domingo, 11 de agosto de 2019

Deby, eu só queria te amar


Decidi gravar minhas histórias e postar num canal, no Youtube.
Dei sorte de conhecer o Wolverine, um fortão de trinta e poucos anos, maluco e cachaceiro, mas com uma voz grave daquelas.
A primeira gravação foi no meu celular, lá em casa. E adivinha quem apareceu nesse dia, como se fosse um meteoro: a Deby.
Nervosa, ela ia de um lado pro outro, até que abriu o jogo, queria que a ajudasse a vender uma geladeira e um sofá que ganhou de um velhinho da cidade de Jóia.       
Fiz uma piada besta: 
- Mas o plantador de soja, Aquele, não liberou a mesada? 
Ela me encarou com os olhos chispando, e não disse nada.
Como não dei bola, Ela foi sendo possuída pelo capeta. O puto do Wolverine serviu-lhe um martini com gelo. Ela foi pro banheiro e saiu de lá num biquini desse tamanho. Pegou uma mangueira na garagem e apoiou num galho do abacateiro do quintal e ficou debaixo daquele jato, cantando umas boemias.
Qual é a dessa putinha? Hoje, quando me ligou, disse que ia gravar com o Wolve. Aí ela vem correndo e, o que é mais punk, vestiu esse biquini e fica se engraçando pra nós dois.
Meu amigo espiava a cena debaixo do abacateiro, e não me vinha outra coisa senão implorar “Wolverine, foco, seu maluco!”.
Pra ele, a gravação poderia ficar pra outro dia, o que valia agora era a bunda da garota.
Pensei: de jeito nenhum vou topar a sacanagem de sexo a três.
A água descia feito cascata e acariciava aquela bunda gostosa e Wolverini cada vez mais excitado.
- Velho, a tatuagem nas nádegas é demais!
- Volta aqui, filho da puta, vamos gravar essa bosta.
- Velho, aquele biquinizinho é demais!
Que merda. 
Parti pro plano B: convidei eles pra irmos até o bar do Geni. À noite meu time disputaria a semifinal da Libertadores contra um time do Equador.
Wolve e Deby sentaram juntinhos, de gracinhas e segredinhos, e eu fazia de conta que não estava nem aí.
Fodam-se. Hoje só quero saber de futebol e encher a cara.
Os dois ficaram naquele tititi e eu "não tinha" ciúmes. E o Geni me encarando, se eu de novo ia pendurar a conta.
Aí Ela falou:                                                                    
- Ele só me chama quando tá a fim de trepar.
Começou o jogo e logo meu time levou um a zero.
E ela:
- Cadelão é um egoísta. Não dá a mínima pro sentimento de uma princesa.
Meu time não acertava dois passes e não passava do meio campo. Deby partiu pro contra-ataque:
- Ele fica se achando, mas te garanto, é igualzinho a todo mundo. Óbvio demais.
Caralho, nosso jogador foi expulso. Pensei: Ela deixa de ser óbvia quando bebe, fode com o primeiro que aparece.
O time numa retranca danada, quase levou dois a zero.
Outra estocada da putinha:
- Eu já saquei qual é a desse bêbado escroto: tem medo de gostar de alguém e sofrer.
Nos acréscimos, meu time quase levou o segundo gol.
- Se o filho da puta começa a gostar de uma mulher, ele foge.
O juiz acrescentou mais dois minutos.
Aí Ela deu uma voadora e eu beijei a lona:
- Esse pau no cu não tem colhão pra admitir que gosta de mim!
Pendurei a conta, peguei o Monza e me escondi na penumbra de um barzinho qualquer do outro lado da cidade.
Quando Wolverine me ligou no início da tarde do dia seguinte, naquele tom de voz dramático, eu já sabia como a noite deles havia terminado.

(B. B. Palermo)

(* O título desta história é inspirado na música "Oh! Deby", da banda TNT).


sábado, 10 de agosto de 2019

ei, dolly - Bukowski


ela me deixou há 5 semanas e foi para Utah.
é isto, acho que ela se foi.
dias atrás saí para mandar uma carta para ela
e a vi sentada no banco da parada de ônibus,
era o cabelo dela lá
de costas
e todo peso desabou de novo sobre mim
apressei o passo e olhei para o seu rosto - 
era outra pessoa. sardas, nariz chato, olhos verdes,
nada, nada.

então segui pela Western Avenue indo de bar em bar
e voltei a vê-la na minha frente.
vi aquelas calças coladas, eu conhecia aquele rabo,
e lá estava aquele cabelo de novo,
e o jeito dela de caminhar,
apressei o passo para alcançá-la,
cheguei ao seu lado e olhei seu rosto - 
um nariz de índio, olhos azuis, uma boca de sapo - 
nada, nada, nada.

então havia uma garota num bar tocando piando.
não era ela mas quando o cabelo caiu de certa
maneira,
por um momento, era. e o cabelo tinha o mesmo
comprimento
e os lábios eram parecidos mas não os mesmos, e
ela me viu olhando-a enquanto cantava, eu estava
bêbado,
claro, ajudou a criar a ilusão, e ela
disse há alguma em especial que você queira ouvir?
Dolly, eu disse, e ela cantou - 

Ei, Dolly...

agora mesmo olhei e ela estava do outro lado da rua.
ela saiu do prédio do outro lado da rua
com um cara loiro e jovem e ficou lá parada de óculos
escuros,
e eu pensei, o que ela está fazendo do outro lado da
rua de
óculos escuros, e sua risada para mim atravessou a
janela
mas ela não me acenou e então entrou no carro com o 
jovem, era um carro novo, pequeno e vermelho, caro,
e eles seguiram na direção oeste. desta vez tenho
certeza
que era ela.

Bukowski. Do livro "Queimando na água, afogando-se na chama").

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Beber mijar paquerar




Garota, tudo bem você falar do pó e da sujeira na casa da fulana, das manias dos patrões e das conversas ríspidas entre familiares nos lugares onde você trabalha.
Em algum momento você precisa transcender. Pouco importa se você é diarista ou advogada ou empresária.
Você precisa subir, subir, e embarcar no sonho de Ícaro, nem que seja com um baseado dos bons.
Você precisa se inquietar e sacar que a vida não é só trabalho, fofoca, ruminar a todo instante os sete pecados capitais - que só os outros cometem, claro.
E, por favor, mantenha distância da TV e das novelas.
Sempre digo pro Beiço que a melhor hora pra mijar ao ar livre nos fundos de casa sem ser notado pelos vizinhos é quando passa a novela na TV.
Caralho, é batata, o povo simplesmente fica hipnotizado diante do aparelho. Eu podia andar pelado pela rua, eu podia plantar bananeira diante do salão da cabeleireira gostosa. Eu podia...
Não serei flagrado se estiver no ar o capítulo da novela. Cabeças imóveis, olhos vidrados e espantados pela performance da vilã. Nossa, as velhinhas quase desmaiam e as novinhas roem as unhas.
Cabeças paralisadas, como se fossem esculturas, mortas como muros ou grades. Início da novela, fim da novela. Porra, odeio essa magia rasteira, de telespectadores encantados. Danem-se se isso funciona muito bem. Foda-se a linearidade. Não estou nem aí se a fórmula é repetida porque sempre dá certo.
Em vez da TV, à noite eu boto uns caras pra tocar, tipo Zé Ramalho ou Bob Dylan ou Belchior ou alguns malucos do blues nacional. No início Eles estão devagar, mas é só aumentar o ritmo das lambiscadas no copo de cerveja que o talento deles começa a fluir.
Então lembro da amiga que mora na Alemanha, e esqueço do fuso horário, e mando e mando pra Ela os links das músicas dos caras. É que a garota diz que curte as loucuras do Cadelão, e eu curto seu signo e seus papos sinceros, seu cabelo e sua voz.
Mas nossos horários não fecham. Deus não é perfeito, limitou-nos ao fuso horário. Já disse pra Ele, Tua Física me decepciona, meu brother.  
Horas antes de começar meu tour pela cerveja Ela está entorpecida pela tequila. Chama-me no Messenger quando está de pijama e embriagada, e eu aqui apenas rabiscando meus escritos em copos cheios.
Manda seus áudios divertidos com aquela voz linda e eu percebo a alegria com que o álcool drena suas histórias. É Brahma Extra, é puro malte, é Raiska, é blues no Bluetooth e vídeos picantes no WhatsApp.
Grande amiga, embora nos conheçamos apenas no mundo virtual. Parece estranho eu sentir a necessidade de conversar com Ela. Tem a ver com o fato Dela um dia  ter comentado que se diverte pra caramba com as maluquices do Cadelão, e que suas histórias lembram de outro velho safado que Ela gosta, um tal de Bukowski.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 6 de agosto de 2019

O velho e a Patricinha



Deleitava-se fazia três dias com Patricinha. Não deu outra, acordou de madrugada sentindo dores no peito. Gritou pela filha, que mora na parte da frente do seu puxadinho. "Me ajude, minha filha, estou infartando!".
A garota mobilizou os próximos: irmãs, sobrinhos, genro, netos. Houve uma correria pra conduzi-lo ao pronto socorro. No clarear do dia os exames foram tranquilizadores. A pressão arterial estava normal, era apenas um possível início de pneumonia.
- Ainda não foi dessa vez - lamentou-se uma das filhas.
Certo dia vendeu-me um perfume que surrupiou da primogênita, a que Ele mais estima, e que frequenta a Assembleia de Deus. Bateu no meu cafofo com sua mochila e de lá retirou uma garrafa que estava nas últimas. Deu um gole e me empurrou o perfume, dizendo que eu poderia pagar aos poucos. No momento só queria uns trocados pra repor o estoque.
Todo dia sai com sua mochila às costas, cheia de trecos e, inclusive, a Patricinha. Gosta de um papo. Basta dar corda. Não gosta de mulheres velhas, apenas das novinhas. Aconselhei:
- Cuidado com o mês de agosto, ele costuma atrair os velhos pro cemitério.
Franziu a testa. Eu disse mais:
- Uma senhora idosa é o que o senhor precisa. Uma que faça sopa e aqueça as cobertas nas noites de inverno.
Refutou a ideia.
- Não quero mulher velha, elas soltam pum debaixo das cobertas. Eu gosto das novinhas.
Quando souberam da história do perfume surrupiado, as filhas me chamaram pra uma reunião. Me deliciei e, ao mesmo tempo, fiquei apreensivo. Prestarei atenção a todos os detalhes, da casa, de como se vestem, o jeito de falar e também como é a relação com o pai - pensei. Ao mesmo tempo, sou um estranho, mesmo sendo vizinho.
Elas contaram todos os atos ridículos (ou fiascos, se preferirem) do pai. Os empréstimos consignados para comprar presentes e ranchos nos supermercados pras novinhas, as putas. Enquanto isso, na sua casinha toda suja não tinha arroz nem feijão nem carne. Não trocava a roupa nem tomava banho fazia dias. E recolheu por aí meia dúzia de gatos que subiam nos móveis e dormiam com Ele e soltavam pelos por toda a casinha.
Chamou-me a atenção o fato Dele bebericar sua cachaça diante dos olhares enraivecidos das filhas. Carrego cenas semelhantes de minha infância, quando meu pai e tios embriagavam-se diante de meus olhos inocentes. Confesso que essas lembranças ainda doem, apesar de hoje eu beber todas.
Num certo momento a Patricinha, embriagada, perdeu o controle e rolou pelo chão. Meu herói curvou-se para apanhá-la, mas não a alcançava. Agachei-me e mostrei como se chega ao chão sem forçar a coluna. Aprendi com minhas idas e vindas a uma fisioterapeuta gostosa.
Então Ele rememorou seus tempos heroicos.                       
- Eu colocava sessenta metros de piso por dia. Sou forte, carregava tijolos o dia inteiro, e a garrafa de pinga sempre ali, ó.
E eu:
- Mas o senhor precisa de menos Patricinha e mais arroz, feijão, carne, ovos. Olha o mês de agosto. Ele pega pesado com os velhinhos enfraquecidos!
- Minhas filhas querem me internar numa clínica pra desintoxicação. Ora ora, eu domino a cachaça!
- Então por que o senhor não para?
- Mas já era pra ter parado - lamentou-se.
Com frequência vejo-o pelas ruas, um verdadeiro príncipe, de smoking e gravata e sapato social e aquele seu cheiro inconfundível de quem não toma banho há dias. Suponho que isso seja impulsionado pela sua última paixão: a Patricinha.

(B. B. Palermo)                                                                         

sábado, 3 de agosto de 2019

Por favor, Dona Flor, aceita teu marido de volta, aceita



Estava no bar do Telmo lendo jornal e bebendo algumas. Daí a pouco chegou um grupo de mulheres, duas delas com seus maridos. Um dos casais carregava um bebê de uns seis meses. Imaginem a operação envolvida pra se levar um bebê num jantar de amigos num bar, numa noite de inverno. Carrinho, cestinho, cobertores de lã, sacola com fraldas e mamadeira, etc., etc.
O brinde do reencontro foi pelo aniversário de uma amiga e, claro, com várias fotos para postar no Facebook.
Eu tentava escrever um poema para uma garota que trabalha numa confeitaria, perto de minha casa. Todo o dia queimo minha grana com sanduíches e doces, só pra vê-la se engraçar. Ela se exibe parecendo rir de minha cara mas, como me transformo num palerma quando me apaixono, não percebo nada.
O bebê choramingou.  A mãe falou pras amigas: “Ela não faz cocô há dois dias”. Disse uma outra: “Você precisa comer mamão. Essa fruta é laxante. Com a amamentação, isso passa pra criança. Vai fazer cocô logo logo”.
A mãe então lembrou de um episódio quando voltou a tomar cerveja, depois do período de gestação e da quarentena. “Fomos jantar fora. Tomei umas cervejas com meu marido. Em casa, antes de dormir, amamentei a nenê. Vocês não imaginam. Ela começou a rir que não parava mais. Pegou no sono às três da manhã!” Disse uma outra: “Criatura, você embebedou a criança”.
Como não tinha jeito de não ouvir o que conversavam, pedi outra dose pro Telmo. Uma das amigas foi até o carrinho e pegou o bebê no colo. “Nossa, parece chumbo!” A mãe disse: “Ah, não exagera”. “Dê pra ela meio comprimido de laxante. Logo, logo ela fica bem levinha”.
E foi assim que a inspiração ficou pra outro hora. Daí a pouco entrou no bar, meio desnorteado, um amigo meu de beber umas e outras em algumas espeluncas da cidade. Com aquela cara, pressenti que algo tinha acontecido. Fiz um sinal pra que bebesse comigo. Eu levo jeito pra psicólogo. Isso, gosto de escutar as pessoas contarem suas paranoias e tragédias, e o Flori me parecia com cara de trágico.
“Daí, meu amigo! Que cara é essa?” “Minha mulher meteu o pé na minha bunda”. “Putz... O que você aprontou dessa vez?” “Nada demais. Cara, tô casado há quinze anos. Juntos, construímos uma linda história. Temos nosso menino, o Pedro Geromel, e também um cachorro, o Cebolinha”. “Mas, assim do nada, tua mulher não ia te botar pra fora de casa”.
Então ele contou em detalhes o episódio que desencadeou a crise do casamento. Num sábado, depois do expediente, encontrou alguns amigos e decidiram conversar e tomar algumas cervejas. Estendeu-se, o dia passou rápido nesse sofrimento que é ir de bar em bar. A noite avançou, novos amigos, histórias de amores, festas e aventuras, e o MEDONHO esqueceu-se de voltar pra casa. Foi com a turma a um baile, num bairro da cidade.  Ele tentava me convencer, e concordei, de que essa fraqueza, por si só, não tem tanto poder para sacudir as bases da lei e da ordem do sagrado matrimônio. No dia seguinte, porém, na hora de colocar os fatos em panos limpos, meu amigo disse à esposa que chegou tarde porque havia sido convidado pro aniversário do filho de um amigo. Lá, o jogo de canastra invadiu a madrugada.
No baile Flori ganhou um prêmio. Nossa, Ele que nunca ganhou nada em sorteios, durante a vida toda! Era um frango assado, patrocinado por um mercadinho do bairro.
Dada a quantidade de cerveja que lhe subiu à cabeça, esqueceu-se completamente do galináceo. O baile foi um sucesso, e na segunda-feira pela manhã uma emissora de rádio anunciou os ganhadores dos brindes sorteados.
Pro seu azar, a esposa sintonizava aquela emissora, naquele instante.
Acusado de mentiroso e infiel, e pra dar uma resposta à altura dos anseios de familiares e amigos, Dona Flor botou a criatura pra correr. Arrependido, e morando de favor na casa de um parente, ele sente falta da esposa, do filhinho e do cachorro, sua pátria e porto seguro.
“Cara, fiquei tocado com tua história. Acho que isso não é motivo suficiente para acabar um casamento”. “Quando entrei no bar e te vi, fiquei pensando...” “No quê?” “Você, que é escritor, podia bolar uma carta pra convencer Flor a me aceitar de volta. Pode ser uma carta anônima”. “Hum, posso criar um pseudônimo”. “Faço um churrasco e ainda te pago meia dúzia de litrões se a carta convencer Flor a me perdoar...” “Fechado”.
No dia seguinte escrevi uma carta. Dizia assim:
Dona Flor, não necessito da sabedoria de um guru para afirmar que os dias atuais são muito perigosos.  Em cada esquina surge um anjo mau disposto a colocar minhocas em nossa cabeça, e levar nossos amores à perdição.
Cabe lembrar à senhora de que nem Flori, nem qualquer outro homem, funcionam como relógio suíço: certinhos, previsíveis, totalmente ajustáveis. Aliás, nem os homens nem as mulheres.
Para não ser acusado de machista, vou citar algumas frases ditas por mulheres, no livro “O amor de mau humor”, de Ruy Castro, com o objetivo de fazê-la mudar de ideia e aceitar seu marido de volta.  
Embora madame Stael diga que “o amor é a história da vida de uma mulher; e um episódio na vida de um homem”, convém prestar atenção no conselho de Dorothy Parker: “Conserve os dedos abertos... e o amor fica. Feche-os, e ele se desprende”.
Marido é coisa séria, dona Flor. Diz ZsaZsa Gabor: “Maridos são como fogo: extinguem-se se não forem atiçados”.
Quanto ao casamento, este nem sempre representa o paraíso. Diz Dra. Joyce Brothers: “O casamento não se compõe apenas de uma comunhão espiritual e de abraços apaixonados; compõe-se também de três refeições por dia, lavar a louça e lembrar-se de pôr o lixo para fora”.
Sem querer desanimar-te nesse sonho de manter reto o teu casamento, veja o que disse Helen Rowland: “Quando uma garota se casa, está trocando a atenção de muitos homens pela desatenção de um só”.
E para dividirmos as responsabilidades a respeito das dificuldades no casamento, diz Mae West: “Nunca pergunte a um homem por onde ele andava. Se não estava fazendo nada errado, não precisa de álibi. E, se estava, a culpa é sua, minha filha”.
 Dona Flor, Flori precisa muito de você. Tanto é que veio a público, como se esta carta fosse sua serenata e buquê de flores, para dizer-te o quanto te ama.
Depois dos puxões de orelha, o que seu homem mais precisa é de colo. Portanto, aceite-o de volta, abra-lhe as portas e acolha-o na segurança do teu abraço. Não se sinta humilhada; parafraseando François Truffaut, saiba que, no amor, vocês mulheres são profissionais, enquanto nós, homens, somos amadores.
Meu amigo colocou a carta anônima no correio dois dias depois. Antes do final de semana seguinte Flor o aceitou de volta, mas com algumas ressalvas, que ele preferiu não narrar.
Além da meia dúzia de cervejas e do churrasco no bar do Telmo, ele apresentou sua esposa ao autor da carta. Nesse momento tive consciência de minhas dores interiores... Quer dizer, gosto de ajudar a curar as dores de amores dos outros, mas não consigo ME AJUDAR. Por que será, hem meus amigos?
Ali, diante-daquela-flor-de-li-ca-dís-si-ma, fiquei louco pra narrar minhas leituras de Nelson Rodrigues, de que não amamos na presença, e sim na falta e blá-blá-blá... Porém... Ela disse que serei um escritor famoso. Então paguei mais uma dúzia de cervejas. Todos ficamos bêbados, cantamos abraçados e desafinados e fomos felizes por algumas horas.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 24 de julho de 2019

A dona do pó


A garota tirou copos e garrafas de uma mesa próxima. Uns sujeitos evaporaram fazia pouco.
- Não tem mais ninguém, né? 
- Não. Não sou ninguém.
Ela riu. Dei um longo gole e pedi outra cerveja. Minha alegria é intensa mas de tiro torto. É de quem está à margem dos grandes debates, em ciências ou artes ou política. Agarro-me ao instante, à presença da garota e seu sorriso, que não deve nada aos propagandeados congressos e simpósios e assembleias.
No meu canto, vibrando com a energia da garota, observo um sujeito que acabou de chegar, porte médio, cabelo e jeito de se mover meio estranhos. Me coço, o cara parece um suicida ou homicida ou pode estar decidido a matar a ex-mulher. Tento rosnar, como um pit bull enorme bem treinado, mas a razão cola a mão nos meus lábios e me convence de que não devo fazer nada. Ergo o copo e um clarão filosófico - que acolhe o verdadeiro sábio - me conduz ao centro do problema: como fazer para endireitar os indivíduos, já que trocar governantes não tem ajudado.
Enquanto fuço nessa porra de problema, minhocas engordam e ficam lerdas e mais samocas, como a pele e bunda e pernas e barriga e cérebro de certos homens e mulheres. Me preocupar com o indivíduo e a sociedade talvez ajude a esquecer as merdas que fiz. Mesmo que o monstrengo aqui se esconda atrás do velho clichê de que fez o que fez por amor.
Muitas e muitas vezes acordo no instante em que levaria tiros ou facadas de sujeitos desdentados e mal-encarados que são classificados como plebe. Eles dizem que estão cansados de acarinhar minhas cagadas, como o fato de ter trepado com uma garota que consideram sua. Otários, são muito valentões e pouco espertos, pois ainda acreditam que alguém seja de alguém. Nego e ganho tempo, nunca direi que ninguém é de ninguém. Porém, sempre perco o jogo. Os filhos da puta me deixam vivo e com sentimento de culpa. E sempre fazem questão de lembrar que minhas portas e janelas estão escancaradas. Basta uma turbulência do sono, numa noite qualquer, pra eles voltarem.
Desconfio que minha vida está sem propósito, como se fosse pacote de fraldas empilhado na prateleira da farmácia. Sei, sei, cus funcionam como válvulas de escape da civilização. A importância das fraldas está justificada. Quanto à minha importância pra humanidade, aí já não sei. Mas não me venham falar de suicídio.
Mastigava essas profundidades requentadas quando o Beiço sentou, com olhos e sobrancelhas e gestos e barba por fazer preocupados. Se saiu com essa:
- Sonhei que a torneira da pia destilava cerveja. Não lembro se era pilsen, ou puro malte, ou chope, lembro que o colarinho, no copo, estava do meu jeito. Pesquisei o verbete "cerveja" num livro dos sonhos. Desdobrei seus números e joguei no Bicho durante três dias, quatro vezes ao dia. Gastei uns quinhentos reais. De novo, não deu nada.
- Não desista, meu amigo. A sorte não avisa quando chega.
Conheço o Beiço há uns vinte anos. Sempre aviso, "devagar com o pó, você já perdeu algumas mulheres".
Marés sobem e marés descem, mudam as estações e o Beiço sempre recai.
Nesses dias nublados ouvi várias previsões, mas nenhuma como a Dele. A velhinha da fruteira disse: "Vai chover, minhas juntas estão doendo". Seu Amadeo, velho bebum frequentador do bar do Posto do Ganso, asseverou: "Amanhã chove com certeza. Meu joelho dói". 
Beiço não parava de coçar o nariz.
- Para de fungar, cretino!
- Cara, vai chover.
- Sim, a velhinha da fruteira e o seu Amadeo disseram que amanhã chove.
- Não, vai chover hoje.
- Bem, todos as previsões dizem que chove amanhã. Vi isso na internet.
- Capaz, Cadelão. Vai chover hoje, meu pó melou!
- Putz, maluco, teu pó é ruim.
- Capaz, é da dona do pó.
- Jesus Cristo! Ela vai melar é a tua vida!
- Nada. O marido tá preso por tráfico de entorpecentes.
- Hum... Eu não sei o que quero da vida. Mas quanto a você, eu sei...
- O quê?
- Uma bala na cara.
Ele riu com aquele seu jeito triste. Então a noite bateu à porta. Num poste, do outro lado da rua, uma lâmpada se esforçou pra acender. E logo apagou. E piscou e piscou, como se fosse cadela ansiosa pra entrar no cio. Fiquei preocupado. Pensei em como será o funeral do meu amigo. Ou o meu.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 23 de julho de 2019

O damo do cachorrinho




1.
Certa manhã Damo acordou com febre puerperal. Desejou colocar a roupa feminina mais bonita, sua cinta-liga e desfilar para seu cachorrinho. Superego interveio: "Liga pro Doutor Biza!". Damo não se conteve e gritou: "Liberdade!". O problema é que sempre obedecia seu senhor moral. Telefonou para o Doutor. Assim que foi atendido, disparou: "Doutor, preciso me livrar de uns fantasmas". Silêncio do outro lado. "Sabe, Doutor, não posso confessar, mas tenho uns pesadelos, estou caindo num abismo e é sempre o Cadelão que aparece pra me salvar". Enquanto narrava suas aflições, do outro lado da linha uma voz repetia "Hum... Hum...". Assim que desligou, desceu sobre sua cabeça uma tempestade de culpa. "Aiaiai... O Biza vai contar pra todo mundo... Você não devia ter ligado, sua estúpida! Guarda a tua verdade... Oh, céus, que droga de vida!".
2.
My friends, não posso garantir que isso de fato aconteceu. Só sei que nossos tempos são de acelerar o coração. Mulher quer ser lésbica, lésbica quer ser mulher. Mulher quer ser homem, homem quer ser mulher. Creio que uma das maiores fontes de infelicidade das criaturas que habitam esse planeta é tentar atravessar o abismo que separa o que elas desejam ser e o que precisam mostrar para os outros. No velho clichê shakespeariano, "to be or not to be".
3.
Consulta sempre adiada. Porém, nos encontros pelos bares, Damo escutava atentamente o Doutor, como se fosse um paciente no consultório. E numa dessas o Doutor alertou sobre a necessidade de se alimentar bem, de esquecer a paranoia de que estava engordando.
- Venha pro meu consultório. Vamos ver por que você não consegue comer. E esse medo de engordar... Cuidado, todo mundo pode achar que você está com AIDS. Ou anorexia.
Apenas uma observação, irmãozinhos: os amigos temiam ser analisados pelo Biza porque Ele podia desvendar A VERDADE. Ou contar pra todo mundo o que o paciente tal tem. Quase sempre relacionado com traumas de infância e adolescência, tipo irmão mais novo bater uma punhetinha pro mais velho, erguer a saia das irmãs ou primas ou tias ou expiá-las durante o banho. O problema, e garanto-vos que sou esperto nisso, é você encasquetar que tem o problema tal, como diagnosticou o Doutor tal... Oh, céus, será que vocês não percebem a doideira que é uns fazerem a cabeça dos outros, cambada de ridículos?
4.
No bar, as coisas iam nesse ritmo. Doutor Biza dizia:
- Se você evitar os excessos, tudo pode virar comida.
Damo se soltava:
- Uiiii! Comida... Adoro!
Diante desse cenário, eu me perguntava: "A exibida quer chamar a atenção de quem?".
Doutor Biza continuava:
- Além de você abrir o olho pra anorexia, tem que parar com essa mania de limpeza.
Saquei. Damo enche meu saco por causa dos azulejos encardidos do banheiro. Puta merda, só falta se oferecer pra fazer uma faxina lá em casa. Jesus Cristo! Quando foi que eu me fodi?
5.
Ontem à noite o prédio do lado de minha casa respirava música de sofrência. Então eu não sabia se o melhor era estar bêbado ou estar morto. Pensava essas coisas enquanto arrancava os pentelhos do saco. Fui despertado pela buzina de um carro que estacionou por ali. Doutor Biza estava animado.
- Feche a braguilha. Bote os sapatos. Vamos sair. Hoje é por minha conta.
A primeira parada foi no bar Ponto e vírgula. Bela espelunca,  o dono um mão de vaca que só encontramos nas novelas russas. O cretino logo rosnou: "Só tenho uma, estou fechando". bastou Doutor Biza deixar à mostra umas notas de cem e dizer "hoje não vamos pendurar", que o esdrúxulo baixou a guarda. "Pensando bem, libero umas geladas".
Claro que Biza enganava o tempo. Nosso destino era um inferno. Isso, aquele lugar onde ocorrem minhas observações morais mais frutíferas. O incauto diria: "Lá ninguém mente sobre si mesmo". Pobrezinho, ele não sacou que lá a verdade foi banida. O inferno só tem lugar pra quem sabe enganar e fingir e... conquistar pela farsa. Os experientes sabem disso. Se você é rico, finge pobreza. Se você é fraco, finge força. Se você é covarde, finge ser temeroso. O inferno não aceita nenhuma verdade.
Quando estou no inferno me sinto bem. Ninguém vai me esfregar a verdade. A verdade é um adolescente proibido de frequentar o inferno.
Caralho, vocês sacaram a profundidade disso?
O problema é que o adolescente insiste... e, quando o porteiro dorme, ele entra. Uma putinha no inferno custa caro. Mas o doutor Biza estava com tudo - grana e Kannjin.
Eis que se aproxima a primeira serva. Acertou o alvo:
- Como você passou por mim e não me viu?
Olhei aquela jovem, seios perfeitos, toda perfumada, pernas e bunda demais.
- Oh, meu bem, sou um velho rico, porém broxa. Te vi, mas só posso proporcionar uma chupada.
- Hum... Um velho com língua dura... Pague uns drinques e vamos pra cama, hoje você vai botar o cacetinho pra funcionar.
Ah, meus amigos, ela sabia que eu não era rico nem broxa. Me queria, mas pelo personagem. Seus peitos eram caídos e sua boceta, larga.
6.
Assim que chegamos na casa, Doutor Biza deu linha pros olhos, que logo fisgaram uma garota. Foi só pedir uma cerveja e mamar um gole, e lá estava ele massageando a coluna da princesa. Mãos daqui e dali, questão de meia hora a putinha disse "Nossa, tô me sentindo bem melhor... Você solucionou meus problemas ".
Logo logo eles foram pro quarto, e garanto que o Doutor teve excelente desconto no programa. "Ele é o cara" - pensei.
Fiquei ali na sala esperando o pó do amor começar a surtir efeito e jogando conversa fora com a veterana.
- Nossa, você escreve histórias? Bah, minha vida dá um livro.
- Sim, Baby...
Pensei : "A vida de cada inseto desse planeta dá um livro - e pensei mais - mas aí teremos o velho problema: muitos livros pra poucos leitores".
Três da manhã, estávamos nessa de papo e mamadas no sofá quando surgiu um serzinho com aqueles olhos faiscando. Puta merda... o porteiro dormiu? Jesus Cristo, um adolescente invadiu a casa!
- Cadelão, você não para em pé. Vou te levar comigo.
- Não! O Doutor me deu kannjin, eu preciso foder!
- Não, não, essa puta decadente não te merece, Ela é feia! Você quer enfartar?
Não pude deixar de pensar: "Se essa biba raivosa se vestisse de mulher, não duvido que eu até comeria".
A puta acreditou, como toda mulher da noite, que foi atingida no coração por um míssil. E partiu pro ataque. Estavam se pegando pelos cabelos, quando o cafetão berrou detrás do balcão:
- Meninas, briga não! Aqui é casa de respeito!
Eis que irrompe do quarto Doutor Biza, de cuecas. Dá um esporro e dois tapas no Damo.
- Vai embora. Cadelão tá comigo.
Doutor estava indignado.
- Essa espelunca não ter porteiro? Como permite a entrada de um adolescente? Se esse monstrinho sair do armário, nunca mais teremos paz!

(B. B. Palermo)

sábado, 20 de julho de 2019

Meus porres e filmes roncando no sofá às três da manhã



De novo esqueci de levar o Dicão pra passear, o pobre anda com o intestino preso, mesmo se fartando com aquela ração importada. Ontem escolhi um filme louco, a minha cara, bebi todo o estoque e dormi pesado no sofá. Filmes de sexo e violência, como os de Tarantino, estão no meu ritmo, uns seres fracassados, decadentes, irmãos de lutas e tombos mas não desesperamos.
Em condições normais de sede e de culpas, não me interesso por filmes. Mas na bebedeira, corro pro Youtube e aí é a repetição do mesmo, volto aos velhos enredos. Em horas normais ouço música clássica e (ainda) não vi a Namo de cara feia, criticando meu gosto musical, tipo "nossa, como você suporta essas músicas horríveis?". Se um dia isso acontecer creio que a relação já era.
Se Namo insinua uma crítica a respeito dos excessos da noite passada, desconverso. "Você reparou na quantidade de buracos pelas ruas da cidade? E as rótulas, meu Deus, a gente nunca sabe qual o comportamento dos motoristas!".
Merda, esqueci de trocar o óleo do carro e pedir pro mecânico averiguar as pastilhas de freio. A suada mesada corre perigo. 
Namo quer ser vegana. Encontrem-me nas gôndolas do supermercado, me esgueirando por entre senhoras bem informadas por nutricionistas, à procura de brotos e grãos e cereais e nozes e frutas secas. Está fissurada pelas proteínas vegetais, quer se afastar das malditas carnes que entopem artérias e abrem as portas para o câncer.
Deus do céu, como é difícil garantir a vida a dois e o ócio indispensável à criação, a chopeira transbordando e não perder de vista o jogo do bicho e de sinuca e a proximidade de alguns amigos ordinários. Como o trânsito nas rodovias, eu preciso de áreas de escape, senão o sapato fica três números a menos no meu pé. 
E esses malditos copos sujos. De nada vale a ótima cerveja se os copos estão sujos. E Namo não quer estragar as unhas postiças, e quando lavo a louça irrompe uma guerra na pia, é enorme o risco de algum prato ou copo espatifar.
Meus livros manchados de cerveja e de vinho, os marcadores de página são recibos de jogos feitos ou bilhetes rasurados com números que sonhei e que pretendo apostar. Eis a síntese da minha odisseia, ou falta de sorte, que seja. Jesus, parece impossível alcançar a sonhada emancipação financeira sem fazer parte do mercado de trabalho.
Para que a dialética do casamento funcione alguém deve ser ludibriado de vez em quando. Deixo espalhadas sobre a mesa anotações dentro de livros e dezenas de folhas rasuradas, que chamo de inspirações para poemas e histórias. Proibi Namo de botar as mãos nessas preciosidades, para não invadir a privacidade nem espantar a diva criação.
Enquanto assisto o jogo de futebol pela TV e remoo essas coisas, Namo faz seu tricô e me observa serenamente, com olhos afetuosos. Do nada, um pensamento me invade e entristece, coisas de quem anda se informando sobre as sandices do mundo: muitas tartarugas que se alimentam do plástico espalhado pelos oceanos e então elas morrem antes de completarem cinquenta anos.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Outra cama - Bukowski


outra cama
outra mulher
mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha
outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.
todos à procura.
a busca eterna.
você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…
após ela sair você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.
quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.
você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é meio-dia.
— outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.
você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.
você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.
(Tradução: Pedro Gonzaga)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...