terça-feira, 22 de junho de 2010
O ROBÔ - Luis Fernando Veríssimo
Tenho contado esta história para meus alunos de sétima, oitava e ensino médio. É mais uma daquelas narrativas do Veríssimo que misturam humor com ironia. Uma daquelas histórias que gostaríamos de ter escrito. Que dizemos, depois de a ter lido: "Como não pensei nisso antes?"
Um dia ele chegou em casa com um robô. O robô era baixinho, redondo e andava sobre rodinhas. A mulher achou engraçado, mas sentiu uma ponta de apreensão. Para que um robô em casa?
- Olhe só - disse o marido. E, dirigindo-se ao robô, disse: - Seis!
O robô foi até o quarto do casal e de lá trouxe os chinelos do homem e a sua suéter de ficar em casa. Voltou para o quarto levando o paletó, a gravata e os sapatos.
- Mas isso é fantástico - disse a mulher, sem muita animação.
- Ele está programado para só obedecer à minha voz - explicou o homem.
Estava tão entusiasmado com o seu robô que a mulher decidiu não lembrar a ele que naquele dia eles faziam dez anos de casados. Ele continuou:
- É um código. De acordo com o número que eu digo, ele sabe exatamente o que fazer.
- Sim.
- Os números vão de 1 a 100 e obedecem a uma sequencia que corresponde, mais ou menos, à importância relativa das tarefas. Entendeu?
- Entendi.
Se ela não tivesse dito nada, seria a mesma coisa, porque o homem não a escutava. Olhava para o robô como um dia, dez anos antes, olhara para ela. Pelo menos ela ficou sabendo que, numa escala de 1 a 100, os chinelos que lhe trazia todos os dias quando ele entrava em casa correspondiam a 6.
Depois do jantar, quando ela começou a limpar a mesa, ele a deteve com um gesto. Disse para o robô:
- Sessenta e um!
O robô rapidamente tirou os pratos da mesa, botou tudo dentro da máquina de lavar pratos, ligou a máquina e voltou para aguardar novas instruções.
Mais tarde, quando o marido disse: "Que tal um joguinho de cartas?", ela levantou-se, alegremente, para pegar o baralho. Logo descobriu que o marido falava com o robô.
- Dezoito!
O robô correu na frente dela, pegou o baralho, pegou o bloco de papel e um lápis, arrumou a mesa para o jogo e ficou esperando. Ele sentou-se para jogar cartas com o robô. Ela perguntou:
- Posso jogar também?
- Este jogo é só para dois - disse o marido. - Você pode ir se deitar, se quiser.
- Você não vai querer mais nada?
- O que eu precisar o robô pega.
Do quarto, ela ficou ouvindo o marido dizer, a intervalos, "vinte e seis" ou "trinta e um", e o ruído do robô, na cozinha, pegando cerveja, salgadinhos, etc.
Tomou uma decisão.
Levantou-se e foi até a sala. De camisola.
- Querido...
- Você não estava dormindo?
- Não.
- Nós fizemos muito barulho?
- Não.
- Então o que é?
- Tem uma coisa que eu faço que esse robô não faz.
- O quê?
- Uma coisa de que você gosta muito.
- Você quer dizer...
- Arrã - sorriu ela.
- É o que você pensa - disse ele. E, para o robô: - Um!
Aí o robô correu até a cozinha e começou a reunir os ingredientes para fazer uma musse de chocolate.
Grupos feministas a apoiaram ruidosamente durante o julgamento, com toda a razão.
Do livro A mãe de Freud, Círculo do livro.
segunda-feira, 21 de junho de 2010
CENÁRIOS
A maquete dos sonhos
prendeu meu olhar.
Cenários se suscedem
e meus olhos
nem conseguem piscar
ou desviar sua direção.
Quando vem o medo
e implora pra recuar
a maquete sussurra horizontes
que moram juntinhos
do meu coração.
Aí, dá uma vontade
de construir praças árvores
cheiros que a chuva traz
tudo o que um dia vi
e toquei com as mãos.
prendeu meu olhar.
Cenários se suscedem
e meus olhos
nem conseguem piscar
ou desviar sua direção.
Quando vem o medo
e implora pra recuar
a maquete sussurra horizontes
que moram juntinhos
do meu coração.
Aí, dá uma vontade
de construir praças árvores
cheiros que a chuva traz
tudo o que um dia vi
e toquei com as mãos.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
SEGREDO Henriqueta Lisboa
Andorinha no fio
escutou um segredo.
Foi à torre da igreja,
cochichou com o sino.
E o sino bem alto:
delém-dem
delém-dem
delém-dem
dem-dem!
Toda a cidade
ficou sabendo.
escutou um segredo.
Foi à torre da igreja,
cochichou com o sino.
E o sino bem alto:
delém-dem
delém-dem
delém-dem
dem-dem!
Toda a cidade
ficou sabendo.
quinta-feira, 17 de junho de 2010
FRANKSTEIN
A menina tem
a boca
nas orelhas
não é pela lua
não é pelo sol
é que a menina passeia
com seu frankstein
O rabo é um toco
e o troço
diz pouco
au, au, au
diz pouco
ai, ai, ai...
frankstein não vive
amarrado
não é solto das patas
não tem pedigree
não é vira-latas
só diz au, au, au
quando a menina vem
só diz ai, ai, ai
quando a menina vai.
terça-feira, 15 de junho de 2010
QUERIA QUE EXISTISSE... - Tatiana Belinky
Esta história, creio, traz preciosos argumentos que ajudarão a justificar a necessidade dos livros e da leitura na vida das crianças. "Criança necessita tanto do 'sobrenatural' como do 'mágico' e do 'fantástico'". Dizem o mesmo os psicanalistas Diana Corso e Mário Corso, no livro Fadas no divã.
O que vou contar aconteceu quando o protagonista deste “causo” estava em plena época dos “por quês” e “pra quês”: quatro anos de idade. Uma idade em que as cabecinhas infantis funcionam à toda, observando e indagando e tentando decifrar o complicado e misterioso mundo que as rodeia. Um mundo complicado e misterioso, mas também fascinante, e às vezes mesmo assustador. Mas vamos ao “causo em causa”.
Andrezinho nasceu de um casamento “misto”, de um casal oriundo de religiões diferentes, e seus pais, um tanto intelectualizados e agnósticos, não se preocuparam em ensinar-lhe qualquer coisa sobre religião. Achavam que, à medida que os filhos fossem crescendo e amadurecendo, acabariam por encontrar e escolher o seu próprio caminho. E que, por enquanto, bastava educá-los numa linha ética e humanista, de amor, solidariedade, tolerância e respeito – por si mesmo e pelo próximo.
Foi na hora do almoço. Sentado à mesa, com os pais e o irmão maior, Andrezinho não participava da animada conversa familiar. Como sempre, quando ficava pensativo, ele enrolava no dedinho indicador a mecha de cabelo macio que lhe caía da testa, os grandes olhos negros, tão parecidos com os do pai, perdidos na distância. Até que por fim, já na sobremesa, o menino soltou um suspiro tão profundo, que todos se voltaram para ele.
- O que foi, André? – Perguntou a mãe, que nunca o chamava de Andrezinho, porque ele não gostava de diminutivos, a ponto de chamar uma escrivaninha de escrivana e uma galinha de gala...
A resposta veio sem titubear:
- Ah... eu gostaria que existisse Deus!
Surpresa geral: ninguém – pelo menos ninguém da família – nunca lhe falou nesse assunto, nunca disse que Deus existia ou deixava de existir. Quando muito, ele deve ter ouvido em casa – porque ainda nem ia à escola – exclamações do tipo “Ai, meu Deus”, “Se Deus quiser”, “Graças a Deus”, “Deus me livre”, essas coisas. E agora, aquele sentido suspiro!
- Mas... por que você diz isso? – pergunta a mãe, carinhosamente, após brevíssima hesitação.
- Porque, se existe Deus, eu ia pedir-lhe uma coisa.
Os pais se entreolharam: o que será que falta a este menino, “onde foi que erramos”? E a mamãe, jovem e inexperiente, pra não dizer bobinha, pergunta:
- Mas o que é que você iria pedir a Deus, que o papai e a mamãe não te podem dar?
E imediatamente, pela expressão do rosto do filhote, mesmo antes de ouvir a resposta, percebe que a sua pergunta foi no mínimo ingênua, ou mesmo tola. Porque a resposta veio pronta, em tom entre admirado e reprovador:
- Ah, mãe! Se existisse Deus, eu ia pedir a Ele para existir Papai Noel!
Ninguém riu. E não era caso de rir, mesmo.O Andrezinho acabava de nos dar uma grande lição, uma “aula magistral”, numa só curta frase. E a lição era: criança necessita do “sobrenatural” como do “mágico” e do “fantástico”.
“Tadinho” do André – quatro aninhos e já tão sem “ilusões”. As lindas ilusões e fantasias dos contos de fadas, das poesias, de todas essas coisas bonitas e muito, muito importantes para a criança. “A fantasia é o hormônio da alma”, disse o famoso escritor e pensador Ortega y Gasset, “sem a qual a alma se resseca e morre...”.
Mas não se preocupem: o Andrezinho superou esse ceticismo, e foi, ele mesmo, um formoso sonhador e poeta na vida.
Do livro Bidínsula e outros retalhos. Editora Atual, coleção Conte outra vez. 1990.
MERA DIVERSÃO
Em quais de nossas atividades diárias nos divertimos? Na vida profissional, por exemplo, há alguma possibilidade disso acontecer?
Misturar pitadas de diversão na competição diária, como o leite no café (mesmo que seja em pó), é uma extravagância, ou quase uma necessidade?
Chamou-me a atenção o comentário do narrador da corrida de Fórmula Um, no último domingo: o piloto divertiu-se um bocado ao fazer manobras em que estavam implicados dois outros pilotos, mais velozes do que ele, e que buscavam ultrapassá-lo - já que brigavam pelas primeiras posições.
Nessas corridas, até os centésimos de segundo são importantes. É o tempo domado pela tecnologia. Esta tem sua margem de erro cada vez menor. As manobras, as decisões, neste curto espaço de tempo, são mecânicas (mecanizadas) ao máximo. Quem bom que, apesar disso tudo, o piloto divertiu-se.
Parece-me que a diversão é vista por nós como simples, sem importância, hoje em dia. Talvez por ter sido diluída pelos atropelamentos da vida que levamos.
Considero que abrir clarões para a diversão, em meio à selva da mecanicidade diária, é como vislumbrar um oásis no deserto.
A diversão a que me refiro pode ser chamada de lúdica e/ou estética.
Não é passatempo ou entretenimento, como boa parte do que assistimos na TV, ou vemos na internet.
Mas acima de tudo, essas brechas lúdicas só têm valor se causarem algum efeito em cada um de nós. Se nos despertarem para algo que ainda não percebíamos. Efeitos que funcionam à maneira de sacudidelas, e nos acordam para outras dimensões do existir, opostas à mecanicidade e superficialidade de nosso pensar e agir, seja individual ou junto com os outros.
Misturar pitadas de diversão na competição diária, como o leite no café (mesmo que seja em pó), é uma extravagância, ou quase uma necessidade?
Chamou-me a atenção o comentário do narrador da corrida de Fórmula Um, no último domingo: o piloto divertiu-se um bocado ao fazer manobras em que estavam implicados dois outros pilotos, mais velozes do que ele, e que buscavam ultrapassá-lo - já que brigavam pelas primeiras posições.
Nessas corridas, até os centésimos de segundo são importantes. É o tempo domado pela tecnologia. Esta tem sua margem de erro cada vez menor. As manobras, as decisões, neste curto espaço de tempo, são mecânicas (mecanizadas) ao máximo. Quem bom que, apesar disso tudo, o piloto divertiu-se.
Parece-me que a diversão é vista por nós como simples, sem importância, hoje em dia. Talvez por ter sido diluída pelos atropelamentos da vida que levamos.
Considero que abrir clarões para a diversão, em meio à selva da mecanicidade diária, é como vislumbrar um oásis no deserto.
A diversão a que me refiro pode ser chamada de lúdica e/ou estética.
Não é passatempo ou entretenimento, como boa parte do que assistimos na TV, ou vemos na internet.
Mas acima de tudo, essas brechas lúdicas só têm valor se causarem algum efeito em cada um de nós. Se nos despertarem para algo que ainda não percebíamos. Efeitos que funcionam à maneira de sacudidelas, e nos acordam para outras dimensões do existir, opostas à mecanicidade e superficialidade de nosso pensar e agir, seja individual ou junto com os outros.
quarta-feira, 9 de junho de 2010
OFICINAS LITERÁRIAS EM PANAMBI/RS
Na terça-feira à tarde (08/06) e quarta-feira pela manhã e pela tarde (09/06) desenvolvemos oficinas literárias nas escolas municipais do município de Panambi. Visitamos as escolas E.M.E.F. Conrado Doeth e E.M.E.F. Bom Pastor.
Nas oficinas, partimos da importância da leitura como instigadora de nossa imaginação, possibilitando criar/inventar e, assim, desfrutarmos o direito da AUTORIA.
Após a declamação de um poema, ou da contação de uma história, enfatizamos para as crianças os elementos fundamentais que autores se fazem valer, tais como a surpresa no desfecho da história, ou uso criativo de imagens, etc.
Os poemas tornam-se mais atraentes se declamados em voz alta, se repetidos, memorizados, lidos para os outros. Prestando atenção, é claro, ao ritmo e à musicalidade.
Resta-nos agradecer neste blog o apoio do colega e amigo Ezequiel Paula dos Santos, pelos contatos, pela articulação das oficinas junto às escolas, enfim, pelo seu engajamento em questões ligadas à cultura e ao conhecimento.
Da mesma maneira, às direções das escolas, coordenações e ao grupo de profes que estiveram ligadas direta ou indiretamente à motivação dos alunos, para que estes se aproximem cada vez mais dos livros e da leitura.
Já estamos com saudades dos amigos (profes e alunos) que fizemos em Panambi. Basta um aceno, e voltaremos correndo para lá.
As atividades deram-se de maneira interativa, com as crianças de terceira, quarta, quinta, sexta, sétima e oitava séries. Os alunos haviam lido, com antecedência junto com suas professoras, os livros "Teco, o poeta sonhador, em: os mistérios do porão" e "Teco... em: segredos do coração".
Nas oficinas, partimos da importância da leitura como instigadora de nossa imaginação, possibilitando criar/inventar e, assim, desfrutarmos o direito da AUTORIA.
Após a declamação de um poema, ou da contação de uma história, enfatizamos para as crianças os elementos fundamentais que autores se fazem valer, tais como a surpresa no desfecho da história, ou uso criativo de imagens, etc.
Os poemas tornam-se mais atraentes se declamados em voz alta, se repetidos, memorizados, lidos para os outros. Prestando atenção, é claro, ao ritmo e à musicalidade.
Resta-nos agradecer neste blog o apoio do colega e amigo Ezequiel Paula dos Santos, pelos contatos, pela articulação das oficinas junto às escolas, enfim, pelo seu engajamento em questões ligadas à cultura e ao conhecimento.
Da mesma maneira, às direções das escolas, coordenações e ao grupo de profes que estiveram ligadas direta ou indiretamente à motivação dos alunos, para que estes se aproximem cada vez mais dos livros e da leitura.
Já estamos com saudades dos amigos (profes e alunos) que fizemos em Panambi. Basta um aceno, e voltaremos correndo para lá.
domingo, 6 de junho de 2010
ENCONTRO COM BANDEIRA - Affonso Romano de Sant'Anna
NÃO VAMOS ATROPELAR O BOM GOSTO
Texto literário é aquele que sobrevive ao passar do tempo. Não é descartável dias depois, é, no mínimo, reutilizável. Pode/deve ser reescrito, lapidado, como o artista faz com sua obra.
O que acontece, cada vez mais, principalmente com o velocidade da internet, é o apelo para espalhar pelo mundo nossa "obra". Mas aí estamos enredados mais ao narcisismo e à vontade de "aparecer", do que à necessidade de fazer balançar a sociedade com nossa literatura.
Com essa pressa e presos ao desejo de que olhem para nós, "vejam como tenho idéias brilhantes", ficamos atolados à superfície, e pouco tocamos/alcançamos os conceitos e imagens, que tornam possível pensar e sentir a beleza.
Antes de semearmos nossa "obra" no mundo, deveríamos dar-lhe um tempo para germinar, acostumar-se com as condições ambientais, para que de fato seja fértil. Aguardar alguns dias para então relê-la e perguntar: vai para o lixo? É descartável? Reutilizável? Como pode ser melhorada?
O pior é que a maioria de nós, escritores de província, está convencido de que escreve bem. Claro, nossos familiares e amigos, mesmo tendo ressalvas e algum conhecimento da coisa, quase sempre vão nos elogiar.
Acima de tudo, não quero que meu texto suscite, ou o amor, ou o ódio, mas que possibilite, minimamente, uma abertura para a reflexão.
Genial, entre outras coisas da crônica abaixo, é a afirmação de Sant'Anna de que "aos 17 anos (...) não entendia por que Bandeira ou Drummond levavam cinco anos para publicar um livrinho com quarenta e tantos poeminhas."
Vejam como a pressa caminha na direção contrária da "boa" poesia/literatura.
Eu tinha uns 17 anos. E Manuel Bandeira era, então, considerado o maior poeta do país. E com 17 anos é não só desculpável, mas aconselhável que as pessoas façam a catarse de seus sentimentos em forma de versos. Os reincidentes, é claro, continuam vida afora e podem pelos versos chegar à poesia.
Morando numa cidade do interior, eu olhava o Rio de Janeiro onde resplandecia a glória literária de alguns mitos daquela época. Então fiz como muito adolescente faz: juntei os meus versos, saí com eles debaixo do braço fui mostrá-los a Bandeira e Drummond.
Toda vez que, hoje em dia, algum poeta iniciante me procura, me lembro do que se passou comigo em relação a Manuel Bandeira. Para alguns tenho narrado o fato como algo, talvez, pedagógico. Se todo autor quer ver sua obra lida e divulgada, o jovem tem uma ansiedade específica. Ele não dispõe de editoras, e, ainda ninguém, precisa do aval do outro para se entender. E espera que o outro lhe abra o caminho e reconheça seu talento.
Ser jovem é muito dificultoso.
O fato foi que meu irmão Carlos, no Rio, conseguiu um encontro nosso com Bandeira. E um dia desembarco nesta cidade pela primeira vez vendo o mar, pela primeira vez cara a cara com os poetões da época.
Encurtarei a estória. De repente, estou subindo num elevador ali na Av. Beira-Mar, onde morava Bandeira. Eu havia trazido um livro com centenas de poemas, que um amigo encadernou. Naquela época escrevia muito, trezentos e tantos poemas por ano. E não entendia por que Bandeira ou Drumond levavam cinco anos para publicar um livrinho com quarenta e tantos poeminhas. A necessidade de escrever era tal, que dormia com papel e lápis ao lado da cama ou, às vezes, com a própria máquina de escrever. Assim, quando a poesia baixava nos lençóis adolescentes, bastava pôr os braços para fora e registrar. E assim podia dormir aliviado.
Mas o poeta havia pedido aos intermediários que eu fizesse uma seleção dos textos. O que era justo. E Bandeira tinha sempre uma exigência: o estreante deveria trazer algum poema com rima e métrica, um soneto, por exemplo. Era uma maneira de ver se o candidato havia feito opção pelo verso livre por incompetência ou por conhecimento de causa.
Abriu-se a porta do apartamento. Eu nunca tinha estado em apartamento de escritor. A rigor não posso nem garantir se havia visto algum escritor de verdade assim tão perto. E não estava em condições emocionais de reparar em nada. Fingia uma tensa naturalidade mineira. O irmão mais velho ali ao lado para garantir.
A conversa foi curta. Tudo não deve ter passado de dez a quinze minutos. Lembro que Bandeira estava preparando um café ou chá e nos ofereceu. Havia uma outra pessoa, um vulto cinza por ali, com o qual conversava quando chegamos. Bandeira se levantava de vez em quando para pegar uma coisa ou outra. E tossia. Tossia talvez já profissionalmente, como tuberculoso convicto.
Lá pelas tantas, ele disse: pode deixar aí os seus versos. Não precisa deixar todos, escolha os melhores. Vou ler. Se não forem bons, eu digo, hein?!
– Claro, é isso que eu quero – respondi juvenilmente, certo de que ele ia acabar gostando.
Voltei para Juiz de Fora. Acho que não esperava que o poeta respondesse.Um dia chega uma carta. Envelope fino, papel de seda, umas dez linhas. Começava assim: “Achei muito ruins os teus versos”. A seguir citava uns três poemas melhores e os versos finais do “Poema aos poemas que ainda não foram escritos”. Oh! Gratificação! ele copiara com sua letra aqueles versos: “saber que os poemas que ainda não foram escritos/ virão como o parente longínquo,/como a noite/ e como a morte”.
Não fiquei triste ou chocado com sua crítica sincera. Olhei as bananeiras do quintal vizinho com um certo suspiro esperançoso. Levantei-me, saí andando pela casa, com um ar de parvo feliz. Eu havia feito quatro versos que agradaram ao poeta grande.
A poesia, então, era possível.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Porta de colégio e outras crônicas. 3 ed. São Paulo: Ática, 2000.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
RECEITA contra dor de amor - Roseana Murray
arte de Miró
com todos os seus barcos a vela
chore o céu e suas estrelas
os seus mistérios o seu silêncio
chore um equilibrista caminhado
sobre a face de um poema
chore o sol e a lua
a chuva e o vento
para que uma nova semente
entre pela janela adentro
do livro Receitas de olhar.
terça-feira, 1 de junho de 2010
EXPERIÊNCIA - Luis Fernando Veríssimo
Nesta história nos deparamos com a intertextualidade. Todos assistimos ao filme Dr. Frankstein, em suas diferentes versões. Nos filmes há uma dose de terror e a necessidade de reflexões filosóficas, tais como: quem tem o direito de gerar a vida? Quais os limites ético-morais para a ação do homem?
Veríssimo retoma o tema do filme, que é a "criação" de um ser em laboratório, um "monstro", feito pelo próprio homem. Mas o andamento da história, e as consequências de tais façanhas, tomam um rumo diferente ao dos filmes. Ah, e os personagens da história (bem-humorada) do Veríssimo são três simpáticos loucos, mais engraçados até do que a criatura por eles criada.
Antes do contar a história para os alunos na escola, não havia me dado conta da relação com Frankstein. Os alunos de quinta série do Ensino Fundamental me chamaram a atenção para isso.
Em vez de um, são três os cientistas loucos. Mesmo trabalhando em conjunto durante anos, os três têm dificuldades em terminar sua obra: um homem criado no laboratório, com os restos de outros homens. Resta-lhes pouco tempo. Os camponeses estão subindo na direção do castelo, com seus archotes, para linchá-los.
Uma descarga elétrica percorre o corpo da Criatura estendida sobre a mesa. É a centésima descarga que ele recebe. Mas desta vez a criatura desperta. Abre os olhos. Estica os braços. Estica as pernas.
- Ela vive! - Exclama o primeiro cientista louco.
- deu certo! - Grita o segundo.
- Levanta-te e anda! - Ordena o terceiro.
Lentamente, a criatura começa a se erguer. Senta na mesa. Olha para os seus criadores. Um olho é castanho e o outro é azul. Tudo bem, não se pode pensar em tudo. O importante é que a Criatura está viva. Finalmente, a Criatura está viva e funciona!
A Criatura desce da mesa, dá um passo. Cai. É cercada pelos três cientistas. O que houve?
- Já vi tudo - diz o primeiro cientista, o mais gordo. - Ela tem duas pernas esquerdas. Quem era o encarregado das pernas?
- Eu - confessa o segundo cientista, o de bigode. - Errei, pronto. Mas os braços também estão errados e braço não era comigo.
- Peguei dois braços direitos de propósito - defende-se o terceiro cientista, o de óculos grossos. - Assim ela seria ambidestra e...
- Está bem, está bem. Não podemos perder tempo. Vamos substituir uma perna por um braço, e vice-versa.
- Mas aí ela fica renga.
- Na hora de bater palmas, vai cair no chão.
- No futebol, quando dominar com a direita, vai ser mão.
- Vocês deviam ter pensado nisso antes! Me ajudem a botá-la de novo na mesa. Rápido, que os camponeses já estão na porta.
A criatura é recolocada sobre a mesa. Começa a operação.
- Bisturi.
- Está aqui.
- Ai! Olha aí, me cortou...
- Desculpe.
- Pinça.
- Eu estou pensando. É que...
- "Pensa" não, Pinça!
Os reimplantes são completados. A Criatura, mesmo renga, pode andar. Mas agora a sua cabeça, inexplicavelmente, está ao contrário.
Os camponeses já estão dentro do castelo. Forçam a porta do laboratório.
- Temos que recorrer a toda a nossa engenhosidade, saber e talento - diz o cientista mais gordo.
- Para fazer a criatura funcionar?
- Não. Para dar uma explicação aos camponeses. Afinal, há anos que eles se sacrificam pelas nossas experiências. Nos deram suas economias e seus órgãos. E só o que temos para lhes mostrar é este monstro.
Os camponeses invadem o laboratório e avançam sobre os três cientistas loucos. O mais gordo os detém com um sorriso, no entanto.
- Parem! Nós não somos os culpados.
- Então quem é?
- Bem. Em 1973 teve a crise do petróleo e...
*
Na carruagem, a quilômetros do castelo, o segundo cientista louco pergunta para o primeiro:
- O que é que a crise do petróleo teve a ver com o fracasso da nossa Criatura?
- Nada. Mas, até eles se darem conta, estaremos na fronteira.
Veríssimo retoma o tema do filme, que é a "criação" de um ser em laboratório, um "monstro", feito pelo próprio homem. Mas o andamento da história, e as consequências de tais façanhas, tomam um rumo diferente ao dos filmes. Ah, e os personagens da história (bem-humorada) do Veríssimo são três simpáticos loucos, mais engraçados até do que a criatura por eles criada.
Antes do contar a história para os alunos na escola, não havia me dado conta da relação com Frankstein. Os alunos de quinta série do Ensino Fundamental me chamaram a atenção para isso.
Em vez de um, são três os cientistas loucos. Mesmo trabalhando em conjunto durante anos, os três têm dificuldades em terminar sua obra: um homem criado no laboratório, com os restos de outros homens. Resta-lhes pouco tempo. Os camponeses estão subindo na direção do castelo, com seus archotes, para linchá-los.
Uma descarga elétrica percorre o corpo da Criatura estendida sobre a mesa. É a centésima descarga que ele recebe. Mas desta vez a criatura desperta. Abre os olhos. Estica os braços. Estica as pernas.
- Ela vive! - Exclama o primeiro cientista louco.
- deu certo! - Grita o segundo.
- Levanta-te e anda! - Ordena o terceiro.
Lentamente, a criatura começa a se erguer. Senta na mesa. Olha para os seus criadores. Um olho é castanho e o outro é azul. Tudo bem, não se pode pensar em tudo. O importante é que a Criatura está viva. Finalmente, a Criatura está viva e funciona!
A Criatura desce da mesa, dá um passo. Cai. É cercada pelos três cientistas. O que houve?
- Já vi tudo - diz o primeiro cientista, o mais gordo. - Ela tem duas pernas esquerdas. Quem era o encarregado das pernas?
- Eu - confessa o segundo cientista, o de bigode. - Errei, pronto. Mas os braços também estão errados e braço não era comigo.
- Peguei dois braços direitos de propósito - defende-se o terceiro cientista, o de óculos grossos. - Assim ela seria ambidestra e...
- Está bem, está bem. Não podemos perder tempo. Vamos substituir uma perna por um braço, e vice-versa.
- Mas aí ela fica renga.
- Na hora de bater palmas, vai cair no chão.
- No futebol, quando dominar com a direita, vai ser mão.
- Vocês deviam ter pensado nisso antes! Me ajudem a botá-la de novo na mesa. Rápido, que os camponeses já estão na porta.
A criatura é recolocada sobre a mesa. Começa a operação.
- Bisturi.
- Está aqui.
- Ai! Olha aí, me cortou...
- Desculpe.
- Pinça.
- Eu estou pensando. É que...
- "Pensa" não, Pinça!
Os reimplantes são completados. A Criatura, mesmo renga, pode andar. Mas agora a sua cabeça, inexplicavelmente, está ao contrário.
Os camponeses já estão dentro do castelo. Forçam a porta do laboratório.
- Temos que recorrer a toda a nossa engenhosidade, saber e talento - diz o cientista mais gordo.
- Para fazer a criatura funcionar?
- Não. Para dar uma explicação aos camponeses. Afinal, há anos que eles se sacrificam pelas nossas experiências. Nos deram suas economias e seus órgãos. E só o que temos para lhes mostrar é este monstro.
Os camponeses invadem o laboratório e avançam sobre os três cientistas loucos. O mais gordo os detém com um sorriso, no entanto.
- Parem! Nós não somos os culpados.
- Então quem é?
- Bem. Em 1973 teve a crise do petróleo e...
*
Na carruagem, a quilômetros do castelo, o segundo cientista louco pergunta para o primeiro:
- O que é que a crise do petróleo teve a ver com o fracasso da nossa Criatura?
- Nada. Mas, até eles se darem conta, estaremos na fronteira.
domingo, 30 de maio de 2010
TOMBO - Maria Dinorah
A rua ri
de meu tombo.
Henrique
ri que se rola.
João se rola de rir.
levanto
meio sem jeito
e rio
riso sem graça,
enquanto
de tanto riso
se sacode toda a praça!
de meu tombo.
Henrique
ri que se rola.
João se rola de rir.
levanto
meio sem jeito
e rio
riso sem graça,
enquanto
de tanto riso
se sacode toda a praça!
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Ele já estava lá
As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...
-
Nada a ver, menino! Baratas, sobreviventes neste planeta há 6 milhões de anos, passeiam pela sala cantarolando um samba do “Demô...
-
Garota, nossos destinos têm pernas bambas e percorrem umas trilhas nada paralelas. Veja bem, você não leu Schopenhauer nem Han...