quinta-feira, 14 de maio de 2020

As vozes das garotas zumbiam como vespas assassinas



À tardinha eu ia até a casa de um amigo apanhar uns pratos de comida congelada que ele e sua mulher fazem, almôndegas e lasanhas e empanados e massas, muito saborosas, eu moro sozinho e o futuro é imprevisível e nessa época seria terrível não ter comida para o dia de amanhã, e eu preciso estocar congelados e arroz e feijão e produtos de limpeza e papel higiênico.
Bah, de novo esqueci de comprar sabonete.
Vislumbrei o primeiro bar e de uma mesa Dom Carlone e o Beiço me chamaram, oba, alguém vai patrocinar umas biritas.
Antes de atravessar a rua um letreiro infeliz ergueu a mão: Stop! Assim, bem assim, tu não vai a lugar nenhum!
Olhei para os lados, o trânsito e as pessoas seguiam seu curso, a porra do letreiro era um mané e não sei por que eu estava há uns quatro dias sem tomar banho.
Algumas horas no bar, bebida à altura da minha sublime retórica e minha inesquecível companhia.
Caprichei nas rimas e métricas e metáforas e figuras e conceitos e aliterações e dicção e entonação vocal.
O álcool pegando e a memória falhando, daí a pouco os FDP falaram Todo mundo é poeta, tanta gente é melhor do que tu. Cadelão, por que não te matas?
Lembrei dos pratos congelados e do casal de amigos e deduzi pela hora que eles estavam impacientes como pedras e com muita raiva e então deixei pra lá.
Retornei ao lar, de madrugada, e tropecei e deslizei na lama, choveu tenho quase certeza, acho que errava o caminho, e eis que uma orquestra perfilou-se diante de meus olhos e tocou e tocou, eu identifiquei, era Wagner e eu exclamei Puta merda! 
Fazia muito tempo que não me achava no direito de perguntar se era feliz.
Minutos depois a música ficou chata e repetitiva e eu chorei como um bebê e implorei Cadê a Ave Maria do Schubert? Cadê cadê?
Fui em frente e vozes de garotas zumbiam como vespas assassinas enquanto acariciavam minhas orelhas:
Meninas, não é verdade que o Cadelão é um babaca escroto?
Meninas, não é verdade que o Cadelão é um sujo?
Meninas, não é verdade que por onde ele anda deixa um rastro de lama?
Segui meu caminho, eu me conheço e tenho o céu por testemunha e a rua deserta e a lua e as estrelas sorrindo só para mim. Revirava os bolsos à procura das chaves, Cadê? Cadê?
Enquanto isso os astros riam e assopravam em coro: Veja bem, bobinho, tanta gente leva uma vida mais interessante do que tu.
Pensei ficar calado, mas protestei: Cretinos, NUNCA ESTIVE TÃO LÚCIDO, sei mais do céu e do inferno e das coisas da terra do que vocês!
Tentava lembrar se tinha cachorro ou gato para dormir comigo e para provar que alguns seres gostam do poeta.
Abri a porta e deslizei para dentro da sala e uma voz grave me fez recuar: O mundo gira, Cadelão, vidas se gastam e tu aí escalando telhados e poluindo o planeta com esse bafo de príncipe.
Botei as Bachianas brasileiras do Villa Lobos pra tocar. Estava uma bosta. Botei um blues instrumental. Estava uma bosta. Juntei toneladas de roupa suja e botei a máquina pra funcionar e fui tomar banho.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 12 de maio de 2020

Pensava coisas grandes enquanto o sujeito devorava um pastel feito um porco



Agora os bares quase vazios me acolhem
como se eu fosse a encarnação de uma dúzia de alegres amigos.
Agora os olhares despertam a curiosidade
irradiando mais vida
e isso por causa do medo.
Agora me sinto em casa
coçando o saco e fazendo epifanias.

Também sou escritor de Facebook,
catando assuntos que viralizem e me rendam bons likes.
Sonhos e traumas e fantasias da infância e adolescência ressurgem.
Dá vontade de fazer terapia pra enfrentar os enxeridos id e superego.
Estudo guitarra e baixo e me transformo num quase...
músico e compositor e letrista.

Agora leio poemas de comerciantes e granjeiros e veterinários e engenheiros.
A "esquecida" pergunta sobre o sentido da vida voltou.
Também o enigma ou mistério que significa morrer.
O desconhecido.
O fim de tudo.
O grande amor desejado.
O grande amor perdido.
E dê-lhe poemas e pequenos míseros contos.
E dê-lhe crônicas e relatos de viagens e aventuras.
E livros publicados nuns sites que brotam aos milhares
feito vermes nas latrinas.

Vejo agora que a humanidade começa a se enxergar diante do espelho.
Agora percebemos que secávamos por dentro
e então ficamos criativos, fazendo aquele prato,
pesquisando por horas sobre temperos nobres,
como o manjericão e a cúrcuma e outras especiarias.
Até refletimos sobre a rotina diária
de trabalho e tempo de lazer e descanso,
com deveres e, se possível, vinhos e Netflix e outros molhos
e de vez em quando o milagre da presença
de uma química no casamento.

Agora que nos tornamos poetas
damo-nos conta de que a musa semeia o vírus de sua beleza
cada vez mais afastada de nós,
e põe na vitrine de olhares
sua coleção de máscaras estilizadas.

Agora já nem sei se faz sentido perguntar
se é o todo que devora o nada
ou se é o nada que fode o todo.
Agora que o instinto poético ressuscitou,
percebo como a trintona e a quarentona e a cinquentona
ficam divinas com seus belos semblantes de pano e elástico.
Captei o verdadeiro sentido de minha quarentena:
os outros nem são mais de outro mundo.

Agora que o vírus flerta com minha dignidade,
não vejo mais graça em queimar boa parte de minha vida
tentando me conhecer.
Agora que não confio nas ideias messiânicas
e científicas e do senso comum,
penetrarei o miolo das coisas mais elevadas
e ejacularei minha indignação com tudo,
sonhando ser lembrado depois que partir.

Matutava essas coisas grandes num cantinho do bar
enquanto ali por perto um sujeito
devorava um pastel feito um porco.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 6 de maio de 2020

Se vocês não estão a fim, vou beber na minha ilha


- Apesar de principiante, tu não está totalmente cego. Até consegue sobrevoar essa névoa onde a manada dorme em berço esplêndido. Parece que tu é um dos poucos que não se desespera e corre em busca da redenção no final. Não me pergunte como fica o bem e o mal, Deus, o diabo, a salvação. Humanos falam demais e têm pouca sensibilidade, não compreendem os mistérios. Mesmo sem desespero ou esperança, talvez tu não tenha outra saída, senão também vendar os olhos e se jogar do alto, prendendo nas costas um paraquedas qualquer, imensamente frágil, despencando junto com a multidão. No desespero, pra fugir da insanidade individual, siga os demais, beba, relaxe, não te dobre pro sentimento de culpa. Teu ego tem essa mania de complicar tudo. Foda-se, ele, não precisa escolher sozinho, entre na fila e também caminhe rumo ao brete. Vocês estão acostumados com velhos clichês, como por exemplo "basta estar vivo" e "viver é muito perigoso". Daqui de cima, te garanto, a toda hora noto em vossos atos e hábitos o lugar comum de que "viver em rebanho é mais tranquilo".

Perplexo, analisava essa conversa e tentava adivinhar suas chances de razoabilidade. Aí, então, a voz do bichano metralhava noutra direção.
- Bobinho, só tu pode sobrevoar, imponente, o abismo. Afaste-se do rebanho. Retire a venda dos olhos. Tu pode levantar da mesa do bar depois de apenas uma cerveja. Tu pode escolher nem ir pro bar, e nem é porque tua garota te aguarda com seu amor incondicional e deveres e obrigações condicionadas.

  
Eu sabia que era impossível negociar com a garota um tempo e espaço mínimos. Eis uma luta cada vez mais paralisante. Mas como o mostrengo sabia disso?
 Estou perplexo com sua voz. Agora não aparece apenas de um rasante em campo aberto e depois de um ralhar estridente. O grito vem de todo e qualquer lugar, com diferentes tons, ora mais exaltados, ora mais calmos. Não sei se é sonho, ou se vem do alto e eu estou consciente e sóbrio. É possível, sim, que não esteja bêbado.
Eis uma de suas mensagens: "Eu sou o enviado, estou rastreando as cagadas de vocês, pessoinhas escrotas".
A compreensão embaralhou. Sei que não enlouqueci porque divago e ando em círculos, ora embretado pelo ceticismo,  ora pelo maravilhamento dessa novidade. (Me refiro à aparição da fera atrevida, criatura que visualiza nossas empreitadas de um jeito bem mais lúcido).
Minha percepção de como são as pessoas e coisas ficou mais aguçada, e isso não tem a ver com pó ou baseado.
Entendo vossa curiosidade sobre esse sujeitinho ousado. Também estou confuso.
Como saber se é correta a minha compreensão da realidade?
Se tanta gente delira, por que também não estou delirando?
Tenho quase certeza de que o bicho se aproxima para me aconselhar. Eu, um dos poucos interlocutores de que dispõe, que compreende sua angústia diante da grandiosa e quase impossível missão de reciclar as inutilidades diariamente produzidas por nós.
Não sei onde me classifico. Deu pane no meu cérebro.
Quero andar no mundo, dialogar, mas nada posso se a multidão não está a fim. Vou cuidar de minha ilha. Eis um bom motivo pra correr pro bar. São necessárias e suficientes algumas cervejas e poesia e uns capetinhas em volta, fazendo Tim-tim.

(B. B. Palermo)

sábado, 2 de maio de 2020

De novo ELE baixou das alturas



Aprendi com o filósofo Thoreau a meditar sobre a loucura da cidade, seu materialismo e artificialidade, e também a ter prazer nas caminhadas. O objetivo é me aproximar da natureza, de preferência aquela que menos sofreu interferência dos humanos. Caminho não para obter preparo físico, mas sim para encontrar inspiração.
Estava nessa de respirar fundo, inalando o ar "puro" e divagando sobre um monte de coisa, quando ELE de novo baixou das alturas. E foi logo dizendo: "Cadelão, aquela gorda bisbilhoteira falou mais coisas a teu respeito. Disse que tu tá igual uma barata que, depois de levar um pontapé, fica horas de pernas pra cima, se debatendo, desesperada pra voltar a ter o domínio da SUA realidade. Velho, não ligue para o que ela diz. Olhe ao teu redor, tu tem uma vida boa, embora simples, mas tem combustível e garotas pra pelo menos olhar e sonhar. Tu pode ser um bêbado devasso, mas teu semblante e o caminhar são leves, diferentemente desses indivíduos com sua pança de refri e comilanças nervosas e mil e uma preocupações e deveres e papéis sociais e muitos negócios e muita grana e nenhum propósito sublime na vida, apenas trabalhar e acumular. Meu, sei do teu sonho de ser muito lido e famoso. Tu quer mesmo isso? Então vai por mim. Nas tuas histórias, não confesse as coisas boas que tu fez na vida. Ninguém vai se interessar. Conte sim, em de-ta-lhes, as coisas mais sórdidas e sujas que tu fez e viu por aí, esse povo vai se deliciar e lambuzar de tanto ler e reler e pedir bis. Antes de subir, só mais um conselho, pra ti e teus amigos: fumem uns baseados, viajem... É bom pra relaxar... é bom pra dormir".

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Malditos, malditos, malditos!




Caminhava por aí mastigando os motivos pra esses putos não liberarem os 600 pilas, tô cheio de tanto ovo, frito e cozido e estrelado, meu crédito nos bares está por um fio, malditos, malditos, malditos! Gabinete do ódio, corvos do Centrão, oposição barulhenta e desorganizada feito Torre de Babel, só falam as tais merdas das obviedades, nada é sério nesse país, um governo babaca e ignorante que nem consegue matar minha sede de andarilho. A única verdade é a Janete, seu puteiro caindo aos pedaços traz a dignidade que não vejo em outro lugar.
Pisoteava essas implicâncias quando um urubu num voo rasante cagou na minha cabeça. Em seguida garganteou sua visão de cima, a respeito da realidade das coisas daqui debaixo. "Cadelão, uma capivara raivosa, que vive fazendo dietas da internet, me contou que tua vida não vale nem 600 pilas. Que a carniça do governo tá blefando com uma multidão de miseráveis como tu, e ela garantiu que isso é só o começo. Tu sabe o que mais a gorda falou? Que tu não tem serventia, tu é nada mais nada menos do que um rato que serve de cobaia pra esses pilantras de laboratório testarem uma vacina pro Covid 19 e faturarem bilhões. Mas fique tranquilo, tu é mais um dos 90% de pilantras dissimulados que ela conhece, isso, não importa a ideologia, que posam de santos nas redes sociais, mas ao olhar de perto são um bando de filhos da puta. Tô caindo fora, Cadelão, preciso voar bem alto e subir e subir e me purificar dessa carniça que é o lixão a céu aberto chamado mundo que tu vive. Ah, tu faz bem em se proteger dentro da bolha que tu nomeia de 'visão poética de mundo'. Inté, meu poderoso inocentinho".

(B. B. Palermo)


terça-feira, 28 de abril de 2020

Pega leve, Jesus


Estou na avenida e uma velhinha emparelha do meu lado e sorri e me "reconhece" e diz num verbo atropelado que sofre muito se sair de casa, "eu não consigo andar direito e não sei pra onde vou com essa máscara". Fitei-a desconcertado, e ela: "Da última vez que Jesus falou comigo ele disse 'ainda hoje serás um anjo ao lado de meu pai'".

Inventei uma desculpa qualquer e saí pela tangente e entrei no primeiro boteco e vi que Jesus estava comigo, com aquela cara de Beatle George,  e então falei "meu, tu é muito sacana, pega leve com essas criaturinhas ingênuas e apavoradas com a bosta desse vírus".

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Morte - passagem de um estado para outro...


DÚVIDA
Velha governanta do filósofo Descartes; avarenta e pechincheira, desconfia de tudo e de todos, menos dela.

GUERRA
Método Prático de Geografia.

MORTE
Nada de maior; simples passagem de um estado para outro - assim como quem se muda do estado do Rio Grande do Sul para o estado de Santa Catarina...

POBRES
Espetáculo predileto dos ricos.

RICOS
Espetáculo predileto dos pobres.

FRASES QUE MATAM
- Mas como você está bem conservado!

(Mario Quintana - Caderno H).

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Máscaras, máscaras, máscaras



Já nem sei se ela é personagem ou de verdade.
Sei que a dona da verdade estrangula meu ego:
- Cansei de apostar em você!
-Tu sabe que levo a sério o que tu promete.
- Agora já nem sei mais...

Como tu vai sair desse labirinto
e quebrar o cadeado dessa gaiola, Cadelão?
Ah, pois bem, tu corre e se refugia no bar... Bonito!

Dobro a esquina e sigo pela avenida e vejo rostos sérios,
nada de narizes e bocas, só máscaras, mascaras, máscaras.
Faço minha parte. Coopero com a ordem social,
guardo num saquinho que trago no bolso uma máscara preta e uma branca.
Testei antes de sair de casa e adorei o cheiro do pano novo,
e a senhora da loja foi gentil:
- Eu não lavo com água sanitária, esfrego com água e sabão de glicerina,
e o resto deixo por conta do sol.
Ao me despedir alcançou-me álcool-gel e eu senti um calafrio,
meu nariz farejou doses de uísque.
As pernas seguem pela avenida, enquanto a consciência fica presa
aos mandamentos da Tininha.
Ao cruzar por pré-adolescentes com seus fones de ouvido
me vem uma lembrança,
a vontade que sempre tive de saber os nomes dessas criaturas.
Um nome tem seus códigos, inclusive o desejo dos pais que o escolheram.
Penso em Virgília e Capitu e Marcela.
Penso nessa galera do Machado de Assis.
Sei, o nome marca o leitor tanto quanto o perfil psicológico do personagem.
Tento me colocar no lugar de Brás Cubas.
Esse soube contar, depois de defunto, a vida
enfadonha que teve.
Penso: qual dessas garotas tem o nome de personagens de nossa literatura?
Duas garotas correm, corpos atléticos, tênis confortáveis e estilosos.
Os nomes... Quero saber os nomes!
O meu amor, recordo agora, tem nome e apelido e muitos planos e desistências fáceis.
Fez umas corridas, insistiu pra que a acompanhasse, inventei uma desculpa,
acho que foi "não tenho pulmão, baby". Logo ela também desistiu.
Tinha seu ritual antes de flanar pela ciclovia.
Amarrava o cabelo e distribuía fartamente o protetor solar
e escolhia um dos seus quinze bonés maravilhosos.

- Tu é um insensível!
A frase ribomba por dentro e eu fantasio encontros com Sherazade,
contando-me aventuras grandiosas e maravilhosas de princesas e príncipes,
todos se redimindo de erros do passado através do amor.
É isso, uma contadora de histórias descongelaria meu coração.
Seria a pessoa certa para me salvar. Cadê?

Há um festival de máscaras que parecem ansiosas pra ter vida normal,
de cara limpa, sem medo de monstros invisíveis.
Apenas eu sigo devagar, atento a tudo, vou pra direita, vou pra esquerda,
vacilo, olho pra trás, sim, pareço bêbado.
Ando, paro, gesticulo em voz alta.
Diante de uma igreja fechada o padre diz à beata, outra ansiosa:
- As máscaras vão cair, igual as folhas deste outono.

Tininha espera o de sempre: que eu seja o cara que toda mulher e a comunidade sublima.
E assim ela me obriga a dirigir. E assim eu me mantenho quase sóbrio.
Rodamos de cabeça erguida, como convém, eu trocando as marchas, segunda e terceira, nunca a quarta ou a quinta, e ligando as setas e acelerando e pisando no freio como faz um verdadeiro líder.
Ela investigando o néctar da poluição desses ares incríveis do final de abril.

Estou perdido. Sou pobre e indeciso poeta, que prefere voltar a pé e sozinho para casa,
com cerveja suficiente para sentir a inspiração da noite e a alegria do crédito de uma semana liberado.
Nessas noites, acompanhado pela música barroca de Bach e dos blocos de papel e das canetas e sem a presença dela, sinto que o amor tem o momento certo para pulsar e correr na minha direção.
Foi o que lhe disse:
- Baby, não acelere esse calhambeque que é me reabilitar... Sou o que sou, sem uma vírgula pra tu regenerar. No momento certo, nosso encontro no jardim das almas vai florir. Não ligue pra esses obstáculos, são eles que nos vão aproximar.
Estou cansado de dizer pro meu bem:
- Guria, eu te ofereço poesia e filosofia e alegria e sexo razoável e tu me oferece juventude e energia... mais do que isso, tu atrai a explosão cósmica que é a essência do amor!
Eis o nosso embate. Tina de novo me leva a sério e ficamos bem por uma semana. Mas, é óbvio, eu preciso de um ventilador, mais do que isso, eu preciso de um respirador, quero uma UTI só para mim...
... pode ser o boteco mais próximo.

(B. B. Palermo)


terça-feira, 21 de abril de 2020

Uma lata de sardinha mais pão dormido



Naquela noite a inspiração e a Tina chegaram juntas, por isso não dei atenção. Pra Tina, claro. Fiquei anotando compulsivamente o que me vinha.
Daí a pouco...
- Meu, que papo foi aquele?
- Qual?
- Uma piranha te falou que não transava fazia muito tempo porque queria um amor e não apenas sexo.
- Han??
- Lembra o que tu falou pra ela, seu filho da puta? Tu disse que da transa pode nascer um grande amor... Mas tu é muito galinha!
- De onde tu tirou isso?
- Vi por acaso umas coisas no whats.
- Ah é? Quer dizer que tu chega aqui com mais uma qualidade: ficar mexendo no meu celular. Se aproveita só porque não sei colocar a senha.
- Imagina a putaria que ia rolar se tu tivesse uma senha.
- Guria, não pude fazer nada. Ela veio atrás. Essas criaturas bobinhas leem as histórias que invento e publico nas redes sociais e pensam que eu sou um bambambam.

Ela ia de um lado pro outro, parecia explodir. Então convidei pra tomar umas no bar.
- Vai sozinho, perdigueiro escroto. Fareja por lá alguma piranha. To sabendo que tu tá de olho num traveco que nem deve ser maior de idade. Disseram que é uma "guria" alta, magrinha, que desfila pelas ruas num short desse tamanho. Disseram que ele é linda. Eu que não vou competir com um ser andrógino.
- Andrógino? De onde tu tirou essa?
- Ah, tá, e quem não sabe o que é androginia?
- Hum... Interessante. Tu conhece "O banquete", de Platão. Fui eu que te falei sobre?
Nesse diálogo do Platão aparece uma narrativa para explicar o que é o amor, citando uns seres primitivos, os andróginos... A gente podia fazer um grupo de estudos pra ver o que o Platão diz sobre o amor. Guria, é um dos ensaios mais brilhantes sobre esse desgastado tema.
- Por que desgastado?
- Por... Porque caiu num lugar comum. De tanto a palavra "amor" ser usada com tantos diferentes significados, acabou ficando desgastada, virou clichê... Quanto à minha sexualidade...  Deixa de ser ingênua. Tu sabe que eu sou hetero. Não sou veado macho.
- Enrolando de novo. Conta outra.
- Sou cidadão do mundo, baby, amo rock e jazz e blues e outros ritmos. A vida é ritmo, meu bem. E o amor está em tudo. E sexo também é ritmo... sente só o pulsar do meu coração, doidinho por você.
- Tu, sempre se achando. Pesquisei o teu Lattes, seu cafajestinho. Necas de textos publicados, faltando às aulas e, por fim, demitido por conta do alcoolismo.
- Isso tudo é passado, baby. Minha praia agora é a literatura. E essa história de alcoolismo ficou pra trás. Fiz três anos de terapia, no CAPS. Tu sabe o que aconteceu no final?
- Não.
- Dei alta pro psiquiatra.
- Meu, tu fala isso tudo como se estivesse falando de outra pessoa, e não de tu mesmo!
- Meu bem, a vida é essa mistura de comedia e tragédia... Sorria!
- Seu estúpido! Insensível! E o pior é que fica dizendo pra todo mundo que é poeta!

Quando fui ao banheiro ela bateu a porta daquele jeito e se mandou.
Daí a pouco me dirigi até a estante pra apanhar a carteira e ir pro bar. Eu sempre deixo a carteira em cima dos livros. Não encontrei: merda, tenho certeza que ela escondeu minha carteira! Vou é devorar uma lata de sardinha mais pão dormido. Caralho. O que me sobrou foi dar um pouco de ômega 3 pra esse judiado corpo.
Gente, o que eu tenho de errado, pra ser assim tão incompreendido?
E o pior: o manquinho da pensão ao lado nunca ouviu Belchior. O puto só ouve música sertaneja, e a todo volume. Alguém aí acredita nessa lorota de aperfeiçoamento ético e estético da humanidade?

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Uma folha cheia de beijos com cinquenta tons de batom



Eu nunca sei se o cabelo dela está loiro ou castanho. Deve ser porque só tenho olhos pra aquele rabo sensacional. Ou porque meu tesão quer que ela seja loira. Sim, tem a ver também com minha condição etílica, mas isso é meu estado quase natural.
Demorei pra sacar que dentro dela habitam dois dogs. Isso, duas cadelas em conflito permanente. Uma shih tzu dócil e atenciosa e carinhosa, e uma pit bull indisciplinada e enlouquecida. Esses dois eus me obrigavam a planejar cada ação. E as suas várias explosões me indicavam o caminho.
É claro que eu adorava brincar com a dócil e carinhosa, mas ao mesmo tempo sentia que faltava algo, e isso deve ter relação com a busca por adrenalina. Assim: às vezes tinha vontade de aprisionar a pit bull num canil, mas aí ela me fitava com aqueles olhos. Primeiro chispando, e depois, aos poucos, serenando, e essa cena fazia a vara retesar no meio das pernas.
De qualquer maneira, ela era enigmática. Em muitas ocasiões rolava uma dificuldade pra decifrar suas mensagens e áudios que me enviava pelo Whats. Dizia: "Eu tenho o coração fechado". Isso me obrigava a demorados exercícios reflexivos, que demandavam, no mínimo, uma garrafa de vinho. Deus Baco me botava faceiro e então eu ligava pra ela e chutava opinião e ela chutava de volta, e estava tudo certo. Nos despedíamos com um "já estou com saudades" e "amanhã eu te ligo, paixão".
Gente, acreditando que agora estava no radar do amor verdadeiro, esses dias eu fui pra cama com dois litros de vinho na pança, duelando com a insônia e caindo na real: nosso papo foi muito barulho, como um carro de som anunciando uma boa nova, mas com pouca sinceridade. Jesus! Como chegamos a esse ponto?
Enquanto via na Tininha dois animaizinhos conflituosos, ela via no Cadelão um desajeitado e confiante mané perdigueiro. Isso, um excelente farejador de botecos onde jorrava uísque de segunda e vinho e cerveja. Mas não pensem que suas críticas faziam cócegas na minha autoestima. 
Como é mais cômodo falar dos outros do que de nós mesmos, adiantarei pra vocês uma coisinha: saquei que a guria se metamorfoseava, só pode, pela influência do pó. Ela sempre encontrava motivos pra se ajoelhar nas carreiras. Antes de uma prova pra obter carteira de motorista. Prova final de uma disciplina na universidade. Antes de ir pra balada. Na balada. No final da balada, ao retornar para casa, estando alegre ou frustrada.
Se estava em casa bebendo, esperando ela voltar de uma dessas festas, partíamos pra roleta russa, como mencionei na história anterior. Rolava uma discussão, eu alfinetava seus pontos fracos, Tininha incendiava e logo nos agarrávamos e dávamos aquela trepada inesquecível. Ao gozar, ela enfiava as unhas nas minhas costas e ombros e eu corria pro banheiro e o espelho mostrava o espetáculo do sangue escorrendo, diante de meus olhos aquelas unhas compridas e coloridas e bem feitas penetravam meu rosto feito de barro, aí o tesão maluco dançava, e o cheiro do sangue misturado ao seu cheiro de cavala galopavam. Corria pra cama onde ela me esperava, e logo estávamos brigando pela ponta no último páreo, e eu era o jóquei e dava uns tapas cada vez mais fortes nas suas ancas e garantíamos o primeiro lugar no final.

Já disse, uísque vagabundo altera meu estado de consciência. Devia ficar só na cerveja e um vinhozinho de vez em quando. Ontem a guria se comportou feito garotinha, isso, uma shih tzu toda afetuosa se enroscando no Cadelão. Imaginem, me presenteou uma folha cheia de seus beijos com cinquenta tons de batom. Não me contive e disse "meu bem, às vezes parece que tu é embalada por impulsos juvenis". Tininha se retesou, me lançou aquele olhar e eu pensei "hoje não vai ser arremesso de prato, vai ser de ventilador". Então o anjinho direcionou seu olhar para a mesa e apanhou umas coisas que eu tinha rabiscado. Decerto pensou que eu anotara umas ideias geniais. Amassou, calma e metodicamente, como se fosse cartesiana, e arremessou pra cesta do lixo. Porra! Foi um arremesso de três pontos! Apanhei a carteira e coloquei no bolso da calça, agarrei suas mãos, nossos corpos se roçaram, nossas energias vibraram, senti um tesão beliscando, era algo mais divino do que mundano, sussurrei no seu ouvido "eu também te amo"... e nos dirigimos, cambaleantes e esperançosos, para o bar do maneta.

(B. B. Palermo)


terça-feira, 14 de abril de 2020

Ela jogou contra a parede um prato Duralex que foi do enxoval de mamãezinha



Velho, tá complicado atravessar essa quarentena. Teoricamente quero me tornar sujeito melhor, menos corrompido, mas na prática a bebida fala mais alto.
Meus amigos de um posto de combustíveis deixam-me sentar num cantinho da loja de conveniência. Pulo um cordão de isolamento e me refugiu num pequeno espaço, sento num banquinho e escondo a cerveja e o copo atrás de uns objetos e faço de conta que escrevo, compenetrado, incríveis poemas e fascinantes ensaios.
A toda hora chegam os caras da POE, sei lá se indo ou se voltando do serviço, e é impressionante, eles não notam minha presença. A concentração se vai, o foco idem, como é que é, os cretinos não vão dar crédito pro poeta? Tu acha, maluco, que pra polícia eu sou invisível?
O sol atravessa as janelas do bar e a garçonete pede se eu quero que ela feche as cortinas. Não - respondo. É um crime não aceitar a companhia desse sol de abril. Além do mais, Baby, o deus sol, que nos observa e aquece e cuida, nos dá de graça vitamina D.
Em casa o tédio anda de muletas, e os cães do bairro ficam sem graça e latem por qualquer coisa e evaporam seu repertório, e eu me pergunto por que não tenho contemplado detalhes do que me cerca com o mesmo entusiasmo de outros tempos. Não posso esquecer de exercitar os cinco sentidos e multiplicar pelo menos por 10 o uso da imaginação.
Quando um ônibus dobra a esquina e bate de frente com meus olhos, tento rabiscar uma boa frase. Então o celular me desperta, Tininha envia uma mensagem. Merda, esqueci de deixar o aparelho no silencioso, não quero agora me preocupar com ela.
Daqui do meu cantinho visualizo o monitor do computador do caixa do bar, e na tela aparece o número 111. Bingo, vou apostar no Bicho. Aí a garçonete me lembra do isolamento, as bancas de jogo também estão de quarentena.
É isso. Restou-me apenas um jogo: roleta russa, com a Tininha. Regado com bom estoque de cerveja e paciência. Confesso que ela é a parte mais dolorida desses dias. Sua quarentena lembra as TPMs, e eu também fico pilhado com sua implicância, e então é aquela tentação, como aconteceu várias outras vezes, desejo partir pra uma DR.
Muito louca. É a mudança de rotina, quase não sai pra rua, nada de festas e outros programas com suas amigas, e depois isso: Tininha agarra meu calcanhar, bah, cara, não tenho escrito porra nenhuma, quero distância do teclado do noty, sim, como se o infeliz também estivesse contaminado pelo vírus. A doidona... e seus amigos. Eles não conseguem ter vida normal sem frequentar academia. Credo, não leia suas postagens  no Facebook. É cada coisa que as criaturas se envolvem, brincadeirinhas e polêmicas na política, por não suportarem o tédio do tempo livre.
Eu me pergunto: o que as amebas e os vermes e as bactérias e os vírus estão tramando nesse exato momento? Aposto que num século vindouro qualquer eles vão foder com os humanos. Sim, cara, com certeza eles estão se aperfeiçoando, enquanto os homo sapiens babacas, em vez de valorizarem e investirem na ciência, voltam seus lindos olhos para pseudogurus e pseudoteorias. Bah, cara, e quem consegue aguentar aquelas merdas, as tais das "teorias da conspiração"?
Rapaz, os "sapiens" dedicam boa parte da sua vida a um trabalho meio que escravo, repetitivo, mecânico. Eis o epicentro de suas vidas, tanto é que nos fins de semana, nas horas de lazer, enlouquecem os vizinhos com galanteios ridículos e música horrível a todo volume. Então, quando há a necessidade de se isolar por algumas semanas, longe da correria do trabalho e do comércio, eles não suportam a diferente rotina.
Caralho, lembrei agora dos cães, que foram domesticados pelos "sapiens" ao longo dos milênios, e essa sua "evolução" fez com que aceitem a condição de ficarem amarrados ou enjaulados em canis, como se esse fosse seu destino natural. Velho, onde foi parar toda a sua potencialidade? Pense no que os bichos e nós somos, e o que poderíamos ser.

Pra finalizar, criatura, nem te conto. Descobri que a Tininha tem uns cacoetes. Quando bebe e come uns salgadinhos ela tem vontade de palitar os dentes. Eu digo "Não!" e ela responde "Grrrrrr!". Aprendi com mamãezinha que isso é feio. E tem mais: esses dias exagerei no trago (que novidade) e, juro, quando ela se dirigiu à geladeira me pareceu que manquitolava, fiquei invocado, só faltava ela ter um defeito de nascença... Meu, insinuei uma sandice qualquer. Bah, a garota ficou furiosa, apanhou um prato que estava sobre a mesa e arremessou na parede. Era um dos pratos Duralex que ganhei de mamãezinha, isso, do seu enxoval, acho que da década de 70. Meu, pra quebrar um prato daqueles tem que pegar de jeito. Maluco, o prato virou farinha. Tá vendo só o que esse vírus de bosta tá fazendo com nossos nervos?

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...