Germaine era puta. Não
esperava o homem se aproximar dela: ia e o agarrava. Lembro bem dos furos nas
meias dela, dos sapatos tortos e gastos; lembro também que ficava no bar com
uma determinação corajosa e cega, engolia uma bebida forte e saía de novo para
a rua. Uma puta! Talvez não fosse tão agradável sentir aquele hálito de bebida,
aquele hálito formado por café fraco, cognac, apéritifs, pernods e todas as
outras coisas que ela engolia nos intervalos, tanto para aquecer-se quanto para
juntar força e coragem; mas o fogo da bebida entrava nela, ardia entre as
pernas onde as mulheres deviam arder e formava-se aquele circuito que faz com
que se volte a sentir a terra sob os pés. Quando ela se deitava com as pernas
abertas e gemendo, mesmo que gemesse daquele jeito para todo e qualquer
freguês, era bom, era uma demonstração adequada de sentimento. Não ficava
olhando para o teto com olhar vazio ou contando os percevejos no papel de
parede, ficava atenta à sua tarefa, falava nas coisas que o homem quer ouvir
quando está trepando com uma mulher. Ao passo que Claude, bom, com Claude tinha
sempre uma certa delicadeza, mesmo quando ela entrava debaixo dos lençóis com
você. E a delicadeza dela agredia. Quem vai querer uma puta delicada! Claude
chegava a pedir para você olhar para o outro lado quando se sentava no bidê.
Tudo errado! Quando o homem está queimando de paixão, quer ver coisas, quer ver
tudo, até mesmo como elas mijam. E, embora seja muito bom saber que a mulher
pensa, a última coisa que se quer na cama é literatura vinda do cadáver frio de
uma puta. Germaine estava certa: era ignorante e robusta, punha o coração e a
alma no ofício. Era uma puta dos pés à cabeça, e essa era a sua virtude!
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
sábado, 12 de outubro de 2019
Não fala difícil, seu dependente
- Oi! Tu tá limpo?
- Sim. Tomei banho
ontem...
- Eu quis dizer...
espiritualmente.
- Hum... Um pouco de
céu, um pouco de inferno. Me conheço tão pouco... Acho que cada vez mais me
desconheço.
- Que viagem, Cabezón,
que viagem...
- Bah, tu nem imagina.
To lendo menos o kardec e mais a putaria do Henry Miller... Aquele cara que o
Bukowski tanto gosta.
- Puta que pariu! Sai
fora. Pra mim deu. Já li putaria e já fui num centro espírita. Tu é uma praga
muito estranha. Gosta tanto desses caras que acho que até sabe o horário das
punhetas deles.
- Bem que eu podia ter
reencarnado esses caras hehehe. Bah, já pensou eu vivendo as histórias que Eles
escreveram? Bah, já pensou eu ter sido um personagem Deles?
- Caralho! não
delira... Que tal tu ser tu mesmo?
- Tu não gostaria de
ser tanta coisa na vida?
- Hoje eu só queria ser
uma cama.
- Hum...
- Tu não pensa em nada
quando falo em cama?
- Trepar... roncar...
Ter pesadelos...
- Meu Deus! Falo em
amar, sonhar.
- Sabe, esses dias eu
sonhei com você. Espíritos, creio que maus, invadiram meu sonho e te raptaram.
Acordei muito estressado, e fiquei horas tentando decifrar essa mensagem. Claro
que isso é fruto de meu sentimento de culpa, por não ter te escutado. Viajar
menos nessas leituras e manter os pés no chão.
O imbecil só falava nas
putarias que leu do tal do Henry Miller, mas na hora de praticar o sexo (ou
fazer amor, como queiram) sua cabeça fazia o guindaste despencar. Foi essa broxisse
que desencadeou a breve separação de sua namo.
Laha estava acostumada
com um sexo inesquecível, orgasmos divinos, que Ela só alcançava com o Cabeça.
Não sei descrever em detalhes a posição, só sei que Ela escalava seu namo,
apoiava as mãos nas cochas dele e encaixava... Ele ficava imóvel, pensamento na
ereção, segurando os peitos dela, deliciando-se com seus gemidos cada vez mais
loucos. Ela aumentava a velocidade da cavalgada e tremia e tremia, como se
tivesse mergulhado num ritual.
Laha não estava
preparada para as oscilações do Cabeça. Aos poucos o maluco passou a sintonizar
outra vibe, mais alma e menos materia, até porque as coisas materiais impediam
seu aperfeiçoamento - dizia.
Um giro de 180 graus. Mentalizava
e pedia aos guias espirituais uma vida simples, de sóbrios desejos materiais e,
consequentemente, muita vadiagem e pouco estresse. Ansiava por correntes
marítimas de energia vital criativa.
Quando tinha certeza de
que havia transcendido essas necessidades mundanas, um acontecimento qualquer
fazia tudo despencar. A coisa desandou depois que a namo se mudou pro
apartamento de uma amiga. Com a separação, Cabezón emigrou diariamente pra
botecos e puteiros. Dava livros de poesia pras garotas. Mas era fiel ao bar do
Maneta.
No bar do Maneta,
sugando pau a pau com Ele alguns litrões de cerveja, olhava com o trinco do olho
aquelas motos poderosas, estacionadas a poucos metros das mesas de sinuca, e sentia-se
reduzido a uma cloaca.
Então engatinhava umas
conversas que faziam o Maneta devorar um cigarro atrás do outro.
- Meu, qual a diferença
entre a velocidade da luz e a velocidade do pensamento?
Deitava conhecimento
pra cima do amigo.
- Tu sabe, Maneta, que
pra física do Einstein nada pode ir mais rápido que a velocidade da luz? Já pro
kardec, um espírito desloca-se de um planeta pro outro na velocidade do
pensamento... Uau! Tu percebeu como isso é massa, meu amigo?
Nessas horas o Maneta
aumentava a velocidade do levantamento de copo de cerveja, tragava o cigarro e
resmungava:
- Para de falar
difícil, seu dependente!
Nos lugares mais
silenciosos e sutis de sua mente, muitas vezes, de uma hora pra outra
tramavam-se planos de como convencer Deus para que mostrasse num sonho os
números do próximo sorteio da Megassena. Nesses recônditos mais arraigados da
consciência do Cabezón habita um prisioneiro dos impulsos para consumir o luxo,
aderir à avareza e também se exibir nuns carrões e roupas de grife, pra
despertar a inveja e o ciúme nessa gentalha.
- Tenho que preparar
minha consciência, longos dias concentrado, meditativo, conectado com a luz. A
abstinência valerá a pena, a espera será recompensada no final.
Meus camaradinhas,
quando Laha disse que "queria ser uma cama", claro que Ela não
pensava APENAS em sexo, Ela se liga nas coisas, mantendo os pés no chão, na
realidade com sua simplicidade e magia.
Ah, tá. Vocês querem
saber detalhes de como os dois se viraram nesse período de separação... Teu cu
que os dois passaram chorando e lambendo as feridas abertas por suas culpas. Ah,
tá, seus ingênuos, achando que somos inocentes e que nos preservamos enquanto
esperamos aquele grande amor...
Laha impôs algumas
condições pra aceitar de volta o seu Cabeça. Uma delas era a de arranjar um
emprego. Ela sabia que um serzinho no ócio é um perigo pra manutenção da ordem
social. Por isso estamos de volta ao diálogo do início desta história e à
pergunta inevitável que a namo fez:
- Como foi a entrevista
de emprego, naquela cafeteria?
- Não rolou. Sugeriram
que eu tosasse meu rabo de cavalo.
- Meu Deus do céu!
"Eita primavera inesquecível, igualzinha aos meus orgasmos com você".
Pensou dizer-lhe isso... Mas o orgulho não deixou.
(B. B. Palermo)
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
Ao sentar no vaso, fez-se a luz
Foi uma alucinada no
banheiro que trouxe a luz. Os traços geométricos dos azulejos são ridículos. Os
tapetes também. Distraído, ouvia a narração da partida de futebol na TV da sala
e meus olhos se encheram de areia ao ouvir o esforço que o narrador e
comentaristas faziam pra animar uma quimera de jogo. Teu cu! - pensei - dane-se
a obrigação de manter elevado o ibope dessas merdas de programas de televisão.
As coisas rolavam nessa
pegada no domingo à tardinha. Saquei, com vontade de dar voadoras nas portas das
casas do condomínio, que as coisas funcionam dentro de certa lógica. Sempre a
lógica que põe na cabeça da galerinha o que é normal. Nos noticiários, quando
abordam a cultura popular, tipo Festa de São João, os filhos da puta apenas
enfatizam o incremento na economia, hotéis, gastronomia. Estatísticas e
números. Teu cu que isso é normal, teu cu que isso é apenas má-fé! Isso é falta
de pauta, meus amigos!
Vocês diriam, Pare de
usar em vão o nome de tão magnífico órgão, afinal toda a natureza necessita
dessa válvula de dispersão, inclusive árvores têm ânus e blá-blá-blá...
Concordo, pessoinhas,
*** são abordados e acariciados e endeusados e, muitas vezes, humilhados... e não
apenas pelos sentidos. Há o discurso de gênero, o político e o científico e
tals. Observem a importância acadêmica de refletirmos sobre o ** do imaginário,
o ** da fantasia, o ** do inconsciente. Beiço direciona seus olhos pálidos pra
outra coisa, já que diz que sou meio repetitivo: Cadelão, e o rabo da loirinha,
hem? É... aquela que fez a dancinha da garrafa e ficou horas sassaricando no
teu colo esses dias, naquele puteiro...
Pelo amor de Deus,
deixem o ** seguir seu fluxo, cumprir sua indispensável missão, seja em árvores
ou peixes ou insetos ou bichos ou humanos. Um poeta disse que pedras têm cu!
Quando li isso tive a sensação de que tudo já foi escrito, rabiscar em folhas em
branco agora é uma perda de tempo.
Sei, estou na periferia
dos grandes debates, que ditarão os rumos dessa grande merda. Não faço a mínima
ideia do que é mais importante, se a denúncia de estupro de um carinha famoso
ou a liberação de mais agrotóxicos. Ou se é o desabafo da garotinha descrevendo
no Facebook os detalhes dos conflitos com sua mãe, avó de sua cria, ou se é o
desaparecimento das abelhas. Ouço gritos de socorro nesses bueiros e aposentos
de casarões abandonados. Cada qual superdimensionando suas paranoias. Hora
ideal pra um médico entrar em cena e anunciar o temido câncer no ****. Então a
garotinha quer que o mundo todo saiba que, entre Ela e sua mãe, os canais
afetivos e de comunicação não funcionam? Teu rabo, minha filha!
Esses dias rolou uma
campanha pra juntar dinheiro pra um sujeito poder conhecer pessoalmente seu
grande amor, que garimpou nas redes sociais. Dinheiro pra passagem, dinheiro
pra hospedagem... Então eu devo doar meu dindim pra uma criatura que não
conheço poder viajar e conhecer seu grande amor? Ah, tá, grande coisa, teu cu
que eu faço isso!
(B. B. Palermo)
terça-feira, 8 de outubro de 2019
Somos especialistas em coisas e somos felizes
Eu queria te dizer,
muitas vezes eu te disse, como você me aguenta, eu queria te ver todos os dias,
com essa minha cara ingênua, de quem não tá nem aí pra foder, pra sentir teu
cheiro, pra ouvir tua voz e esperar pelo menos um abraço.
Você sabe que estou
mentindo, eu queria pular as preliminares, chover de vez no mundo essa porra
aprisionada, eu sei, estamos distantes, não falo do espaço, acho que é questão
de tempo, sei lá, ganho ou perdido, o tempo é uma senhora chamada morte que me
espera implacável em algum lugar. Meu tempo congelou ou derreteu, como os
neurônios. Dá medo essa história de só pensar em trepar, deitando tarde e
depois largar os tragos e tomar emprestado teus sonhos, aqueles mais ingênuos e
infantis.
Sempre aparecem as
encruzilhadas e que merda culpar-se pelas escolhas previsíveis, se pintores
escalam mansões e serventes de pedreiro despencam de andaimes e o cão da madame
está com câncer.
Suporto a ideia de você
abraçando e comendo outro e dormindo enroscada e enfim suporto a ideia de você
viver o sexo com outro. Aí me vingo comendo umas velhas devassas e suas xerecas
reluzentes e fedorentas e coloridas com os mesmos carimbos de carne de açougue.
Até quando trepo uma garota com raiva carinhosa fico um touro medieval e não
alcanço o orgasmo porque não é você.
Você vai rir se eu te
disser que escrevo essas coisas no bar ouvindo dois jovens trabalhadores inclinados
na mesa ao lado falando do absurdo que é o preço das peças de suas máquinas, do
esforço e do prazer que dá terem o carro rebaixado e pagar carnês e carnês das
coisas que investiram nessas ditas cujas. Puta merda, Eles sabem tudo de
mecânica e de ofertas no mercado virtual e eu enfio as unhas nas nádegas: meu
tempo deve estar dançando bêbado e sozinho num baile de terceira idade.
Você pode rir, mas eu
te digo, ando de saco cheio das coisas e dos áudios e vídeos que recebo pelo
WhatsApp de crianças com trinta e quarenta e cinquenta e quase sessenta anos,
aqueles seus delírios de 38 graus de febre.
Adeus papos filosóficos
e metafísicos e literários e científicos, que buscam desviar-se do cotidiano, eis
o tempo das coisas em dez suaves parcelas sem juros e acréscimo. Coisas nos
depósitos, em ordem e numeradas, nas vitrines, coisas que as pessoas vestem e
fotografam e compartilham, com seus piercings e tatuagens e cus sujos e cuecas
e calcinhas e bolsas de grife.
Morro de inveja do
entusiasmo com que falam das coisas. Queria ter esse entusiasmo pra desvendar o
que se passa nos porões desses serzinhos que raptam travecos lindos nas esquinas
opacas das madrugadas, seu medo da morte e desejo reprimido, isso pouco
importa pois em casa aguardam dúzias de soluções, meia estante de livros de
auto-ajuda. Foda-se, quando eu preciso me abster do álcool parto pra Água de
Melissa que contém doses generosas de álcool e uma bula alertando pro risco da
hepatite no fígado.
Juro que reservo doses
ridículas de energia só pra te desvendar, ou conhecer ou, vá lá, pra imaginar
outro serzinho pelado contigo enquanto bato minha punheta desesperada, graças a
Deus você se libertou do meu bafo e do meu ronco e do meu pessimismo e lirismo
careta.
Juro, quis encontrar
poesia na academia, entre uma selfie e uma sessão de exercícios pra fortalecer
braços e pernas e a mente conectada no pauzinho sofrido.
Tenho vontade de
perguntar a esses sujeitos: o que você sonha realmente fazer, como você viveu a
infância e suportou a adolescência, onde você se perdeu, onde você se encontrou.
E pare de falar dessa bosta, disso que você nunca soube descrever na sua
plenitude. Pare de delirar, enquanto coça o saco: "Meu, o que é a
felicidade?".
Jesus Cristo! Os
cretinos voltaram a falar de amortecedor
de barra de direção
de teto solar
de luz de Led
do tamanho do porta
malas
do ponto do opala
desregulado
do carburador e da
correia dentada
- a correia dentada,
meu Deus!
Os caras bebem cerveja
de qualidade e devoram chips e a marcha do mundo está fermentando. Todos os
mapas estão certos, nós é que estamos errados, estamos fascinados pela trilha
das coisas, o caminho do ouro.
Meu bem, todos estão
fingindo, a vida é um grande teatro, adeus separação entre palco e plateia,
atores chegam de todo canto, de todas as cores, nas ruas e lojas e bares e
farmácias
eu estou fingindo
você está fingindo
e assim vamos trotando
a vida
eu coloco coisas na tua
bebida
você coloca carro e
apartamento e profissão nos meus sonhos literários
e até na beira do
precipício pensamos que somos sinceros e completos.
Hoje acordamos tarde.
Zonzos e dopados e a noite é um presente que nos merecíamos.
Inclusive essa tua
visão acadêmica ingênua que às vezes trepa, e eu sei que vou dizer e você finge
que vai escutar, eu sei, isso me deixa mais broxa e preenchido de plenas
esperanças.
Cerveja ruim, papos
ruins, o que importa é que somos papagaios e macacos e especialistas em coisas
e temos paus nem sempre normais que nos frustram na hora do vamos ver e somos
especialistas em coisas e somos felizes.
(B. B. Palermo)
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Um quero-quero doméstico delirante
1.
Aguardava El Cabezón no
bar do posto Aurora. Ele prometeu contar suas aventuras e fiascos, avanços e
recuos, gestos heroicos e covardes. Já havia passado meia hora do horário
combinado e o infiel não apareceu. Suponho que a cratera deixada pelas drogas
em parte do seu cérebro levou-o a esquecer do compromisso.
Bebo pelos dois e a
tudo observo, mas nada surge na cabeça anuviada. O bloco de meia dúzia de
folhas continua em branco. Estou curioso pra conhecer as gírias e manias de um
maluco de periferia, traficante chinelo ainda vivo embora com quase trinta anos.
- To de boa, to no pedaço,
vim ao mundo para agitar - Garganteou, dias atrás.
Quero ouvir seus relatos
a respeito da vida afetiva. Mas Ele só enfatiza suas leituras. Está fissurado no
espiritismo. E convicto de que tem uma missão.
O fato de não colocar
isso em prática é o que me espanta.
Sua missão é o compromisso
que tem com os espíritos que o antecederam, vocês sabem, aquela cobrança ou dever
para que evolua, em vez de recuar ou ficar estacionado, quase na condição de um
bárbaro ou selvagem. E aí ocorre o de sempre: em vez de exercitar seu livre
arbítrio, Ele faz como muitos, inventa uma motivo qualquer e mergulha nos
prazeres mundanos.
Uma desculpa sempre se
encaixa pro fato de estar meio no limbo:
- Saco, o que vocês
queriam? Vejam só o cafundó que vocês me colocaram. Olhem o bando de imbecis e
dissimulados e inúteis que me cerca!
2.
- Mas que bobalhão! -
explode Laha, sua namorada.
É que garante que vai
mudar de vida. Claro, a partir de amanhã, que Ele não é dobradiça.
Quer colocar em prática
os ensinamentos dos livros de Allan Kardec.
Laha relativiza tanta
devoção:
- O espiritismo de
Kardec surgiu há mais de 150 anos. Muita coisa mudou. Tu não precisa ser um
fanático religioso. Tens que contextualizar e relativizar as verdades que tu lê
por aí - explica, didática.
Ela admite que Cabezón
não necessita se libertar de tantos vícios, a ponto de perder a identidade. Menos,
maluco, menos - Ela repete, diante das suas promessas enroladas.
- Tanta coisa acontecendo,
tu pode estudar a vida dos passarinhos, seus hábitos e segredos, por exemplo, eles
são reais, estão por toda parte.
O comentário de Laha
foi a deixa pro Cabezón se sair com uma tirada poética:
- Observo o oblíquo dos
teus olhos e não consigo desvendar se os segredos estão nos passarinhos ou nas
tuas maquiagens.
- Eu sinto mais alegria
com os passarinhos do que com certas pessoas.
- Tipo eu?
- Tu mais parece um
quero-quero doméstico delirante.
- Ah ta. Ainda largo os
vícios e viro um São Francisco de Assis. Tu sabia que Ele é o protetor dos
animais?
- Menos, Cabeça, menos.
Tu não tem paciência nem com o Chico.
- Não! Ao contrário.
Tanto é que, se a gente se separar, eu contrato um advogado e reivindico a
guarda compartilhada do vira-lata.
3.
A namo tem suas
fraquezas. Ciúmes, por exemplo. E também essa coisa misteriosa, própria de
muitas mulheres, a de achar que tem uma nobre missão, cuidar de um traste como
é o seu homem.
A discussão é por
bobagem, mas Ela dramatiza:
- Eu sei, tu tava num
antro.
Se as expectativas e
exigências que faz ao Cabezón são frustradas, Ela murmura:
- Volta pras cadelas.
Nessas horas sua
auto-estima despenca.
- Nos lugares que tu
frequenta, eu sei, qualquer uma é mais linda do que eu.
O orgulho entra em
campo. Passa-se um século antes de alguém dar o braço a torcer.
- Tem um oceano de
putas novas te dando em cima.
4.
Enquanto Ela afunda
cada vez mais na insegurança, Cabezón se esforça pra deixar para trás a realidade
cruel: o mal leva uma vantagem imensa sobre o bem. Ele se imagina um herói. Ou poderia
ser. Com Ele acontece algo semelhante ao que acontece com a maioria: buscam nos
filmes de super-heróis uma escapatória pra sua realidade fodida. Nesses filmes,
o bem vence o mal no final. É o que todos precisam pra tocarem uma vidinha de
insetos.
De suas leituras de
Kardec, Cabezón se sente no meio de uma turbulência, chacoalhando entre bons e
maus espíritos, e o fato de cair com facilidade em tentação deve-se ao
desequilíbrio da balança. Os espíritos de baixo calão estão sendo mais
competentes em persuadi-lo a fazer (tantas) merdas.
Cabezón até ficava 3
dias sem álcool, e sentia que o novo homem estava a caminho. Porém, segundo
Ele, isso desmoronava diante do cotidiano que Laha oferecia.
5.
Ufa! Até que enfim o
infiel apareceu no bar. E foi logo dizendo:
- As mulheres querem
que tu esteja ALI. Querem te proteger, te guardar numa caixinha. E é uma mensagem
atrás da outra, "onde tu tá? Com quem tu tá?".
Gosta de ficar em casa.
A grama pra cortar, as árvores pra cuidar. Ah, sim, e admirar suas tatuagens.
As duas últimas, uma no dorso da mão e outra no pé, foi Laha quem patrocinou.
Sempre por perto, Laha mandou
instalar uma TV de 40 polegadas no quarto. "Inocente", Ela só quer
vê-lo feliz. O pior, qualquer contrariedade boba, Ela diz:
- Sei, tu corre pra
aqueles antros onde têm umas oferecidas mais novinhas do que eu.
Depois de meia dúzia de
garrafas e com minhas folhas quase todas rabiscadas, Com olhos umedecidos, ele
murmurou:
- Cara, eu só queria
concentrar nas minhas leituras, mudar um pouco minha vida, aprender um pouco
mais sobre o outro plano.
Pensei dizer: "Esquece
o outro plano, bota os pés no chão e foca no aqui e agora, tenta desvendar quem
tu és". Mas fiquei calado. Quase chorei com aquela vontade doida de rir do
quero-quero doméstico delirante.
(B.
B. Palermo)
terça-feira, 24 de setembro de 2019
Sou feliz, Ela curtiu meu blues
Quando Ela viajou,
compartilhamos pelo WhatsApp novidades bem comportadas, sobre literatura e
música e poesia e essas "coisas" que tanta gente escreve e publica,
mais sujeitos fuçando no teclado do que sujeitos leitores. Não sei se Ela vestia
pijama ou apenas calcinha, peitos fartos posando para quadros baratos na parede,
ou se estava comendo pipoca ou mascando chiclete ou fodendo com algum carinha.
Nessa hora me impregnou
o verso de uma música: "Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro".
Me sentia mais ou menos, aquela sensação de impotência ou inutilidade, algo
como esbarrar, no supermercado, nuns carinhas de classe media, talvez funcionários
públicos, pesquisando, introspectivos, algo imprescindível para a mecânica
perfeita do universo: o preço do tomate e da cebola e do brócolis e do pimentão.
Sentia-me impotente e
com a sensação de tempo jogado fora, semelhante à cena de uns marmanjos cujos
para-choques dos carros beijaram-se de leve no sinal, e isso, puta merda,
desencadeou discussões pavorosas e dezenas de telefonemas à polícia e à seguradora.
Adoro trocar esse tempo perdido por umas punhetas deitado no sofá na hora da
sesta. Está bem, concordo com vocês, não tenho o direito de criticar a maneira
como as pessoas jogam fora o seu tempo, quando minha cabeça é refém dos vícios,
como as bebidas e sexo.
Basta notar a seriedade
Dela carregando uma dúzia de frascos de esmalte, da sala pra sacada e pro
banheiro, ou fazendo a limpeza dos pés, ou depilando as axilas ou virilhas, que
eu sinto o medo de sempre, como é difícil morar junto e conciliar diferentes paranoias.
O que eu mais carrego de um lado pro outro são os fardos de latões de cerveja.
Vocês diriam, Cadelão é
um egoísta, não suporta dividir o pão, a carne moída de segunda e às vezes de
primeira e a sobremesa, as contas de condomínio, o IPVA, os cartões de crédito
e o amor.
Ela fareja bem demais.
Encontra-me em qualquer um dos 50 bares dessa cidade careta. Vomita as queixas
previstas mas que ainda me emocionam e enchem de culpa. "Cadelão é um
poetinha de merda que não suporta viver em bando".
Sofro, porque eu lembro
emocionado os dias sem tempestades, quando Ela me aguarda de pijama e meias
surradas porém limpas cheirando a amaciante Lírios do campo e de pantufas, ou quando
passeamos no Monza e Ela veste o mesmo pijama e casaco por cima porque o
inverno é um teimoso e, olha como posso ser feliz, Ela até disse que curte o
meu blues.
(B. B. Palermo)
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Um brinde aos cacos desses copos
O cara da moto potente desafiando
a solidão
voa pelas avenidas esburacadas
dessa cidade pacata
no domingo de manhã.
Um suicídio vagaroso
e doloroso e fiel tal
qual o meu
empilhando garrafas vazias.
Dias úteis dos operários
cansados
são inúteis.
Um brinde aos cacos
desses copos que enfeitam
nossas mãos
como se fossem rosas.
A máquina desesperada
circulou também pela
tarde,
talvez estivesse
depressiva
ou chapada.
Final de domingo
ônibus das bandas que
animam bailões
roncam pra cima e pra
baixo.
Os coroas têm opções de
contar nos dedos
nos finais de semana:
bailes ou missas ou
cultos
ou programas de
auditório de TV.
Velhos e velhas fodem
pra valer
e o tempo está se
esgotando,
danem-se as DSTs
dane-se o HIV.
Familiares, relaxem,
o atestado de óbito não
alegrará fofoqueiros desocupados,
dirá apenas que foi
"morte por causa indeterminada".
(B. B. Palermo)
domingo, 22 de setembro de 2019
Trechos de Henry Miller
“Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar.”
***
“É exatamente porque as probabilidades são todas contra você, precisamente porque há tão pouca esperança, que a vida aqui é deliciosa.”
***
“Sou um homem livre - e preciso da minha liberdade. Preciso estar sozinho. Preciso meditar na minha vergonha e no meu desespero em retiro; preciso da luz do sol e das pedras do calçamento das ruas sem companhias, sem conversação, frente a frente comigo, apenas com a música do meu coração como companhia.”
sexta-feira, 20 de setembro de 2019
Quente - Bukowski
ela era quente, era tão quente
que eu não queria que ninguém mais a tivesse,
e se eu não chegasse em casa na hora certa
ela já teria ido, e era uma coisa que eu não podia
suportar -
eu enlouquecia...
era uma idiotice, eu sei, uma infantilidade,
mas eu me deixava levar, eu me deixava levar.
eu entregava todas as correspondências
e então Henderson me colocava na coleta noturna
num velho caminhão do exército,
a porra da lata velha começava a aquecer na metade
do caminho
e a noite seguia
eu pensando na minha Miriam quente
e eu entrando e saindo do caminhão
enchendo sacolas com cartas
o motor prestes a fundir
a agulha do termômetro cravada no vermelho
QUENTE QUENTE
como Miriam.
eu seguia saltando
mais 3 coletas e então de volta ao posto
eu estaria, meu carro
à espera de me levar até Miriam que estaria sentada em
meu sofá azul
com um uísque com gelo
cruzando as pernas e balançando os tornozelos
como costumava fazer,
duas coletas mais...
o caminhão enguiçou junto a um sinal, era o inferno
dando suas caras
mais uma vez...
eu tinha que chegar em casa até as 8, 8 era o prazo
final de Miriam.
fiz a última coleta e o caminhão enguiçou num sinal
a meia quadra do posto...
não tinha jeito de dar a partida, de jeito nenhum...
tranquei as portas, apanhei a chave e corri até o
posto...
me livrei das chaves... assinei o ponto...
a porra do seu caminhão está enguiçado no sinal,
gritei,
Pico com a Western...
... corri pela entrada, coloquei a chave na porta,
abri... seu copo de bebida estava lá, e um bilhete:
fio da puta:
isperei até 8 e sinco
você não me ama
seu fio da puta
alguém vai me amar
fiquei isperando todo dia
Miriam
servi um drinque e deixei a água encher a banheira
havia 5.000 bares na cidade
e eu percorri 25 deles
atrás de Miriam
seu ursinho púrpuro de pelúcia segurava o bilhete
e ele estava escorado num travesseiro
dei um trago para o urso, outro para mim
e entrei na água
quente
(Do livro "Queimando na água, afogando-se na chama").
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Cruzando o sinal vermelho
Mochila nas costas,
cabelo amarrado,
balançando,
da universidade pra
casa,
da casa pra
universidade.
A vontade ergue
edifícios,
investe em negócios
milionários,
basta Ela passar por
mim e acenar.
Bobo, a dúvida sempre
aparece:
Ela ficou vermelha?
Ela me quer?
No trânsito, a maior
transgressão de uns serzinhos
é cruzarem o sinal
vermelho.
Outros, se masturbarem
com parcerias
proibidas à luz do dia.
Não sei qual é a minha
transgressão,
diante de sua passagem,
Ela, o retrato nietzschiano
da vontade de potência.
Quero transgredir,
apesar de ser
um fraco, um tímido,
pisando em ovos ou
brasas,
com medo de errar a mão
e o pé,
não acertar a descida
do degrau
embora sóbrio e à luz
do dia.
Diante Dela, tenho medo
de errar no verbo,
ficar vermelho e
despencar no abismo.
Ninguém suporta cair.
Por isso que os bares
e seus estoques e os
puteiros
e suas ninfas
aguardam...
Na volta da boemia,
de madrugada,
eu cruzo o sinal
vermelho.
(B. B. Palermo)
quinta-feira, 12 de setembro de 2019
Caminhando na chuva sem se molhar
- Por que a luz tá massa?
- Porque
as nuvens estão apavorantes, mas debaixo delas, na rua, tá mais claro. Parece que
realçou o verde das árvores e da grama - bocejou, consultando as unhas - Ontem
eu bebi e dirigi antes de dormir. Aí cheguei na aula meio tonta, de manhã,
porque bebi e logo deitei.
- Você dirigiu?
- Dirigi no Euro truck simulator.
- Ah tá. Acho que você bebeu suco de laranja
com agrotóxico hehehe.
- Sai daí, seu debochado! Que livro é esse?
- Do Kardec. Segundo Ele, o homem bêbado é
alguém decadente, e está na mira de Deus. E a queda para o vício é influência
dos maus espíritos. Viu só, não bebo porque quero, são aquelas pestinhas que
fazem minha cabeça.
- Pestinhas?
- Isso, espíritos pouco evoluídos.
- Fala sério.
- Sim. Os amigos invisíveis estão por toda
parte. Por isso acabei no CAPS.
- Meu Deus! Cabezón, CAPS não é lugar pra
quem faz transações espirituais. Na real, quem anda sóbrio nesse hospital? Você
conhece alguém? Eu vivo imersa em sonhos e traumas e fantasias. Será que também
consigo um lugar no CAPS?
- Você não vai se tratar com aquele tarado,
Ele vai te passar a lábia!
- Tu é muito louco. O Doutor é racional, Ele
te dá remédio pra tu não viajar... Pra não ir bêbado pra terapia e
ameaçar Ele com uma garrafa.
- Ele é do mal.
- Tá... Entendi... Tu ameaçou o Doutor com
uma garrafa porque Ele é um espírito do mal.
- Descobri na primeira consulta. Ele me
olhava daquele jeito e me pedia pra falar.
- Fale mais sobre os porra desses espíritos
petulantes... Então eles te obrigam a beber?
- Ahan. Não devemos fazer as coisas quando
estamos contrariados.
- Tu fez algum pacto com o diabo? Já sei,
fez vários. Agora só um pacto maior pode desfazer isso.
- Estou sob proteção divina. Sério. Claro que
tenho que dar minha contrapartida.
- Hum...
- Descobri o poder da minha energia mental. Lembra da tarde que tu foi tomar sorvete com as amigas no bar do Telmo? Eu fui na
feira buscar ovos. No caminho desandou um temporal. Estava sem guarda-chuva.
Conectei minha mente na do divino. Fiz uma breve oração e a chuva parou.
Cara, me explica isso!
Cara, me explica isso!
- Mano! Você tá muito louco!
- Louco não, inspirado.
- Meu bem, ou é o pó que te vendem que é
muito estranho. Tu vai dizer: As pessoas são normais, o problema é a
qualidade da droga. Ou a dosagem. Mas me conta, que oração poderosa foi essa?
- Não posso falar. É um segredo que só
compartilho com meu Anjo da Guarda.
- Pensei que EU fosse a tua Anja... Meu, me
explica, tu nunca se atrasou ou faltou às consultas. Que eu saiba, tu sempre estava na sala de espera meia hora antes. Por que então a garrafa pra
cima do "tarado"?
- Aquele demônio é cheio de lábia.
- Ah tá. Ele dá em cima dos pacientes.
- Tu não vai chegar perto desse caco de gente!
- Meu bem, tu esqueceu a origem da porra do
meu nome? Laha-bia. Lahabiel é um anjo que tem poder contra espíritos maus.
Então, pela minha origem eu tenho poder sobre esses espíritos.
- Para! Não fala difícil, que eu tenho um
buraco na cabeça.
Escuta só... tá chovendo lá fora. Tu sabia que eu posso caminhar na chuva sem me molhar?
Escuta só... tá chovendo lá fora. Tu sabia que eu posso caminhar na chuva sem me molhar?
- Sabe quem anda na chuva sem se molhar? A
mulher do sol. Ela também encanta bois, dobrando-lhes os chifres. Caralho! Viu
só como eu sou esperta? Eu leio, meu bem. Conheço mitos e lendas. E tu, seu
tapado, em vez de ficar por aí se chapando e enchendo a cara, poderia estudar
um pouco mais sobre história e mitologia.
- A chuva... A chuva voltou. Juro, eu consigo
fazer a chuva parar...
- Cara, olhe pela janela, não é chuva, estão
lavando a calçada com uma mangueira.
- Psiu... Me deixe relaxar e meditar... Em dois
minutos vai começar a chover.
- Que massa. Aguenta um pouquinho, eu vou
chamar os médicos e enfermeiras pra assistirem.
(B. B. Palermo)
* Esta história nasceu de um bate-papo com amigos, no bar do TELMO.
* Esta história nasceu de um bate-papo com amigos, no bar do TELMO.
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