quarta-feira, 22 de maio de 2019

Desejo de abraço - Roseana Murray


Desejo de abraço
nunca passa.
Abraço é o nó mais delicado
que há.
Um braço aqui e outro lá
e o coração se derrete,
o corpo afunda na mais
gigantesca felicidade.


(Do livro Poços dos desejos)

Traças de regime - Sergio Capparelli



As traças gostam de suspense:
Lêem com cuidado
E de olhos fechados.
 Se estão com pressa,
Comem sanduíches de escritores importantes,
Cecília Meireles, Lygia Bojunga,
Hesíodo e os deuses gregos.
 Elas dão conselhos:
“as histórias lacrimejantes são melhores
Porque facilitam a digestão”.
 E estamos conversados!
 Traças iletradas são sem cerimônia:
Comem heróis, heroínas, enredos,
E no fim devoram o autor.
 Ah, as traças, como evitá-las?
Comem Mario Quintana, devoram os dois
Verissimos (Pai e filho)
E, de sobremesa, encomendam escritores bem
Românticos.
 Olha, lá vai uma arrotando Lobato.

(Do livro 111 poemas para crianças).

O capeta é fodástico



O frio se aproxima 
e o capeta anda nervoso
porque estou há dias longe do copo.

Alfineta meu querer,
oferece taças de vinho.

Serão longos dias de tentação
nesse final de maio.

Astros dizem que oscilarei entre os pólos
da razão e do desejo,
jogado de um lado para outro
como uma rolha de cortiça em alto mar.

O momento crucial
que baterá o martelo,
a belíssima dama que vai dar o ar de sua presença,
chama-se "o motivo".

Motivo para obedecer o capeta
ou permanecer abstêmio.

Será meu ENEM.
Será meu vestibular.

Me conheço.
Sempre retorno
aos velhos livros e roteiros.

O capeta é fodástico.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 21 de maio de 2019

O apanhador no campo de centeio


“Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.”

– J. D. Salinger, do livro “O apanhador no campo de centeio”. [tradução Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster]. 18ª ed., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2012.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Se tivermos sorte, quem sabe amanhã



Se você quer ser um sujeito inspirador,
saia já da vitrine ou ringue das redes sociais,
desça os livros da estante,
de preferência os que ampliam
tua sensibilidade
e desejo de fraternidade.
Pessoas comuns não inspiram ninguém.
Pessoas comuns vociferam sua opinião
protegidas pela tela do computador ou smartphone,
não ouvem nem são ouvidas.
Pessoas comuns pouco têm a dizer.
Você deve dar exemplos simples, reais,
de como tornar o mundo melhor.
Mas se você não consegue se desprender
do cercadinho e da coleira,
vamos torcer para que amanhã
nasçam seres melhores.
Sim, claro, isso se tivermos sorte.

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Solidariedade a esses irmãos



Solidariedade a esses irmãos
e seus turnos semanais
e uniformes e horários e relógio ponto
e suas casinhas populares
e seus planos de aposentadoria e de viagens
e seus sonhos de um dia dormir mais tarde
e levantar mais tarde e maldizer
e rir da cara mal-humorada do chefe.

Compaixão às suas longas prestações da casa própria
e crediários vários desde eletrodomésticos
até a ração do pet
e tudo o mais que todo mundo compra porque é fashion
smartphones e roupas e mochilas
e sacolas
descoladas
e abandonadas
num canto boa parte do tempo.

Piedade às suas línguas 
amaldiçoando
os iguais.

Alegria 
alegria por estar vivo
e pensar nisso tudo
e me colocar do lado de fora
e espiar pela fresta da janela
e dar graças por não ser tão influenciável
pelos outros e ao mesmo tempo
ser refém de uma angústia
pelas coisas serem assim
e tantas sementes em potência
não germinarem
e foguetes não decolarem
e talentos
não florescerem
e não darem frutos
e a nobre deusa CRIAÇÃO
nunca vir ao mundo.

Silencio, medito,
logo me aquieto,
quem sou eu para julgar,
melhor é desinflar o EGO
e me colocar no lugar dos outros
e, claro,
depositar
mais e mais fichas na esperança.

Reconforta por instantes
saber que tudo se renova
e nasce e cresce e morre
e viemos do pó e pra lá
regressaremos
e até acho engraçado receber no portão de casa
o bêbado e repassar-lhe uns trocados
para comprar a sagrada cachaça
e mais engraçada ainda é sua cara chorosa
porque seu amigo bêbado partiu dessa
e ele sabe que vai morrer
e que a morte vem depressa
e vai levá-lo ao lugar de origem
ao pó e ao esquecimento
mas quem conduz o jogo 
é a necessidade
de se embriagar.

Bem-aventurados os que sofrem
os que fazem questão de sofrer
os que acreditam em algo superior
ou inferior
os que são indiferentes
a respeito do começo 
e do fim.

Confesso minha puta inveja
aos que sabem o que querem
aos que se agarram numa coisa
que amenize sua insignificância 
e dor.

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 9 de maio de 2019

Obrigado por tudo



Luto.
O bar do amigo faliu.
Amanhã vou auxiliar no balanço,
prestarei contas de minhas ausências
e proporei a festa de despedida.
Esperança.
Segunda-feira vou arranjar trabalho,
labutarei pra esquecer que o vizinho
não vai suportar por longos dias a doença.
Médicos dizem que é questão de tempo.
Sempre é questão de tempo.
E idade.
Luto.
Contra o tempo.
A favor do tempo.
Preciso aprender a dançar.
Obrigado.
Aos amigos que me suportam,
ridículo, inspirado, falso, bêbado,
usando largamente a mesa do bar
que se esparrama e esbalda na calçada
sem dar a mínima aos que passam.
Obrigado.
Por fazerem de conta que ouvem minhas falsas verdades,
minha alegria fingida.
Obrigado.
Certeza.
Ainda serei o cestinha desse jogo de escrever ****** e 
amassar a folha e acertar a boca larga e
insana dessa lixeira hostil.
Obrigado.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 7 de maio de 2019

Se eu morresse amanhã



Por aqui os cães são os donos da lua.
Por aqui os carros apodrecem nas ruas.
Maria diz que os "Noturnos" do Chopin a deixam triste.
Beiço diz que é melhor dizer palavrão do que partir pra agressão.
Por aqui aprender inglês é difícil por conta da minha preguiça.
Quando escrevo não sei se o compasso é o das asas do passarinho
ou de suas patas.
Se meu país fosse perfeito
e se as pessoas fossem perfeitas
e se eu morresse amanhã
ninguém diria "que pena".

(B. B. Palermo)

domingo, 5 de maio de 2019

Somos feitos de gesso



Imagino demais.
É que estou à cata de personagens.
Não me importo que alguns deles ganhem vida 
e me pressionem
para que os deixe numa boa posição,
com destaque nas vitrines que se chamam 
redes sociais.
Mas o imaginário não escapa da verdade 
de que somos uns comuns,
uma espiga de trigo 
no meio de um campo de trigo,
e não somos geniais como Van Gogh
para captar o inusitado 
ou a essência dessa paisagem,
na cor e luminosidade certa, 
no exato instante
sem o qual tudo seria miseravelmente comum.
Imagino que somos criaturas de gesso, 
desprovidos da essência,
que chamamos "sentimento".
E como fatos se repetem, 
tornam-se banais,
concluo que o carinha que foi encontrado 
dependurado numa corda
- num espaço e tempo só Dele -,
e que não suportou a dureza da existência,
Ele também só pode ser de gesso.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 30 de abril de 2019

Ela é boa e justa e sincera demais


Ela tem cabelos negros e sorriso fácil e muitos planos.
Como Ela é muito jovem, eu mergulho nos livros oito horas por dia.
Minto. Das oito horas, duas eu rabisco poemas pensando Nela,
só que no outro dia eu acho que eles estão muito ruins,
aí pratico basquete na lixeira.
Que isso fique entre nós.
Sinto que não a fisguei por completo.
E talvez nunca seja possível.
Os cabelos e olhos negros espalham vida
e eu me distraio e acompanho, ora um, ora outro.
Dou piruetas, ando de skate, torço fervorosamente pro time do bairro,
compro rifas das crianças de escolas, dou moedas pros bêbados.
Odeio quando ela compartilha fotos com os amigos no bar.
Fico na minha, não dou pistas de que sou fraco.
Não sei explicar a vantagem de conhecê-la desde a tenra idade,
ter a sorte de saber seus sonhos, vê-la brilhar e falar dos seus planos.
Em tempos de corrida em busca de uma especialização, e de juntar dinheiro rápido, Ela não deseja dedicar-se apenas a uma profissão, quer libertar seus diversos talentos.
Estou vulnerável às opiniões de familiares e amigos.
Deprimo por saber que eles dirão que pertencemos a gerações impares.
Eles repetirão, me conhecem, sabem que logo estarei fissurado por novas conexões.
Eu não darei ouvidos.
Imagino os comentários:
- Ele tem uma existência torta... Ele anda em zigue-zague.
Centenas espalharão a fofoca derradeira:
 - Ele tinha tudo para dar certo, mas parece que nasceu torto.
Algo me assusta Nela.
É muito boa, justa e sincera.
O mundo é perigoso e minhas experiências são um bocado singulares.
Ao andar pelas ruas, acaricio cães carentes que estão atrás de grades de casas, edifícios, fábricas e estacionamentos.
Uma sensibilidade que não me envergonha, muito embora os olhares desconfiados atrás de cortinas e portas.
Bom, às vezes isso me intimida, não admito ser confundido com um chinelo.
E se Ela não gostar de blues?
E se Ela insinuar que os Mozart e Beethoven que ouço são de cortar os pulsos?
Isso é o de menos. Vou narrar o roteiro que percorri, com todas as metáforas e neuroses, desde a infância, para que o apego a certas canções e filmes desenhasse o meu destino.
Estou feliz. Nesse início de inverno conto com o seu olhar,

e isso impede que eu seja carente de outros invernos.

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Camiseta virada e preservativo no bolso


Chego em casa pelas quatro da tarde e me detenho diante do espelho. Uso camiseta estampada, e logo percebo que está virada. Noto a etiqueta enorme atrás do pescoço. Fico vermelho de vergonha por não ter passado vergonha diante das pessoas. Danem-se, não lembro de ter reparado em gente conhecida.
Enfio as mãos nos bolsos, no esquerdo encontro meu RG e algumas moedas e um bilhete com o telefone de uma putinha e uma fita vermelha do Santo Expedito. No bolso direito encontro um preservativo.
Ontem, lá pelas onze da noite, jogava sinuca e comemorava, com outros comuns, uns trocados que ganhei no jogo do bicho. Aconselho esses carinhas que sonham em ganhar nas apostas para que joguem alguns centavos nas centenas, pois assim é mais fácil ganhar algum, pelo menos pra pagar os jogos da semana. Espiei o celular e havia um áudio da Janete. "Cadelão, onde tu tá? Vem pra cá, tenho uma novinha pra ti". Há anos ela joga essa isca pra me atrair ao seu puteiro. Sempre vou faceiro e chego lá e vejo gordinhas de uns trinta e poucos.
Tinha novidades. Propôs algo como um estágio. Se dormisse com Ela no final das noites, poderia passar a semana na boate, rodeado de putas, escrevendo. Gostei da ideia, quem sabe agora minha literatura deslancha. Vivo um dilema diário: não trabalho para ter tempo para escrever, mas vocês sabem, no Brasil a maioria dos escritores têm outra profissão, senão passariam fome. A inspiração não vem, então tenho um motivo pra correr pro bar. No outro dia baixa uma ressaca e então a Janete me chama. Ela tem uma boa alma. Ela sabe dos meus sonhos e bolsos vazios.
Na boate, embalado pelo álcool e pelas músicas que botei pra rodar, eu não urino no banheiro. Saio pela porta da frente e vou até os fundos. É um lugar mais elevado, afastado dos postes mais próximos e suas lâmpadas. Abro a braguilha, aponto o jato do coiso em direção à grama, olho pro céu e sou tomado por um encantamento, um momento mágico, uma vertigem me atravessa quando a beleza se descortina diante dos olhos, nada mais nada menos do que a imensidão deslumbrante da via láctea.
Perto do amanhecer,  depois que os taxistas conduzem algumas garotas até suas casas para despacharem as babás e levarem as crianças pra escola, Janete me leva ao seu quarto. Retira os brincos e os anéis, que parecem valiosos, e suas mãos calosas, como se fossem de diarista, guardam-nos num cofrinho sobre a cômoda.
Enquanto me distraio com os pequenos quadros e miniaturas de estátuas de Nossa Senhora aparecida sobre um pequeno santuário, ela vai pro chuveiro e logo retorna com seu pijaminho cor de rosa.
A lâmpada, de um avermelhado tímido, nos deixa mais bonitos. Ela se enrosca, estou meio acordado, meio dormindo, apanha meu sexo, ordeno para que aperte sem medo e ela massageia numa paciência comovente.
- Calma, meu bem, tenho meu tempo... Sou um cara de outro mundo.
- Eu sei, meu anjo, eu sei. Você não tá aqui por acaso.
O escroto, enfim, desperta.
Pelo que recordo, consegui a todo custo manter a ereção e levar Janete até o paraíso, mas imediatamente meu amigão desandou. Afobado, arranco a camisinha e massageio para que permaneça em pé. Esforço inútil.

Duas da tarde, ao me vestir, não acendo a luz pra não acordá-la. Ela ronca mansinho.
Se de madrugada, com aquele céu estrelado, tudo era magnífico, à tarde, quando me dirijo ao portão da saída da boate com a cabeça latejando e pesando toneladas e num calor de trinta graus, sinto-me às portas do inferno.
Na rua, além do calor, há um trânsito infernal. Nada de passar um táxi ou motoboy. (Não chamamos um táxi porque deixei meu celular em casa, e a bateria do aparelho da Janete estava descarregada).
Carrego o moletom no ombro, companheiro aconchegante à noite, agora um estorvo, vontade de depositá-lo na primeira lixeira, não o faço porque é meu agasalho preferido.
Caminho em direção ao centro, que fica a uns dois quilômetros. Que crise do caralho, sou cercado por crianças, índios Caigangues, com suas cestinhas e outros objetos de artesanato. Merda, a essa hora deveriam frequentar escolas de turno integral. Esse país vai de mal a pior. Jovens senhoras vendendo doces e salgados e uns caras vendendo frutas e panos de prato e muitos outros trecos. 
Na parada de ônibus reparo numa morena de uns vinte e poucos, camuflada num shortinho, tudo lindo a pele das pernas e costas e o cabelão e os lábios carnudos e tudo o mais me arrepia. Não perco tempo, me aproximo e pergunto se o ônibus pra Vila Esperança já passou.
A garota não esboça reação, como se eu fosse invisível. Chego mais perto, ela acompanha o movimento de meus lábios e faz uns gestos e de sua garganta sai um grunhido incompreensível. Imediatamente uma senhora que está próxima diz "passou faz uns dez minutos". Dezenas de pessoas me olham espantadas. Encharcado pelo álcool, elas parecem sem vida, como manequins das lojas. A única coisa que me passa pela cabeça é descer do ônibus perto de casa e tomar um café com leite, bem adoçado.
O lar me aguarda no lugar de sempre. Misturo o café, o leite em pó, apanho um pote e coloco três colheradas das grandes, só pra repor a glicose. Agito tudo com a colher e dou aquele gole. Puta que pariu! Em vez do pote com açúcar, eu apanhei o pote com sal. Caramba, mal deu tempo pra correr até o banheiro e vomitar.
Dou um stop diante do espelho. Do outro lado um ex-adolescente com cara de padre diz "a partir de hoje nascerá um novo homem". Ele ri até não mais.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...