domingo, 23 de dezembro de 2018
sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
terça-feira, 18 de dezembro de 2018
Lembro que ele...
Lembro que ele guardava
mágoas e praguejava e maldizia uns carinhas e umas fulaninhas, eles eram
"cheios" e elas umas exibidas que se achavam.
Lembro que ele usava a
expressão "cunhenhem", e significava algo como um "coitado",
um "samoco" ou um "sem noção".
Lembro que ele buscava
uma namorada que seria seu par perfeito.
Lembro que
compartilhávamos a mesa no trabalho, e ele se deixava encantar com as histórias
que eu inventava, de aproximação às garotas e fiascos e perdas e conquistas.
Chamava-se Edilson e
nada sei de seus pais e irmãos, quem está por aí e quem já partiu.
Mais do que as palavras
que saíam de sua boca, lembro que sua expressão facial refletia um sujeito
ansioso e agitado.
Lembro que vim do norte
do Rio Grande do Sul e que ele me instruía sobre os bares e boates e padarias e
puteiros, onde rolavam orgias e outras coisas que deviam ser evitadas.
Lembro que naquela
época não havia HIV e poucos usavam camisinha, e chato e gonorreia eram coisas
normais.
Lembro que não tínhamos
medo da morte e do futuro, que vivíamos o "Carpe diem", lição que aprendemos
com o filme "Sociedade dos poetas mortos". Lembro que a cidade tinha
dois cinemas e muitos filmes eram bons, e então assistíamos no domingo e, de
novo, na terça-feira.
Lembro que o Edilson
tinha temperamento explosivo e fazia cara feia para chefes e patrões e
professores "xiitas", mas era nosso amigo e aceitava piadas e
brincadeiras.
Lembro que ele dizia
que quando fosse pra sala de aula os alunos iam se foder com ele.
Lembro que no futebol
ele era pouco habilidoso e batia muito.
Lembro que ele sonhava
ter um carro e, assim, conquistaria as garotas.
Lembro que nas festas
ele enchia a cara e tinha soluços e crises de choro. Lembro que nessas horas
necessitava de muita proteção, como se fosse o caçula da turma, ou a criança
mais nova da família.
Lembro que ele lutou
durante anos contra um tumor no cérebro, e que eu estava distante, enrolado com
minhas tentativas e alguns sucessos e alguns fracassos e paranoias. E quando
ele partiu dessa lembro de ouvir a notícia, mas viajava de férias e, indiferente,
não fiz qualquer esforço pra levantar acampamento.
Hoje tento recordar em
que região do cemitério ele jaz.
Agora não é uma questão
de lembrar. Disso eu tenho certeza. O tempo é implacável. A indiferença para
com meu amigo, a falta de memória e os olhos fixos para os desejos mundanos,
tudo isso vai nos derrubar e deixar perplexos. O tempo nos leva de roldão,
embora digam por aí que pensar nisso é mera filosofia irreal e inútil.
(B. B. Palermo)
segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
São Borja, muita água e cerveja
Eram cinco e trinta da
manhã e eu caminhava por uma avenida de São Borja, em direção à estação
Rodoviária. Hospedara-me numa espelunca. É que decidi pagar uma diária menor
pra beber mais cervejas. Raciocinei que, exausto por passar o dia visitando
lugares turísticos da cidade, como o museu Getúlio Vargas e os barzinhos e
prainha na beira do rio Uruguai, teria um sono pesado e não seria necessário
muito conforto.
A primeira parte do
sono até que foi legal, apesar dos pernilongos. As três e meia acordei com uma
tosse estranha de um maluco, num outro quarto. Acho que a criatura estava com uma
bronquite das brabas. Aquela tosse fatídica durou até os primeiros cantos dos
galos, lá pelas cinco da manhã. Decidi levantar, tomar um banho e embarcar no
ônibus das seis e trinta.
O cara do hotel falou
que eu devia caminhar umas três quadras na direção oeste e depois dobrar à
esquerda e seguir sempre em frente, na avenida, até encontrar a Estação
Rodoviária. Era uma madrugada agradável, e o dia quase clareava. Eu contava os
quarteirões, só para ter uma ideia do caminho a percorrer. Eis que se aproxima
um sujeito de bicicleta. Vestia bermuda, camiseta e chinelos. Pelos movimentos
ondulantes da bicicleta saquei que ele voltava de alguma festa, bar ou jogatina.
Alheio aos perigos desse mundo, perguntei a ele se a Rodoviária ficava naquela
direção. Ele fez um gesto com a mão e disse que era só percorrer mais quatro
quadras. O cara desceu da bicicleta e se aproximou. Gelei. Veio à mente o que
disse dona Margarida, a benzedeira: Sempre que você perceber algum perigo em
algum lugar, saia logo dali. Mas ele apenas pediu umas moedas pra comprar uma
garrafa de cachaça. Moedas eu tinha de montão na mochila. Alcancei-lhe um
punhado, dizendo: Mas tu tá bebendo a essa hora, maluco?
Lembro que, em cada
esquina, os bueiros emitiam um barulho e um bafo que me pareceu incomum. Faziam
a sua parte, enquanto a cidade repousava. Eu me perguntava Pra onde vai tanto
esgoto, meu Deus Nosso Senhor?
Olhei para o céu, mais
a leste, e lá estava, radiante, a Estrela da Manhã. Do firmamento, a estrela me
protegia. Ou eu é que estava impressionado pela conversa que tive com dona
Margarida, uma das tantas benzedeiras da cidade.
Desejei visitar dona
Margarida depois de ler uma reportagem de um jornal de Porto Alegre, num
caderno de domingo. Preciso de um emprego, dinheiro, um grande amor, e uma
força me atraía para São Borja, sua terra natal. A casa, num bairro que abriga
o cemitério municipal, onde estão os restos mortais do Brizola e joão Goulart,
se esconde em meio à vegetação. Ao chegar, saía de lá um sujeito que me pareceu
transtornado. Disse-lhe que viajei com o intuito de conhecê-la, e ela foi
bastante simpática. Convidou-me para entrar e de cara senti uns arrepios, algo
totalmente diferente do que senti até então.
Ela riu de meu pouco
jeito com a mochila e moletom que carregava, não sabia onde largar as coisas,
mas se esforçou para que eu ficasse à vontade no interior do seu templo.
Mostrou-me as paredes abarrotadas de presentes que ganhou dos clientes, pediu
que virasse na direção da parede, de frente para o retrato do seu mestre, que
concentrasse nos pedidos, e começou a benzedura. Tentei concentrar e aquilo não
acabava nunca, captei meia dúzia de desejos, até me senti culpado por ser tão egoísta,
pedindo uma lista enorme de coisas. Ao mesmo tempo, prestava atenção na
quantidade de divindades que Margarida evocava.
A seguir pedi-lhe pra
ler meu futuro, dando as cartas. Eu só pensava em superar de vez meus fracassos
no amor e juntar uma grana.
- E se eu me apaixonar
por uma garota bem mais jovem, Dona Margarida?
- Meu filho, amor não
tem idade... não tem idade.
- Sabe, fiz muitas
cagadas com as mulheres. Tive muitas histórias, mas passageiras.
- Você já sofreu muito
nessa vida. Hora de sossegar... de sossegar.
Ao dar as cartas,
Margarida dedilhava o roteiro de acontecimentos presentes e futuros de pessoas
que me eram próximas. Tudo girava em torno do dinheiro, poder, saúde ou doença
ou morte, amor, paixão ou traição. Aquelas coisas que fazem nosso coração bater
mais forte ou mais fraco, compassado ou não, com vontade ou confiança, ou com
medo e desânimo. Não conhecia algumas expressões que ela usou, mas que significavam
algo como pessoas "fuxiqueiras" ou de "duas caras" ou
traiçoeiras, e que eu devia manter distância. Dona Margarida me mostrou outros
aspectos de como as pessoas convivem e se relacionam.
Mais pessoas aguardavam
pra serem atendidas pela benzedeira. Hora de ir para o centro da cidade. Estava
feliz com o encontro e tive uma fome danada. Pedi então para um taxista me
levar até o Passo, bairro que fica às margens do rio Uruguai, lugar turístico e
cheio de barzinhos, famosos pelo peixe frito.
Naquele horário, poucos
bares estavam abertos. Havia um senhor sentado diante de uma espelunca. Seu
olhar arisco, não se deixava enquadrar. Parecia querer decifrar minhas
intenções, para além de comer peixe frito e tomar umas cervejas. Depois de
preparar a comida e me servir, ficou o tempo todo enviando áudios pelo WhatsApp.
Seus papos giravam em
torno dos peixes graúdos que pescou, seu peso e o lucro obtido. As cheias de
todo ano que invadiam sua residência e que rendiam fartas pescarias. Pescava
dourados e pintados no quintal de sua casa.
Garganteava também da
criação e abate de ovelhas, galinhas e outros bichos. Seus olhos se iluminaram
quando pedi se conhecia algum hotel que permitisse o pernoite de alguma garota. Naquele momento estavam no bar
também alguns de seus amigos, e pareciam muito confidentes entre si.
bastou perguntar das
garotas e ele mostrou, pelo celular, a foto de uma pequena de dezoito anos, que
era sua garçonete. Falei Puxa, que ninfetinha, e... em poucos minutos ela
apareceu no bar.
Merda. Me vi diante de
um imenso dilema. Meu senso de justiça me impele a pagar bem as garotas,
considero fundamental a distribuição de renda, nem que eu passe fome, mas não
suportaria que o cretino do bar, gigolô mercantilista de margem de rio, ficasse
com a metade do valor do programa. Economizei na diária, tomei água de
torneira, pra poder pagar uma boa gorjeta pra aquele safado.
Baixou uma nostalgia
dos tempos românticos, onde os bichos eram mais respeitados - tinham algum
valor, além do econômico e de sua adequação a determinados pratos e comilanças.
Então era assim. Além das ovelhas e peixes e galinhas, o filho da puta negociava
uma loirinha de dezoito anos, com um bebê para criar. Ele disse que o programa
custava trezentos reais. Saquei que a metade, no mínimo, ficaria com ele.
Perguntei pro atendente
do bar da rodoviária se a água da torneira era boa pra se beber e ele respondeu
que na semana passada foram encontrados dois corpos no reservatório, mas que no
mais ela era boa. Corri pro banheiro e até pensei em vomitar. Mas uma
iluminação me disse que eu adquiri mais vida bebendo os mortos.
Fui o último a embarcar,
e o motorista, que olhou minha passagem, deve ter notado como eu estava pálido
e suando frio. À noite sempre reservo um copo d'água ao lado da cama, e vou
bebendo a cada vez que acordo pra ir ao banheiro.
(B. B. Palermo)
sexta-feira, 7 de dezembro de 2018
Encontrei Hellen numa parada de ônibus
Desenvoltura
de bailarina, cabelos curtos pintados num tom esverdeado, cor semelhante à dos
olhos.
Hellen
frequenta aulas de dança desde menina, estuda fotografia e pensa cursar
medicina.
Mas
Hellen não deve ter pressa. Ela tem dezessete anos.
Hellen
é minha amiga e fica à vontade para me dizer como é o seu jeito de ser. Com
frequência ela abandona suas escolhas e parte pra algo novo.
Hellen
é minha amiga, mas ficou ruborizada e eu fiquei ruborizado, pelo menos no
início de nosso papo. Mas isso sempre acontece nos encontros aleatórios, numa
parada de ônibus.
Prefiro
ônibus ao carro, me enxergo nos diversos olhares e, se não fosse na parada de
ônibus no centro da cidade, dificilmente me alegraria com aquele olhar da cor
do mar.
Estudar
em boas escolas, ser bem amparada econômica e afetivamente pelos pais, fazem
com que Hellen tenha um futuro promissor.
E
eu não posso reclamar, tendo essas fontes cristalinas que me inspiram.
Hellen
trouxe tantas novidades, e logo nos despedimos, acho que foi por isso que tive dificuldade
para acompanhar seu raciocínio, talvez ela falasse um pouco rápido demais, ou
porque navegamos em diferentes gerações, Hellen no limite da adolescência e a
meio passo da vida adulta, Cadelão pedalando na subida da meia idade.
Hoje
não tive um choque de realidade, mas sim de juventude.
Hellen
não precisa se estressar com doces e frituras, não precisa se resignar com meia
dúzia de folhas de alface durante o almoço, nem suportar adoçantes no café da
manhã.
Hellen,
o mundo se descortina diante dos teus olhos verdes - fiquei pensando depois,
mas não tive tempo nem coragem de dizer-Lhe.
Ser
amigo de Hellen desde sua infância, ser amigo dos seus pais, ser um poeta
fracassado, não impedem que eu tenha medo de tropeçar e despencar em direção ao
abismo. Mas com a imagem de Hellen assim tão viva, saber que Ela existe, tornam
o abismo uma tentação. Sim, acreditem, ele mora a meio passo do paraíso.
(B.
B. Palermo)
quarta-feira, 5 de dezembro de 2018
Ela é cheia de surpresas
Encontrei-a
na praça. Ela e seu filho mais velho, que
tomava
sorvete e escalava os brinquedos e que
fez
uma cena de ciúmes quando sua mãe me abraçou.
Toda
vez que a encontro é uma surpresa.
Não
a via fazia uns três meses.
Nesse
espaço de tempo noivou,
conheceu
outro que a fez rever o que sentia pelo noivo e
romper
com ele, engatar uma história com o tal sujeito,
que
logo meteu-Lhe o pé na bunda.
O
que mais me surpreende é o seu humor.
Ela
ri de suas loucuras. E isso é fundamental para a sua e
a
nossa saúde mental nesse cotidiano insensível.
"Segredei-Lhe"
que tenho passeado de um trabalho para outro e
bebido
sistematicamente e ela, mesmo sabendo de minhas fraquezas,
fez
uma cara de preocupação, empurrando-me os velhos conselhos.
-
Não tenho medo da morte.
-
É, mas se você depender do SUS, estará em maus lençóis.
-
Bom, o que não gostaria é de sobreviver a um AVC e dar trabalho pras pessoas.
-
Não viaja, Cadelão, não viaja.
Era
momento de partir.
Saquei
que logo a conversa descambaria pros lados de nossa história
que
nem bem começou e logo se desmanchou no ar.
Dei-lhe
um beijo afetuoso na testa,
desviei
do seu rosto, que explodia de vida e tesão,
e
segui meu caminho.
Recordo
que o entardecer vinha apressado,
e
a temperatura estava baixa para um dezembro aqui no sul do país.
Nosso
próximo encontro, se houver, vai trazer novas surpresas.
(B.
B. Palermo)
segunda-feira, 12 de novembro de 2018
Um Cão Apenas - Cecília Meireles
Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. E um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...
Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.
Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.
Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.
Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era o seu.
Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.
(Do livro Quatro Vozes, Editora Record.).
domingo, 11 de novembro de 2018
Laos: eu me preocupo com quem não lê - Fernanda Pandolfi
Deixa eu contar aqui: meu português não é bom. Não é. Sei pouco das regras. Crase? Odeio. Os porquês? Nenhum sentido. Concordância: bastante dificuldade. Esse texto que você lê agora está bonitinho porque a Gabriele Branco revisa ele para nós. Mexe aqui e ali e puxa minhas orelhas quando passo muito do limite. Mas aí você diz: ah, vá, conta outra. Como pode ter o português ruim e querer ser escritora? Como pode dizer que sabe nada e ter feito 23 acertos das 25 questões na prova de português da UFRGS? Lógica, meus amigos. A simples lógica. Quando aluna, eu não entendia como meus colegas podiam ter tanta dificuldade na matéria. Para mim, era evidente. Eu lia a frase, às vezes em voz alta, e entendia se fazia sentido ou não. Se encaixava. Interpretação, então? Puts, parecia zoeira. Só lia obviedades.
É um resultado da infância. Dos livros de pano que eu brincava na banheira ainda sem saber ler. Do “Uma História por Dia” que os meus pais liam todos os dias antes de eu dormir. Minha vó conta que por vezes, tarde da noite, ela cansada, tentava pular as páginas ou resumir o trecho do livro, mas não me enganava: “Tá errado, vó, volta!”. Era quase um jogral, tamanha minha ansiedade em entender as letras de uma vez por toda. Não fui prodígio, aprendi o bê-á-bá no tempo normal. E me agarrei às páginas que se abriam à minha frente. Às revistinhas da Turma da Mônica que chegavam mensalmente lá em casa e eu economizava para não devorar tudo na mesma tarde. Às coleções do Erico Verissimo, Monteiro Lobato e aos contos de fada que se empoleiravam na estante. E aí, numa crescente para Pedro Bandeira, Os Karas, a biblioteca da escola, Agatha Christie, Sidney Sheldon, e até as leituras obrigatórias de sala de aula – que à época eram chatas para caramba, mas eu encarava até o final, mesmo sem entender bulhufas (tchê, recomendem livros com temas que interessem aos pré-adolescentes). Foi assim que eu aprendi Português. Assimilei. Tipo os números de vocês.
Eu lia e via se o negócio era coerente ou não. As regras ficaram para depois.
Então vocês imaginam o meu choque ao me deparar com um país que ocupa a posição de número 18 dos lugares com menos acesso à literatura do mundo. O Laos. O dado atual mostra que pouco mais da metade da população vai à escola (61%) e, dessa parcela, a maioria só teve acesso aos livros didáticos ou textos entregues no colégio. Vamos calcular o quê? Menos de um quarto da sociedade pegou, cheirou, apreciou, folheou, dobrou uma orelha de burro para marcar uma página, sublinhou com caneta marca-texto, deixou para terminar o capítulo no outro dia. A experiência da literatura segue um desafio para o país. Livros são artigos raros, quanto mais livrarias e bibliotecas. Outra questão é pertinente: como consequência, quase não há autores na língua local. Quando os laosianos leem, recorrem à língua inglesa ou francesa. Ou seja, há também uma forte campanha em prol do ensino destes idiomas na região. Difícil.
Eu me preocupo com quem não lê. Não só pela questão do português, ou da gramática da língua que for. Livros são companhia, fuga, fantasia, miragem, poesia, amor, saudade, insights. Nestes seis meses na estrada, li uma média de um título a cada 10 dias. Se estou triste, então, mergulho de ponta-cabeça nos personagens, nas frases, naquele universo ali encadernado. Sou capaz de ficar horas presa no quarto do hotel, imersa, fechada, transportada. Quando terminei a saga de “A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, no Camboja, senti que um pedaço meu tinha ficado preso naquelas páginas, fiquei sozinha. Que loucura, né? Aí que me refiro. Por isso me preocupo. Tenho a impressão de que quem não consegue se conectar a um livro tem dificuldade de viajar. Não se permite criar, entrar em devaneios, imaginar pessoas, cenários e contextos.
Livros dão ideias. Por isso foram queimados em diversos países enquanto na repressão ou ditadura. Propagam magia. Bruxaria, mesmo.
Tenho sorte, por exemplo, de ter criado um Harry Potter bem diferente de Daniel Radcliffe na minha mente. Ninguém precisou me induzir a visualizar o personagem. Eu consegui desenhar ele na minha imaginação, com a ajuda de J. K. Rowling, óbvio, bem antes do cinema. Sei de quem tenha aliviado a depressão atrás das letras e frases bem formuladas. Eu uso o meio como remédio contra a solidão, o tédio, a insônia, a falta de inspiração. Por isso temo pelas crianças do Laos e penso o quanto aquela vida dura de um lugar carente de tanto poderia ser aliviada, em partes, por um emaranhado de sílabas. Talvez seja ingenuidade minha, mas me parece um antídoto simples para o veneno da realidade.
E você aí, não lê porque sim. “Não gosto”. A gente só não gosta do que não entende. “Não tenho tempo”. Mas passa horas jogando Candy Crush. “Tenho dificuldade de concentração”. Troca o livro ou o ambiente, provavelmente, você não se identificou. “Não quero”. Ok, aí estamos conversando. Entendo que existam outras prioridades, outros caminhos e aquela preguiça de imaginar. Dá um trabalhão invocar a criatividade e colocar o pé para fora do quadrado, mais econômico assistir séries em série. Mas, vem cá, se sobrar um tempo, manda os teus livros empoeirados para L’Etranger Books and Tea: P.O Box 148, Luang Prabang, Laos, 06000, e dê a chance para uma população carente de sonhar.
Outras maneiras de ajudar o Laos a ler:
Big Brother Mouse: O projeto já publicou cerca de 30 livros, a maioria por crianças que são treinadas por professores voluntários. Qualquer doação é bem-vinda – você pode também “patrocinar” um livro.
The Language Project: Auxilia as crianças a aprender inglês e monta bibliotecas em escolas e templos para incentivar a literatura. A maneira de ajudar é doar milhas áreas para bombar a lista de livros do projeto no Amazon.com.
(Zero Hora/revista Donna, 10 e 11 de novembro de 2018)
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
A princesa e o pirata – Rachel de Queiroz
FOI só alguns dias
depois do fatal piquenique em Paquetá que eles dois apareceram. A maré trouxe
primeiro o corpo da moça, logo identificado por causa do maiô de sarongue, todo
de flores amarelas. O dele apareceu mais tarde, a uns cem metros de distância.
Coitado, nem então ficaram juntos. Identificar não o identificaram
propriamente, que não dava para isso, tal o estrago feito pelos peixes. Mas se
quase de par com o corpo dela outro corpo aparecia, tinha que ser o dele, pois
não? No fim das contas, não se dera pela falta de mais ninguém, só daquele
casal.
A primeira vez que a
viu foi no baile da primavera, no seu clube de subúrbio. Estavam elegendo a
rainha do mês de maio, ela corria na frente do páreo. Afinal, se rainha não
saiu, por causa de uma dúzia de votos, saiu contudo princesa, teve seu trono de
veludo ao lado do trono maior, também ganhou brinde e também foi coroada. Ele teve
a honra de ser o seu par na hora da valsa real, que foi, como sempre, o Danúbio Azul. E quando a sentiu nos
braços, apertou-a como coisa sua e lhe disse no ouvido:
- Pode você só ter
chegado a princesa, e nem isso carecia de ser: para mim há de ser sempre uma
rainha...
Ela porém o afastou de
si, não zangada, mas dengosa, se ofendendo:
- Não atraca, seu
pirata, que isto aqui não é cais do porto.
Talvez falasse assim,
linguagem marítima, em homenagem à farda que ele vestia: a túnica cor de
sangue, a calça branca engomada, e o casquete matador, posto de lado no cabelo
repartido, com as fitinhas pretas tremulando no ar, aos rodopios da valsa. E
nem o par da rainha, o presidente do clube, tinha um décimo sequer do airoso
aprumo do par da princesa, - tudo de acordo com a ordenança militar: barriga
para dentro, peito saliente e olhar terrível.
Com tudo isso, não foi
dessa vez que a começou a amar e seu cativo se tornou, como se a ela
pertencesse de tinta e papel.
Foi no outro dia em que
estava sentado à toa no banco da praça e viu descendo do bonde um par de sapatos
desses que chamam de ballet, e umas
pernas de garrafa, e o joelho redondo, e a barra da saia estampada. Só então
levantou os olhos, viu-lhe a face e o lenço do cabelo, viu os olhos e viu-lhe
os brincos de arrecadas à portuguesa. E a boca tão pintada, que parecia uma
flor de papel pregada no meio do rosto, e o pescoço delgado saindo do laço da
gola, e a cinturinha fina apertada no cinto de oleado. Por fim, deixou de a
olhar assim, pedaço por pedaço, reconhecendo aquela cintura onde pusera a mão,
os olhos e o cabelo: fitou-a em conjunto e logo recordou quem era. Quem seria
senão a princesa do mês de maio?
E ao reconhecê-la
assim, foi como um cachorro de rua que encontra a dona e não quer mais se
apartar dela. Chegou para perto e se entregou. Disse tudo, ofereceu tudo. Princesa
tão perigosa há muitos anos não havia. Por ela diz-que dois malandros já se
pegaram a navalha, um chofer se suicidou com formicida, um pai de família
largou a família, três noivos deixaram as noivas, cinco estudantes sentaram na
praça e sete funcionários públicos deram desfalque.
- E eu – que poderá
fazer o triste de mim, princesa, que sou apenas um pobre naval apaixonado? Me matar
não posso, porque do vosso amor já morri. Matar outros – mas antes que deles eu
chegue perto, sei que o vosso olhar os matou. Sentar praça já sentei; dar
desfalque – como seria, se a mim não confiam nada? Largar família – ai de mim,
princesa, que me criei enjeitado, nunca tive esposa ou noiva; vós é que sereis
minha gente e meus amores, pai e mãe que nunca tive, filhos, sobrinhos e netos!
Princesa, deixe que eu amarre o cordãozinho do vosso sapato. Deixe que eu deite
no chão para você pisar. Maltrata, princesa, maltrata, que estás maltratando o
que é teu!
Assim falava o naval
apaixonado. A princesa, se o escutava, fingia que estava longe. E a bem dizer
fez tudo que ele mandava e depois fez muito mais: pisou, judiou, escarneceu,
desprezou – embora só moralmente, com o sorriso desdenhoso e a palavra de pouco
caso dita na ponta do beiço.
Como seu, só o aceitava
para maltratar, com outros saía, com outros dançava. Ele porém não a largava,
sempre a acompanhando, sempre a alguns passos no seu rastro, e se não o comparo
com uma sombra é porque sombra não sofre e o pobre sofria muito.
Afinal sucedeu o
piquenique em Paquetá. Nem uma vez ela o olhou durante a hora e meia da barca. Nem
uma vez lhe falou entre embarque e desembarque, e o passeio de bicicleta e
depois o banho de mar. Mas foi na hora do banho de mar que ele sumiu de repente
e voltou minutos depois remando numa canoa. Passou bordejando por ela, que boiava
na flor da água como uma alga amarela no seu maiô de cetim. Como se brincasse,
ofereceu carona. E ela, num capricho, aceitou. Quase virou o bote ao subir
nele. Ele ficou na popa onde estava e não a tocou sequer, procurando ajudar. Depois
puxou pelo remo, e a pequena embarcação se escondeu por trás da Pedra da
Moreninha.
O que se passou naquele
barco só Deus saberá. Os companheiros foram dar pela falta dos dois quando
desceram da barca da Cantareira. E assim mesmo pensaram que o par tinha se sumido
de propósito no meio da multidão.
O homem do restaurante
em Paquetá é que estranhou o seu bote aparecer emborcado. E como se disse no
princípio, só depois de vários dias é que os peixes e a maré devolveram os dois
banhistas.
(Do livro Quatro vozes. Editora Record.).
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