sábado, 1 de junho de 2019

Um sujeito de classe média



A chuva e o bar me encharcam há três dias. Quando me chamam "Palermo!" levo um susto, tenho a impressão de que sou um pano encardido, pendurado num varal e trespassado pelos olhos da comunidade. Prefiro ser chamado "Cadelão!", aí me sinto na mesma condição do servente de pedreiro ou do encanador ou do catador de lixo.
Liguei a TV, uma da manhã, sintonizei um programa de entrevistas. Três convidados debatem sobre a importância medicinal e a liberação da Cannabis, e então meus olhos brilham e eu me lembro das toneladas de baseado, as bobagens que pronunciei, chapado, as milhares de canções que ouvi e o êxtase que experimentei, muito mais do que um cidadão do bem possa imaginar.
Esforço-me pra me colocar no lugar desses heróis, sejam crianças, adolescentes ou adultos, criaturas classificadas como de classe media. Fico arrepiado só de imaginar os perigos a que esses anjinhos estão submetidos, são as drogas e o álcool, os juros dos cartões de crédito, todas e nenhuma ideologia, o formato da terra, direitistas e esquerdistas furiosos, o sertanejo universitário.
É inevitável o pesadelo. Como um aficionado por armas, desperto rodeado por fantasmas. Nem falo de conflitos familiares ou do bullying nas escolas. Pressionado por tantas informações que se digladiam, fascistas versus comunistas, asnos versus raposas, porcos versus bois e vacas etcétera e tal, sou surpreendido por crises de ansiedade e de suor e de choro e uma vontade louca de encher a cara, e o motivo, ó caros amigos escrotos, o motivo é o de estar boiando na água fria desse mundinho que desfrutais.
Os filhos da puta colocam em risco minha condição social, que é a de poder comprar uma TV de cinquenta polegadas em quinze prestações, e digo o mesmo pro carrinho popular, que lavo e deixo brilhando e suas rodas tinindo todo o sábado de tarde.
 Sonho de consumo. Ter uma gorda conta bancária e uma pança enorme, só pra me estressar e correr pra academia cinco vezes por semana, a cada verão, e postar selfies caprichadas pra impressionar as garotas.
Desejo de consumo. Queimar fatias do meu salário nas farmácias, ter um prazer sádico ao ouvir os vendedores gargantearem lançamentos de complementos e vitaminas para isso e para aquilo.
Sonho de consumo. Ter uma dúzia de notas de cem na carteira e sentir uma alegria incomum ao ouvir a balconista dizer que os produtos tais são bons porque estão vendendo bem. Não comprar nada naquele instante, dizer que vai voando a um compromisso e que retornará logo depois.
Um privilegiado. Ao cair a noite deixo o celular no silencioso, pois grupos de conhecidos do WhatsApp, a que fui encarecidamente convidado a participar, desfilam mensagens de fé, de oração, Deus e Jesus e Virgem Maria e mais isso e aquilo. Imagens e caricaturas, como se fossem uma parelha de cavalos e sua carruagem me conduzindo pela escuridão da Idade Média em direção à prometida luz que vem do céu.
E de novo estou fulo e com desejo de botar meu exército nas ruas, chutando e cuspindo e dividindo olhares raivosos com as donas de casa fazendo compras em dias de preços estourando. 
Que merda, eu não precisava sofrer ao dar de cara com os clichês de sempre. Eu devia me acostumar com essa gente que vive agarrada em muletas e bengalas e andadores.
Cinismo e cara de pau. Saber que os outros estão compartilhando merda, também fazer isso e fingir que considera essas merdas edificantes para a vida desses boçais.
Cinismo e cara de pau. Não me afastar desses grupos. Ter esperança. Quem sabe amanhã alguém se inspire pra além da superfície e compartilhe algo que me entorte o queixo. Ó meus irmãos, companheiros de longos ensaios de imbecilidade, tudo o que espero é que algum de vocês me surpreenda com novidade e intensidade, como se me visitasse chutando a porta.
Eu podia estar transando sem camisinha, pegando e espalhando por aí o HIV, ou bamboleando pelas calçadas podre de bêbado. Porém, aqui estou com minhas pantufas e lareira em brasa e TV moderninha, vendo programas de quinta e bebericando cerveja puro malte porque sou um cara bem informado, cervejas que contêm cereais não maltados não passam de suco de milho, pelo menos foi o que postaram nas redes.
 Eu sou o que se poderia definir de cara útil, um bosta que todo dia se esforça pra ser promovido e classificado pelo IBGE como de classe média. Um sujeito que tem prazer bovino e uma visão mediana das coisas.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 28 de maio de 2019

Monstros



Dez anos depois
batem à porta.
Desejavam resgatar
o seu lugar
no meu álbum
de lembranças.

Dedo em riste 
falei de regras e deveres
que sustentam os pilares
da boa convivência.
Queria convencê-los
de que o amor prescreveu.

(o tempo e Ela
não passam 
de monstros
que me dizem frouxo
enquanto riem
da minha cara!)

Depois que eles se foram
deixei as portas
trancadas.
Sei que alarmes
e cadeados
e câmeras
e sensores
me guardam...
e aguardam
gestos definitivos...

            Hoje quero aprender
a mastigar
essas verdades
                        amargas
e torcer para que as palavras
          que rabisco no diário
  deem as coordenadas.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

Festa no brejo - Carlos Drummond de Andrade


A saparia desesperada
coaxa coaxa coaxa.
O brejo vibra que nem caixa
de guerra. Os sapos estão danados.
A lua gorda apareceu
e clareou o brejo todo.
Até à lua sobe o coro
da saparia desesperada.
A saparia toda de Minas
coaxa no brejo humilde.
Hoje tem festa no brejo! 

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Narrativas cansadas


Os movimentos
da dentadura postiça
na boca do velhinho
sentado no bar
sinalizam algo sobre o tempo.
Depois que a companheira morreu,
ele vence o rosário do dia
de bar em bar.
paga um trago pra quem emprestar
ouvidos
às suas histórias.
Lembrei de meu amigo que enfartou
e nada publicou
de centenas de páginas escritas.
Ele quer e não quer
espalhar pelo mundo
seus contos e
romances e poemas.
Quando for ao psiquiatra
desempenharei papel semelhante
ao do velhinho,
entupindo ouvidos alheios,
devidamente pagos,
com minhas narrativas cansadas.
Penso nos objetivos do velhinho,
ao peregrinar pelos bares,
implorando audição.
Penso nos objetivos do meu amigo,
que insiste em escrever e deixar algo,
agora que o tempo respira 
por aparelhos.
Penso nos meus objetivos.
Onde tudo isso vai dar?
Otimistas creem em nossa transformação.
Pessimistas dizem que essa rotina
sinaliza
que tudo está perdido.
Eis a razão de toda a náusea.
Nossas buscas são confusas
parece que uma força estranha nos trapaceia,
e o tempo dá sinais de que encheu o saco
de nossas paranoias.
É utópico acreditar em nossa transformação.
A mudança requer esforço redobrado,
e o fôlego já era.

(B. B. Palermo)



quarta-feira, 22 de maio de 2019

Desejo de abraço - Roseana Murray


Desejo de abraço
nunca passa.
Abraço é o nó mais delicado
que há.
Um braço aqui e outro lá
e o coração se derrete,
o corpo afunda na mais
gigantesca felicidade.


(Do livro Poços dos desejos)

Traças de regime - Sergio Capparelli



As traças gostam de suspense:
Lêem com cuidado
E de olhos fechados.
 Se estão com pressa,
Comem sanduíches de escritores importantes,
Cecília Meireles, Lygia Bojunga,
Hesíodo e os deuses gregos.
 Elas dão conselhos:
“as histórias lacrimejantes são melhores
Porque facilitam a digestão”.
 E estamos conversados!
 Traças iletradas são sem cerimônia:
Comem heróis, heroínas, enredos,
E no fim devoram o autor.
 Ah, as traças, como evitá-las?
Comem Mario Quintana, devoram os dois
Verissimos (Pai e filho)
E, de sobremesa, encomendam escritores bem
Românticos.
 Olha, lá vai uma arrotando Lobato.

(Do livro 111 poemas para crianças).

O capeta é fodástico



O frio se aproxima 
e o capeta anda nervoso
porque estou há dias longe do copo.

Alfineta meu querer,
oferece taças de vinho.

Serão longos dias de tentação
nesse final de maio.

Astros dizem que oscilarei entre os pólos
da razão e do desejo,
jogado de um lado para outro
como uma rolha de cortiça em alto mar.

O momento crucial
que baterá o martelo,
a belíssima dama que vai dar o ar de sua presença,
chama-se "o motivo".

Motivo para obedecer o capeta
ou permanecer abstêmio.

Será meu ENEM.
Será meu vestibular.

Me conheço.
Sempre retorno
aos velhos livros e roteiros.

O capeta é fodástico.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 21 de maio de 2019

O apanhador no campo de centeio


“Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.”

– J. D. Salinger, do livro “O apanhador no campo de centeio”. [tradução Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster]. 18ª ed., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2012.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Se tivermos sorte, quem sabe amanhã



Se você quer ser um sujeito inspirador,
saia já da vitrine ou ringue das redes sociais,
desça os livros da estante,
de preferência os que ampliam
tua sensibilidade
e desejo de fraternidade.
Pessoas comuns não inspiram ninguém.
Pessoas comuns vociferam sua opinião
protegidas pela tela do computador ou smartphone,
não ouvem nem são ouvidas.
Pessoas comuns pouco têm a dizer.
Você deve dar exemplos simples, reais,
de como tornar o mundo melhor.
Mas se você não consegue se desprender
do cercadinho e da coleira,
vamos torcer para que amanhã
nasçam seres melhores.
Sim, claro, isso se tivermos sorte.

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Solidariedade a esses irmãos



Solidariedade a esses irmãos
e seus turnos semanais
e uniformes e horários e relógio ponto
e suas casinhas populares
e seus planos de aposentadoria e de viagens
e seus sonhos de um dia dormir mais tarde
e levantar mais tarde e maldizer
e rir da cara mal-humorada do chefe.

Compaixão às suas longas prestações da casa própria
e crediários vários desde eletrodomésticos
até a ração do pet
e tudo o mais que todo mundo compra porque é fashion
smartphones e roupas e mochilas
e sacolas
descoladas
e abandonadas
num canto boa parte do tempo.

Piedade às suas línguas 
amaldiçoando
os iguais.

Alegria 
alegria por estar vivo
e pensar nisso tudo
e me colocar do lado de fora
e espiar pela fresta da janela
e dar graças por não ser tão influenciável
pelos outros e ao mesmo tempo
ser refém de uma angústia
pelas coisas serem assim
e tantas sementes em potência
não germinarem
e foguetes não decolarem
e talentos
não florescerem
e não darem frutos
e a nobre deusa CRIAÇÃO
nunca vir ao mundo.

Silencio, medito,
logo me aquieto,
quem sou eu para julgar,
melhor é desinflar o EGO
e me colocar no lugar dos outros
e, claro,
depositar
mais e mais fichas na esperança.

Reconforta por instantes
saber que tudo se renova
e nasce e cresce e morre
e viemos do pó e pra lá
regressaremos
e até acho engraçado receber no portão de casa
o bêbado e repassar-lhe uns trocados
para comprar a sagrada cachaça
e mais engraçada ainda é sua cara chorosa
porque seu amigo bêbado partiu dessa
e ele sabe que vai morrer
e que a morte vem depressa
e vai levá-lo ao lugar de origem
ao pó e ao esquecimento
mas quem conduz o jogo 
é a necessidade
de se embriagar.

Bem-aventurados os que sofrem
os que fazem questão de sofrer
os que acreditam em algo superior
ou inferior
os que são indiferentes
a respeito do começo 
e do fim.

Confesso minha puta inveja
aos que sabem o que querem
aos que se agarram numa coisa
que amenize sua insignificância 
e dor.

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 9 de maio de 2019

Obrigado por tudo



Luto.
O bar do amigo faliu.
Amanhã vou auxiliar no balanço,
prestarei contas de minhas ausências
e proporei a festa de despedida.
Esperança.
Segunda-feira vou arranjar trabalho,
labutarei pra esquecer que o vizinho
não vai suportar por longos dias a doença.
Médicos dizem que é questão de tempo.
Sempre é questão de tempo.
E idade.
Luto.
Contra o tempo.
A favor do tempo.
Preciso aprender a dançar.
Obrigado.
Aos amigos que me suportam,
ridículo, inspirado, falso, bêbado,
usando largamente a mesa do bar
que se esparrama e esbalda na calçada
sem dar a mínima aos que passam.
Obrigado.
Por fazerem de conta que ouvem minhas falsas verdades,
minha alegria fingida.
Obrigado.
Certeza.
Ainda serei o cestinha desse jogo de escrever ****** e 
amassar a folha e acertar a boca larga e
insana dessa lixeira hostil.
Obrigado.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...