias e, também, do insuperável e inseparável Beiço, do Porko, do Dr. Biza, da Janete, da Janusa, do Damo do Cachorrinho, do Manetta, do Zé, do Cabezón, do Marcão e de outros tantos que produz reflexões sobre o seu aqui e agora ‒ o espaço-tempo atual em que vive. É de sua escassa economia e das contas, inclusive, no bar em atraso, da indubitável hiper hipocondria revelada numa ‘picada’ de taturana, da vaca de presépio a que é reduzido pelo megalomaníaco Dr. Biza e da observação da vida como ela é que ele conclui que a vida é curta demais pra ser pequena.

E ser pequena significa não poder ser desperdiçada em coisas sem relevância. Daí talvez seu viés um tanto escatológico, sem reduzir-se a isso como personagem, quem sabe como estratégia de ‘ligar o f*da-se’ (numa alusão ao conhecido título de Mark Manson), para advertir sobre a necessária mudança de hábito no tratamento da realidade e dos limites do homem e da natureza. Talvez daí um tanto de mistério e misticismo no conto que dá título ao livro ‒Caminhando na chuva sem me molhar ‒, suscitando um quê de realismo mágico e de um novo modo de lidar com nossas adversidades, indiferenças e vulnerabilidades.

Nas trinta narrativas componentes da obra, ordenadas em sua desordem normal, Palermo dá voz e vez à sua pequena guarnição, talvez para não reduzir sua força a um exército de um homem só. Talvez sua maior qualidade seja o modo esquisito com que provoca arrepios naqueles que têm medo do novo, do diferente, do que incomoda o sossego. Talvez por isso, perdoamos-lhe alguns desvios (como o uso por vezes exagerado de alguns palavrões), até porque de perto ninguém é normal, mas que não vão além do mundo das palavras. Se, no Cosmos, a Lua gira em torno da Terra, a Terra em torno do Sol, o Sol em torno de outros astros ou galáxias, no universo da linguagem as palavras giram em torno das palavras, que giram em torno de outras palavras, num sem-fim de rotações e translações.

O perigo maior de Palermo talvez resida em ser, justamente, um poeta ‒ esses estranhos seres que têm, mais do que sangue, o coração nos olhos. Isso o impossibilita a ser ‒ apenas ‒ um ingênuo maldito. Isso o torna capaz de conversar com Deus e o Diabo em qualquer chão, de ir dos píncaros às profundezas, do sublime às sublimações e, de repente, dos pensamentos às ações. E mais: faz isso tudo com boas pitadas de ironia, de humor, de amor. Seja em busca de sentido para um mundo absurdo, seja denunciando o absurdo de um mundo sem sentido, Palermo provoca o leitor a refletir sobre a condição humana.

Parodiando Saint-Exupéry em “Carta ao General X”, quem sabe Palermo denuncie que “não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo? Não é possível! Não é possível viver-se sem poesia, sem cor e sem amor. [...] Nada mais resta do que a voz do robô da propaganda. 8 bilhões de homens, nos tempos de hoje, não escutam mais do que o robô, não entendem mais do que o robô e estão se transformando em robôs”. 

E talvez o nosso poeta traga novidades em sua próxima aparição: promete passar uma temporada em Palermo, para “tentar compreender de onde venho e por que sou assim, meio doido”. É esperar para ver.

Carlos Silveira

Ijuí, janeiro de 2024.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Algo acontece em Marte

 

As frases perambulavam na cabeça

como outdoors nas esquinas,

e eu ainda acredito que a linha do horizonte, no final do dia,

vai me apresentar “mamãe” – a mulher da minha vida.

 

O marido investigava os consertos

que o cara do posto de combustíveis fazia no caminhonetão,

e ela sentada, séria, gostosa e contemplativa e de Ray-ban,

parecendo me observar, sentado num boteco,

a uns 10 metros.

Triste, eu duvidava de que ela tinha curiosidade,

embora eis-me aqui, quadrúpede em extinção,

maluco que viciou em escapulir do zoológico.

Eu a perdoo por não saber que ando por dentro das coisas

– além da fumaça do óleo diesel e do Glifosato e do 24d

que regam as terras desse Marte do Noroeste do RS.

 

Fitava-me, e parecia pensar:

- Como me livrar do MALA,

como sobreviver a um casamento sem emoção,

mas que garante dinheiro e status.

Coloquei-me no seu lugar:

sentir-me o pior por desejar alguma liberdade,

por não me adaptar a uma relação a dois.

 

No final das contas, ela só estava distraída 

focada em algo prático:

ao chegar em casa, colocar as roupas pra lavar,

dar um OI pras flores do jardim

e comidinha pros seus pets!

 

(B. B. Palermo)


domingo, 14 de julho de 2024

Tempestade

 

Suas fotos, nuns lábios carnudos

e cabelos de fogo,

botaram tudo abaixo

e desafiaram o meu mundo,

e então saquei que localizei

a minha tempestade!

Não importa se ela sabe que eu existo,

que escrevo histórias e poemas ridículos,

que sou politizado ou alienado – não importa.

Perdido, estou viciando num cometa

que me locupleta,

musa de lábios e cabelos

de fogo!

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 3 de julho de 2024

Milagres

 

Tudo é possível e permitido e assombroso

e me sinto vivo,

identificando outras notas musicais e etílicas

até vislumbrar, vejam bem, o milagre:

boa parte da vida acelerando feito doido

e agora, patético, bebo

com moderação.

Os postes de iluminação já não despencam

e não me assustam, e juntos – eu, o lixeiro,

os andarilhos e os cães – amanhecemos

comuns.

Vejam bem, garotos, o mundo de possibilidades

que se abre; ou, talvez, seja o começo do fim.

Temos as missas nas manhãs de domingo

e os passes no centro espírita,

até para justificar e acariciar

as recaídas.


Não estou sozinho.

Nuvens acenam quando se expandem no céu.

Gaivotas e outros bichos voam em círculos

anunciando a boa nova:

o que será? O que será?

Já não levo tanto a sério

a história (requentada?)

do Fernão Capelo Gaivota,

de voar mais e mais

alto,

treinando até a perfeição.

O milagre foi manter-se vivo

até aqui.

 

(B. B. Palermo)


Foi o que deu pra fazer

  Dei o livro pra uma amiga que estava de níver, nos seu 90 anos bem vividos, e o Lutero, o cara do pub, exclamou, depois que leu a ...