segunda-feira, 24 de junho de 2019
sábado, 22 de junho de 2019
Onde está a cabeça dos caras
Um maluco foi empinar sua motocicleta importada de mil cilindradas na
avenida, a uns trinta metros do bar onde eu conversava com dois amigos. Perdeu
o controle, já era noite, a moto rodopiou e voou em frente, acompanhada de faíscas
por causa do atrito com o asfalto, e o sujeito rolou uma dúzia de metros e se
chocou num carro que vinha no sentido contrário. O voo da motocicleta seguiu na
contramão, chocando-se no pneu traseiro de um carro estacionado e foi pro outro
lado da rua, uns cinquenta metros adiante.
- Caralho, e se o foguete vem em nossa direção?
- Já era, baby.
Um sujeito que estava numa mesa ao lado correu pra organizar o trânsito.
Depois foi ajudar o cara da moto. Por incrível que pareça, o retardado estava
consciente e sem qualquer osso quebrado.
- O filho da puta nasceu de novo.
- Já pensou se a máquina alcança as crianças que circulavam de bicicleta
pela calçada?
Enchi o copo e observei a bolha se formar no bico da garrafa. Rechacei um
pensamento que ganhava forma, "que pena não estar morto nessa hora".
Agora que estou vivo, sinto o paladar a cada gole. Um dos meus amigos achou que
era momento de dizer "viva bem cada minuto, como se fosse a frase ideal
para iniciar um romance".
Com seus smartphones em punho, pessoas tiram fotos, gravam vídeos, antes
que a motocicleta seja recolhida e o maluco conduzido ao hospital e antes que
cheguem os caras da Brigada.
Como um balão que estoura sem ter alcançado o seu máximo, broxo ao ver
toda essa cambada manuseando seus aparelhos. Precisam se ocupar, e eu necessito
inventar algo para distraí-las desse hábito ridículo.
- Se a cabeça dos caras não está no aparelho, está no pau - disse outro
de meus amigos.
O cretino dedicou muito suor pra cavalgar numa máquina de dar inveja a
amigos e conhecidos. Mas pra se exibir na avenida não pode exagerar na bebida
nem no pó. De que serve tudo isso?
Penso que ele deveria ser minha plateia, e não o contrário. Mas não levo
jeito pra coisa. Não consigo escrever textinhos curtinhos e engraçadinhos pra
chamar a atenção desses semiretardados.
quarta-feira, 12 de junho de 2019
Nem que seja no purgatório
Pra ser sincero, e isso eu só conto pra vocês, não me estresso com as
questões políticas e seus desdobramentos. Sei, pela idade e experiência, que a
maioria das pessoas se comporta como vira-latas, latem, latem, mas na hora do
"vamos ver", arriam o rabo entre as pernas. Ninguém é santo. Muitos podem
ser ingênuos, ovelhas obedientes, mas se a corda esticar tornam-se babacas,
militantes infantilizados, de um lado e de outro, e de má-fé e lambedores de
saco e de botas.
Estava no bar do Maneta me esforçando pra acompanhá-lo no copo, ouvindo repetidas
vezes seus planos e ladainhas. A mulher preferia ir à igreja a ter que dar pra
ele. Os filhos discordavam de qualquer opinião do pai, sua autoridade já era. Garganteava,
pela enésima vez, sua necessidade de acampar e pescar e morar numa chácara. Pensei
em dar-lhe uns conselhos, como agradar a mulher, tomar banho mais seguido,
ficar cheiroso, vestir uma roupa nova.
O pilantrinha me elegeu seu companheiro, "convidado especial",
pra irmos num puteiro de quinta categoria. Se afeiçoou a uma garota que, logo
vi, de pouquíssimas virtudes e sensibilidade. Só dava pra ele e aguentava seus
papos porque ele metia sem dó a mão no bolso.
faceiro, logo estiquei o olho pra uma garota magérrima e dentinhos ralos
e saltados e cabelos curtos, que trabalhava de garçonete. Juro que na hora me
pareceu atraente, porém ao encontrá-la no outro dia, sóbrio, saltou aos olhos
suas olheiras e cara chapada e voz meio travada e então minha decepção foi
enorme.
O dia seguinte é o de menos. Maneta, empolgado, pagava todas, e eu usei
meus trocados pra rodar, na máquina, rock dos anos Oitenta.
Quando a dentuça miudinha se aproximou, depois da troca de olhares,
brotou o velho e mesmo desejo, o de adotar pets abandonados. Foi o que fiz. Ela
se desfez do avental, acariciei seu rosto e cabelos. Apanhou o celular e me
mostrou fotos de como era seu cabelo: preto, liso, que alcançava a bunda. Mas
estava endividada, ganhou mil reais com a tosa. Foi aí que eu pensei que ela
seria a cadela perfeita pra tomar conta do meu canil.
Ela me beijou e disse que gostou de minha pessoa e, do seu canto,
agarrado à loira insensível e pouco confiável, o Maneta liberou dúzias de
cerveja e rosnou "nada de uísque com energético".
Embora alto, notei as conversas e movimentos estranhos nos fundos do bar,
uns caras bêbados quase se pegando e nos espiando desconfiados, e então uma luz
me avisou de que eu e meu amigo poderíamos estar em perigo e o melhor a fazer
era cair fora. Além do mais, Maneta tinha poucas opções, eram três da manhã, a
mulher esperando por ele, e a puta pressionando pra assumir a titularidade e
ganhar um bar dele, pra que ela administrasse.
O banheiro era um cubículo ordinário, e ficava do lado de fora. No
caminho, olhei pro céu pra me sentir afagado e menos solitário, compartilhando o
olhar e a presença das estrelas. Foi quando me deparei com umas luzes
despencando do firmamento, explosões estranhas que ribombavam e sacudiam e
fizeram tremer portas e janelas do puteiro.
- Puta que pariu! É hoje, o
meteoro tão aguardado acabou de chegar! Eis o momento perfeito: todo mundo,
corruptos, fascistas ou comunistas, putas
e escritores fracassados, todos, todos irão pelos ares!
Atônito, retornei pro bar. Maneta acertava a conta, escrevi o número do
meu telefone num caderno que a garotinha me alcançou e sussurrei
"paciência, hoje o mundo veio abaixo, mas amanhã vou te foder gostoso, nem
que seja no purgatório".
sábado, 1 de junho de 2019
Um sujeito de classe média
A chuva e o bar me encharcam há três dias. Quando me chamam
"Palermo!" levo um susto, tenho a impressão de que sou um pano
encardido, pendurado num varal e trespassado pelos olhos da comunidade. Prefiro
ser chamado "Cadelão!", aí me sinto na mesma condição do servente de
pedreiro ou do encanador ou do catador de lixo.
Liguei a TV, uma da manhã, sintonizei um programa de entrevistas. Três
convidados debatem sobre a importância medicinal e a liberação da Cannabis, e
então meus olhos brilham e eu me lembro das toneladas de baseado, as bobagens
que pronunciei, chapado, as milhares de canções que ouvi e o êxtase que
experimentei, muito mais do que um cidadão do bem possa imaginar.
Esforço-me pra me colocar no lugar desses heróis, sejam crianças,
adolescentes ou adultos, criaturas classificadas como de classe media. Fico
arrepiado só de imaginar os perigos a que esses anjinhos estão submetidos, são
as drogas e o álcool, os juros dos cartões de crédito, todas e nenhuma
ideologia, o formato da terra, direitistas e esquerdistas furiosos, o sertanejo
universitário.
É inevitável o pesadelo. Como um aficionado por armas, desperto rodeado
por fantasmas. Nem falo de conflitos familiares ou do bullying nas escolas.
Pressionado por tantas informações que se digladiam, fascistas versus
comunistas, asnos versus raposas, porcos versus bois e vacas etcétera e tal,
sou surpreendido por crises de ansiedade e de suor e de choro e uma vontade
louca de encher a cara, e o motivo, ó caros amigos escrotos, o motivo é o de
estar boiando na água fria desse mundinho que desfrutais.
Os filhos da puta colocam em risco minha condição social, que é a de
poder comprar uma TV de cinquenta polegadas em quinze prestações, e digo o
mesmo pro carrinho popular, que lavo e deixo brilhando e suas rodas tinindo
todo o sábado de tarde.
Sonho de consumo. Ter uma gorda
conta bancária e uma pança enorme, só pra me estressar e correr pra academia
cinco vezes por semana, a cada verão, e postar selfies caprichadas pra
impressionar as garotas.
Desejo de consumo. Queimar fatias do meu salário nas farmácias, ter um
prazer sádico ao ouvir os vendedores gargantearem lançamentos de complementos e
vitaminas para isso e para aquilo.
Sonho de consumo. Ter uma dúzia de notas de cem na carteira e sentir uma
alegria incomum ao ouvir a balconista dizer que os produtos tais são bons
porque estão vendendo bem. Não comprar nada naquele instante, dizer que vai
voando a um compromisso e que retornará logo depois.
Um privilegiado. Ao cair a noite deixo o celular no silencioso, pois
grupos de conhecidos do WhatsApp, a que fui encarecidamente convidado a
participar, desfilam mensagens de fé, de oração, Deus e Jesus e Virgem Maria e
mais isso e aquilo. Imagens e caricaturas, como se fossem uma parelha de
cavalos e sua carruagem me conduzindo pela escuridão da Idade Média em direção
à prometida luz que vem do céu.
E de novo estou fulo e com desejo de botar meu exército nas ruas,
chutando e cuspindo e dividindo olhares raivosos com as donas de casa fazendo
compras em dias de preços estourando.
Que merda, eu não precisava sofrer ao dar
de cara com os clichês de sempre. Eu devia me acostumar com essa gente que vive
agarrada em muletas e bengalas e andadores.
Cinismo e cara de pau. Saber que os outros estão compartilhando merda,
também fazer isso e fingir que considera essas merdas edificantes para a vida
desses boçais.
Cinismo e cara de pau. Não me afastar desses grupos. Ter esperança. Quem
sabe amanhã alguém se inspire pra além da superfície e compartilhe algo que me
entorte o queixo. Ó meus irmãos, companheiros de longos ensaios de imbecilidade,
tudo o que espero é que algum de vocês me surpreenda com novidade e
intensidade, como se me visitasse chutando a porta.
Eu podia estar transando sem camisinha, pegando e espalhando por aí o
HIV, ou bamboleando pelas calçadas podre de bêbado. Porém, aqui estou com
minhas pantufas e lareira em brasa e TV moderninha, vendo programas de quinta e
bebericando cerveja puro malte porque sou um cara bem informado, cervejas que
contêm cereais não maltados não passam de suco de milho, pelo menos foi o que
postaram nas redes.
Eu sou o que se poderia definir de
cara útil, um bosta que todo dia se esforça pra ser promovido e classificado
pelo IBGE como de classe média. Um sujeito que tem prazer bovino e uma visão
mediana das coisas.
(B. B. Palermo)
terça-feira, 28 de maio de 2019
Monstros
Dez anos depois
batem à porta.
Desejavam resgatar
batem à porta.
Desejavam resgatar
o seu lugar
no meu álbum
no meu álbum
de lembranças.
Dedo em riste
Dedo em riste
falei de regras e deveres
que sustentam os pilares
da boa convivência.
Queria convencê-los
de que o amor prescreveu.
Queria convencê-los
de que o amor prescreveu.
(o tempo e Ela
não passam de monstros
não passam de monstros
que me dizem frouxo
enquanto riem
da minha cara!)
Depois que eles se foram
Depois que eles se foram
deixei as portas
trancadas.
Sei que alarmes
Sei que alarmes
e cadeados
e câmeras
e sensores
me guardam...
e aguardam
gestos definitivos...
Hoje quero aprender
a mastigar
me guardam...
e aguardam
gestos definitivos...
Hoje quero aprender
a mastigar
essas verdades
amargas
e torcer para que as palavras
que rabisco no diário
deem as coordenadas.
amargas
e torcer para que as palavras
que rabisco no diário
deem as coordenadas.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
sexta-feira, 24 de maio de 2019
Narrativas cansadas
Os movimentos
da dentadura postiça
na boca do velhinho
sentado no bar
sinalizam algo sobre o tempo.
Depois que a companheira morreu,
ele vence o rosário do dia
de bar em bar.
paga um trago pra quem
emprestar
ouvidos
às suas histórias.
Lembrei de meu amigo que
enfartou
e nada publicou
de centenas de páginas escritas.
Ele quer e não quer
espalhar pelo mundo
seus contos e
romances e poemas.
Quando for ao psiquiatra
desempenharei papel semelhante
ao do velhinho,
entupindo ouvidos alheios,
devidamente pagos,
com minhas narrativas cansadas.
Penso nos objetivos do
velhinho,
ao peregrinar pelos bares,
implorando audição.
Penso nos objetivos do meu
amigo,
que insiste em escrever e
deixar algo,
agora que o tempo respira
por aparelhos.
Penso nos meus objetivos.
Onde tudo isso vai dar?
Otimistas creem em nossa
transformação.
Pessimistas dizem que essa rotina
sinaliza
que tudo está perdido.
Eis a razão de toda a náusea.
Nossas buscas são confusas
parece que uma força estranha nos trapaceia,
e o tempo dá sinais de que
encheu o saco
de nossas paranoias.
É utópico acreditar em nossa transformação.
A mudança requer esforço
redobrado,
e o fôlego já era.
(B. B. Palermo)
quarta-feira, 22 de maio de 2019
Traças de regime - Sergio Capparelli
As traças gostam de suspense:
Lêem com cuidado
E de olhos fechados.
Se estão com pressa,
Comem sanduíches de escritores
importantes,
Cecília Meireles, Lygia Bojunga,
Hesíodo e os deuses gregos.
Elas dão conselhos:
“as histórias lacrimejantes são
melhores
Porque facilitam a digestão”.
E estamos conversados!
Traças iletradas são sem
cerimônia:
Comem heróis, heroínas, enredos,
E no fim devoram o autor.
Ah, as traças, como
evitá-las?
Comem Mario Quintana, devoram os
dois
Verissimos (Pai e filho)
E, de sobremesa, encomendam
escritores bem
Românticos.
Olha, lá vai uma arrotando
Lobato.
(Do livro 111 poemas para crianças).
O capeta é fodástico
O frio se aproxima
e o
capeta anda nervoso
porque estou há dias
longe do copo.
Alfineta meu querer,
oferece taças de vinho.
Serão longos dias de
tentação
nesse final de maio.
Astros dizem que
oscilarei entre os pólos
da razão e do desejo,
jogado de um lado para
outro
como uma rolha de
cortiça em alto mar.
O momento crucial
que baterá o martelo,
a belíssima dama que
vai dar o ar de sua presença,
chama-se "o
motivo".
Motivo para obedecer o
capeta
ou permanecer abstêmio.
Será meu ENEM.
Será meu vestibular.
Me conheço.
Sempre retorno
aos velhos livros e
roteiros.
O capeta é fodástico.
(B. B. Palermo)
terça-feira, 21 de maio de 2019
O apanhador no campo de centeio
“Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.”
– J. D. Salinger, do livro “O apanhador no campo de centeio”. [tradução Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster]. 18ª ed., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2012.
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