sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

São Borja, muita água e cerveja



Eram cinco e trinta da manhã e eu caminhava por uma avenida de São Borja, em direção à estação Rodoviária. Hospedara-me numa espelunca. É que decidi pagar uma diária menor pra beber mais cervejas. Raciocinei que, exausto por passar o dia visitando lugares turísticos da cidade, como o museu Getúlio Vargas e os barzinhos e prainha na beira do rio Uruguai, teria um sono pesado e não seria necessário muito conforto.
A primeira parte do sono até que foi legal, apesar dos pernilongos. As três e meia acordei com uma tosse estranha de um maluco, num outro quarto. Acho que a criatura estava com uma bronquite das brabas. Aquela tosse fatídica durou até os primeiros cantos dos galos, lá pelas cinco da manhã. Decidi levantar, tomar um banho e embarcar no ônibus das seis e trinta.
O cara do hotel falou que eu devia caminhar umas três quadras na direção oeste e depois dobrar à esquerda e seguir sempre em frente, na avenida, até encontrar a Estação Rodoviária. Era uma madrugada agradável, e o dia quase clareava. Eu contava os quarteirões, só para ter uma ideia do caminho a percorrer. Eis que se aproxima um sujeito de bicicleta. Vestia bermuda, camiseta e chinelos. Pelos movimentos ondulantes da bicicleta saquei que ele voltava de alguma festa, bar ou jogatina. Alheio aos perigos desse mundo, perguntei a ele se a Rodoviária ficava naquela direção. Ele fez um gesto com a mão e disse que era só percorrer mais quatro quadras. O cara desceu da bicicleta e se aproximou. Gelei. Veio à mente o que disse dona Margarida, a benzedeira: Sempre que você perceber algum perigo em algum lugar, saia logo dali. Mas ele apenas pediu umas moedas pra comprar uma garrafa de cachaça. Moedas eu tinha de montão na mochila. Alcancei-lhe um punhado, dizendo: Mas tu tá bebendo a essa hora, maluco?
Lembro que, em cada esquina, os bueiros emitiam um barulho e um bafo que me pareceu incomum. Faziam a sua parte, enquanto a cidade repousava. Eu me perguntava Pra onde vai tanto esgoto, meu Deus Nosso Senhor?
Olhei para o céu, mais a leste, e lá estava, radiante, a Estrela da Manhã. Do firmamento, a estrela me protegia. Ou eu é que estava impressionado pela conversa que tive com dona Margarida, uma das tantas benzedeiras da cidade.
Desejei visitar dona Margarida depois de ler uma reportagem de um jornal de Porto Alegre, num caderno de domingo. Preciso de um emprego, dinheiro, um grande amor, e uma força me atraía para São Borja, sua terra natal. A casa, num bairro que abriga o cemitério municipal, onde estão os restos mortais do Brizola e joão Goulart, se esconde em meio à vegetação. Ao chegar, saía de lá um sujeito que me pareceu transtornado. Disse-lhe que viajei com o intuito de conhecê-la, e ela foi bastante simpática. Convidou-me para entrar e de cara senti uns arrepios, algo totalmente diferente do que senti até então.
Ela riu de meu pouco jeito com a mochila e moletom que carregava, não sabia onde largar as coisas, mas se esforçou para que eu ficasse à vontade no interior do seu templo. Mostrou-me as paredes abarrotadas de presentes que ganhou dos clientes, pediu que virasse na direção da parede, de frente para o retrato do seu mestre, que concentrasse nos pedidos, e começou a benzedura. Tentei concentrar e aquilo não acabava nunca, captei meia dúzia de desejos, até me senti culpado por ser tão egoísta, pedindo uma lista enorme de coisas. Ao mesmo tempo, prestava atenção na quantidade de divindades que Margarida evocava.
A seguir pedi-lhe pra ler meu futuro, dando as cartas. Eu só pensava em superar de vez meus fracassos no amor e juntar uma grana.
- E se eu me apaixonar por uma garota bem mais jovem, Dona Margarida?
- Meu filho, amor não tem idade... não tem idade.
- Sabe, fiz muitas cagadas com as mulheres. Tive muitas histórias, mas passageiras.
- Você já sofreu muito nessa vida. Hora de sossegar... de sossegar.
Ao dar as cartas, Margarida dedilhava o roteiro de acontecimentos presentes e futuros de pessoas que me eram próximas. Tudo girava em torno do dinheiro, poder, saúde ou doença ou morte, amor, paixão ou traição. Aquelas coisas que fazem nosso coração bater mais forte ou mais fraco, compassado ou não, com vontade ou confiança, ou com medo e desânimo. Não conhecia algumas expressões que ela usou, mas que significavam algo como pessoas "fuxiqueiras" ou de "duas caras" ou traiçoeiras, e que eu devia manter distância. Dona Margarida me mostrou outros aspectos de como as pessoas convivem e se relacionam.
Mais pessoas aguardavam pra serem atendidas pela benzedeira. Hora de ir para o centro da cidade. Estava feliz com o encontro e tive uma fome danada. Pedi então para um taxista me levar até o Passo, bairro que fica às margens do rio Uruguai, lugar turístico e cheio de barzinhos, famosos pelo peixe frito.
Naquele horário, poucos bares estavam abertos. Havia um senhor sentado diante de uma espelunca. Seu olhar arisco, não se deixava enquadrar. Parecia querer decifrar minhas intenções, para além de comer peixe frito e tomar umas cervejas. Depois de preparar a comida e me servir, ficou o tempo todo enviando áudios pelo WhatsApp.
Seus papos giravam em torno dos peixes graúdos que pescou, seu peso e o lucro obtido. As cheias de todo ano que invadiam sua residência e que rendiam fartas pescarias. Pescava dourados e pintados no quintal de sua casa.
Garganteava também da criação e abate de ovelhas, galinhas e outros bichos. Seus olhos se iluminaram quando pedi se conhecia algum hotel que permitisse o pernoite de  alguma garota. Naquele momento estavam no bar também alguns de seus amigos, e pareciam muito confidentes entre si.
bastou perguntar das garotas e ele mostrou, pelo celular, a foto de uma pequena de dezoito anos, que era sua garçonete. Falei Puxa, que ninfetinha, e... em poucos minutos ela apareceu no bar.
Merda. Me vi diante de um imenso dilema. Meu senso de justiça me impele a pagar bem as garotas, considero fundamental a distribuição de renda, nem que eu passe fome, mas não suportaria que o cretino do bar, gigolô mercantilista de margem de rio, ficasse com a metade do valor do programa. Economizei na diária, tomei água de torneira, pra poder pagar uma boa gorjeta pra aquele safado.
Baixou uma nostalgia dos tempos românticos, onde os bichos eram mais respeitados - tinham algum valor, além do econômico e de sua adequação a determinados pratos e comilanças. Então era assim. Além das ovelhas e peixes e galinhas, o filho da puta negociava uma loirinha de dezoito anos, com um bebê para criar. Ele disse que o programa custava trezentos reais. Saquei que a metade, no mínimo, ficaria com ele.

Perguntei pro atendente do bar da rodoviária se a água da torneira era boa pra se beber e ele respondeu que na semana passada foram encontrados dois corpos no reservatório, mas que no mais ela era boa. Corri pro banheiro e até pensei em vomitar. Mas uma iluminação me disse que eu adquiri mais vida bebendo os mortos.
Fui o último a embarcar, e o motorista, que olhou minha passagem, deve ter notado como eu estava pálido e suando frio. À noite sempre reservo um copo d'água ao lado da cama, e vou bebendo a cada vez que acordo pra ir ao banheiro.

(B. B. Palermo)                           


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