sábado, 20 de julho de 2019

Meus porres e filmes roncando no sofá às três da manhã



De novo esqueci de levar o Dicão pra passear, o pobre anda com o intestino preso, mesmo se fartando com aquela ração importada. Ontem escolhi um filme louco, a minha cara, bebi todo o estoque e dormi pesado no sofá. Filmes de sexo e violência, como os de Tarantino, estão no meu ritmo, uns seres fracassados, decadentes, irmãos de lutas e tombos mas não desesperamos.
Em condições normais de sede e de culpas, não me interesso por filmes. Mas na bebedeira, corro pro Youtube e aí é a repetição do mesmo, volto aos velhos enredos. Em horas normais ouço música clássica e (ainda) não vi a Namo de cara feia, criticando meu gosto musical, tipo "nossa, como você suporta essas músicas horríveis?". Se um dia isso acontecer creio que a relação já era.
Se Namo insinua uma crítica a respeito dos excessos da noite passada, desconverso. "Você reparou na quantidade de buracos pelas ruas da cidade? E as rótulas, meu Deus, a gente nunca sabe qual o comportamento dos motoristas!".
Merda, esqueci de trocar o óleo do carro e pedir pro mecânico averiguar as pastilhas de freio. A suada mesada corre perigo. 
Namo quer ser vegana. Encontrem-me nas gôndolas do supermercado, me esgueirando por entre senhoras bem informadas por nutricionistas, à procura de brotos e grãos e cereais e nozes e frutas secas. Está fissurada pelas proteínas vegetais, quer se afastar das malditas carnes que entopem artérias e abrem as portas para o câncer.
Deus do céu, como é difícil garantir a vida a dois e o ócio indispensável à criação, a chopeira transbordando e não perder de vista o jogo do bicho e de sinuca e a proximidade de alguns amigos ordinários. Como o trânsito nas rodovias, eu preciso de áreas de escape, senão o sapato fica três números a menos no meu pé. 
E esses malditos copos sujos. De nada vale a ótima cerveja se os copos estão sujos. E Namo não quer estragar as unhas postiças, e quando lavo a louça irrompe uma guerra na pia, é enorme o risco de algum prato ou copo espatifar.
Meus livros manchados de cerveja e de vinho, os marcadores de página são recibos de jogos feitos ou bilhetes rasurados com números que sonhei e que pretendo apostar. Eis a síntese da minha odisseia, ou falta de sorte, que seja. Jesus, parece impossível alcançar a sonhada emancipação financeira sem fazer parte do mercado de trabalho.
Para que a dialética do casamento funcione alguém deve ser ludibriado de vez em quando. Deixo espalhadas sobre a mesa anotações dentro de livros e dezenas de folhas rasuradas, que chamo de inspirações para poemas e histórias. Proibi Namo de botar as mãos nessas preciosidades, para não invadir a privacidade nem espantar a diva criação.
Enquanto assisto o jogo de futebol pela TV e remoo essas coisas, Namo faz seu tricô e me observa serenamente, com olhos afetuosos. Do nada, um pensamento me invade e entristece, coisas de quem anda se informando sobre as sandices do mundo: muitas tartarugas que se alimentam do plástico espalhado pelos oceanos e então elas morrem antes de completarem cinquenta anos.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Outra cama - Bukowski


outra cama
outra mulher
mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha
outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.
todos à procura.
a busca eterna.
você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…
após ela sair você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.
quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.
você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é meio-dia.
— outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.
você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.
você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.
(Tradução: Pedro Gonzaga)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Esse é o teu momento



Cada vez mais você se convence de que essas conversas nas paradas de ônibus, nas lancherias, nos bancos de praça e de consultórios e de escritórios, você acredita que elas farão pouca diferença para os rumos do mundo. Também as notícias que sugamos das redes sociais e outras coisas mais que estonteiam nossa alma e ouvidos, no máximo contribuirão para nosso estresse e excessos na comida e bebida e então tome-lhe intestino preso ou flatulência ou enxaqueca.
Gurus, seja de que área for, vomitam suas teses aleatórias, que insistem que são verdade, e o fazem para angariar mais seguidores e engordar sua conta bancária.
O AGORA não passa de um momento qualquer no interior de um caldeirão fervente e borbulhante, com vários ingredientes em conflito, às vezes em fogo alto, às vezes em fogo baixo. Mas você vive ESSE momento. Aproveite-o, então.
Sim, você pode saltar da ponte e rodopiar e ser recolhido num saco com os ossos quebrados, e ser transportado até a perícia, numa frieza e objetividade, como se fosse um saco de adubo para plantas, depois aguardar no necrotério, devidamente numerado e com atestado de óbito para então ser despachado pro cemitério e logo ser esquecido.
A fervura continua, indiferente.
Você pode ir à Marte, armar a barraca, cultivar abobrinhas, e nada mudará, serão apenas notícias passageiras. Porém, esse é o TEU momento. Aproveite.
Não vale à pena sofrer se não chamares atenção. Há tantos egos que se posicionam como se fossem o centro, porém logo tudo vira página de jornal que vai acender o fogo da lareira ou receber o cocô de cães e gatos da família.
Vivamos esse aleatório, embora seja um instante no interior de um processo que se desdobra há bilhões de anos.
Apesar de tudo, esse é o TEU momento. Então, aproveite. Faça algo que dê prazer, como era o BRINCAR, na infância.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 9 de julho de 2019

Se não existissem as mulheres, o dinheiro serviria pra quê?



Dia desses bebia uma cerveja redondinha, acompanhado pelo Beiço, e eis que um conhecido estacionou ali por perto seu carrão importado. Fez de conta que não nos viu. Fingimos que não o vimos.
O cara sempre foi competente em fazer carreira no magistério e sindicatos. Pessoa bem comportada, bom pai e amigo, figura esclarecida, na concepção dos filósofos modernos.
Acima de tudo, um "socialista dinheirista", expressão que o Beiço sempre repete.
- Cadelão, os caras juntam a maior quantidade possível de grana, e muitos acabam gastando com filhos paranóicos ou drogados, que foram criados debaixo de suas asas. Não consigo compreender essa obsessão por acumular, imagine o tempo dedicado a isso.
- Quem sabe esteja certo. Pra ele, é melhor investir em imóveis do que em lazer, arte, literatura e outros prazeres.
- Que nada, está faltando alma, meu amigo, o declínio do planeta está acelerado.
- Eu gostaria de ter grana, só pelo prazer em gastar. Se fosse rico, se estivesse rodeado de luxo, pegaria as putas mais lindas da parada e escreveria porra nenhuma.
- Hehehe... Você desocupado e duro já anda escrevendo nada.
O cretino ergueu o copo, num brinde.
- Aos dinheiristas!
- Diz aí, meu brother, se não existissem as mulheres, dinheiro serviria pra quê?
- Sabe o que eu ouvi de uma garota esses dias? "Nunca tive dinheiro, até que baixei as calcinhas".
- Hehehe... Lembrei de uma frase da atriz Mae West: "Um centavo economizado é uma garota perdida".
- Dinheiro, dinheiro... E tempos difíceis. Confesso que estou com medo, tenho me preocupado com meus irmãos de passagem por esse planetinha.
- Fala sério, Cadelão.
- Até pensei ser voluntário num projeto que apoie os velhinhos aposentados nos abrigos. Ou contar histórias num hospital de câncer infantil.
- Puta que pariu. Toma um porre que amanhã você não se lembra dessa loucura.
- Você tem razão. Meus planos para o futuro não duram uma semana.
- Hehehe... Que eu saiba, persistência você teve foi nunca.
- Mas amanhã poderá nascer um cara novo.
- Jesus, desconfio que você está lendo auto-ajuda! Volta, maluco, seja o que tu és!
- Atitude, meu caro, um dia eu mudo de atitude.
- To sabendo.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Carta para Boccaccio



Estou inquieto e solitário, parecendo as roupas expostas como Cristo na cruz, nos cestões das lojas quase vazias. Os olhos vermelhos imploram atenção enquanto o povo passa, indiferente a tudo. Esse sentimento é momentâneo, outras imagens e cenas tomam seu lugar. Comi a magrela que tem uma loja de lingeries e perfumes importados ali, na outra esquina. Duas décadas atrás eu era um jovenzinho disputado pelas garotas. Xotas havia até demais. Eu esnobava. Hoje a empresária finge, ou nem sabe que eu existo.
Tudo é parte do processo.
Meu amigo, sei que o entedio com esses comentários, devia apenas descrever os fatos do jeito como prometi.Tomara que a decadência não me tenha como alvo, ela e sua pressa.
Vida que segue. Logo que cheguei no bar e sugava a primeira metade de uma long neck tentando esquecer a garota da loja de perfumes e a ressaca crônica, apareceu uma madame com seu cachorrinho no colo, com cara de guaxinim, um Spitz Alemão anão. O pet latiu, madame xingou e, impressionante, suas vozes eram semelhantes. Tudo se encaixava.
Coisas estranhas. Velhos resmungando no espaço vazio do bar. Deve ser o mesmo papo que repetem pros médicos nos consultórios e pras enfermeiras e cuidadoras e caixas de supermercado e atendentes de farmácias. Sim, século XXI, longevidade é o que se vê. Caixas e caixas de remédio + qualidade de vida, principalmente nos bairros de classe média e alta da cidade. Preciso espiar o que rola nas periferias. Creio que serão outras as descrições.
Às vezes me culpo por parecer preconceituoso com os velhos. Não sei por que me deixam ansioso. Só pode ser o desperdício de tempo viverem quase cem anos.
Temos todo tipo de velhos: os mansos, os agressivos, os saudosistas, os desmemoriados. Contam as horas para que chegue a noite e finalmente dormir. Amanhã tudo se repete. Tédio. Em sua maioria, parecem autômatos. Se chegar vivo a uma certa idade, vou dar um jeito pra que alguém me faça uma eutanásia, sem culpas a esse camarada, é claro.
Aqui no bar, observo a tia que brinca com o bebê de um casal de jovens, seus amigos.
- Quem vai fazer um aninho? Quem? Quem? Parabéns a você!...
Ninguém liga pra ela, deve ter bebido meia dúzia de garrafas. Ainda é jovem, mas a necessidade de repetir aqueles papos que todos estão por aqui a tornam uma velha chata. Já disse, sou preconceituoso.
Lembranças aleatórias. Minha última foda consumou-se rápida, rápida, não durou mais de três minutos e decepcionou as estatísticas, passou longe de trezentas estocadas e o meu coração saiu pela boca. Era como uma canção adolescente que não suporto ouvir agora. Melosa demais, entorpecedora de rebanhos, como diria Nietzsche. Pena você não ter vivido na época Dele. O cara saiu-se bem demais.
Merda. Já me desgarrei do rebanho? Talvez. Sou agora uma ovelha bebum e mal-humorada.
Outro cara que admiro é o Beethoven. Viver depois dele, desfrutar da Quinta Sinfonia em Dó Menor, é estar no lucro. Sua criação é potente, como uma pimenta que encontrei dia desses no supermercado. Chama-se Naga Morich, a pimenta.
Pra finalizar, estou relendo anotações que fiz por aí, nos bares. Leio e, pra maioria delas, faço um X com caneta tinta vermelha e escrevo HORRÍVEL. Foi o jeito que criei pra ter mais disciplina e reacender o amor próprio.
Inté.

(B. B. Palermo)

Foi o que deu pra fazer

  Dei o livro pra uma amiga que estava de níver, nos seu 90 anos bem vividos, e o Lutero, o cara do pub, exclamou, depois que leu a ...