domingo, 4 de novembro de 2018

Um dia qualquer no centro da cidade


O cara na praça faz exercícios físicos naqueles 
aparelhos de merda que as crianças 
fazem de conta que são brinquedos.
Aparelhos estranhos, sujeito estranho.
Fita-me desconfiado, deve estar sabendo 
das cagadas que fiz,
nada tão significativo como acordos nucleares.
Logo adiante avisto uma barraca do SENAC
e uma garota me observa e sorri  
e propõe fazer meu teste vocacional.
Os cabelos e os lábios e os dentes e 
as sobrancelhas sintetizam anos de leituras de horóscopos, 
décadas de tentativas e erros
em busca da resposta sobre o meu destino.
Ai ai ai, o mundo é pequeno, o planeta dá voltas,
vem vindo uma senhora que comi anos atrás.
Vacilo, tento virar o rosto e ela não me reconhece.
Seus pés enormes são duas bocas de serpente
que ameaçam na minha direção.
Intriga dos deuses.
Os ponteiros do relógio digital fazem sua parte e
tudo volta ao normal quando passa um vendedor
com aquele carrinho tapado de cobertores e casacos de lã,
as rodinhas entoam poemas tristes, 
Hoje eu vou vender,
eu hoje hoje eu vou.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Flores, moedas, mortos e muito lixo


O bêbado do meu bairro mudou de estratégia
para conseguir algumas moedas para comprar cachaça.
Ontem trouxe uma planta para que eu cultivasse no quintal.
Era uma dessas flores, parecida com copo-de-leite.
Não cultivo flores, apenas algumas hortaliças.
Alcancei-lhe umas moedas e pedi que desse a planta a algum vizinho.
Hoje trouxe uma planta florida.
Deve ter arrancado do jardim de sua mãe.
Estava sem moedas, não abri a porta,
fiz de conta que não estava em casa.
A mãe frequenta a igreja regularmente e mantém as oferendas em dia.
Mães foram feitas para amar e sofrer.
Não é por acaso tantas orações e promessas.
Se ele esqueceu de botar a tampa no tubo do creme dental,
ela vai ao banheiro e o faz.
Nas semanas de abstinência devido ao uso do álcool,
e da insônia que bate à porta,
ela compartilha com o filho tarjas pretas e noites mal dormidas e
redobra visitas à igreja.
O filho, alto, seco, rosto sofrido, tem uns trinta anos e
aparenta ter uns sessenta.
Insetos do bairro alardeiam, mais indiferentes do que tristes,
que ele não passa desse ano.
Eles acreditam que o sujeito não deu certo nesse mundo.
Ao contrário, eles são os tais, com seu trabalho e esposa e amante e
novela e rotina cheia de crenças e pobre de novidades.

À tardinha abro a porta, vou à padaria buscar queijo e pães.
Havia uma planta no degrau da porta da frente.
Devo ser pouco espirituoso, mesmo assim um frio
atravessou-me por todos os quadrantes.
Percebi que as plantas que ele trouxe são as mesmas que parentes e
familiares e amigos levam para os mortos,
no feriado de Dois de Novembro.
O bêbado do bairro e sua mãe e o maluco que aqui escreve e
todos vocês circulamos pelas vias de um imenso formigueiro.
Não sei se os insetos que me rodeiam se perguntam sobre
quem estará presente daqui a alguns anos.
Como e o que estaremos fazendo?
Isso é o de menos.
O mais importante, para este inseto que vos fala,
é que a banana e a cebola e as peras e as batatas e o peito de frango e
o coxão de fora e a cerveja que bebo estão em promoção no Big mercado.
Enquanto o bêbado do bairro traz plantas para trocar por moedas para trocar por cachaça,
toda a biodiversidade que nos rodeia recebe nosso lixo diário.
Movimento desigual. Damos menos do que recebemos.
Quem sabe o sentido de nossas vidas, interagindo com a natureza,
seja produzir lixo, muito lixo.
Eis nossa missão número um.
E o álcool é mais uma válvula de escape para suportarmos o
fato de estarmos sufocados por esse lixo que produzimos.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Desapega, Cadelão



Não tenho humor para pisotear as flores
das árvores deitadas na calçada.
Não suporto contemplar por muito tempo a bola de fogo
no entardecer do fim de outubro.
Não creio estar preparado para enfrentar a semana que avança
e o exame médico e o defeito no carro e a dor de ouvido e
a alegria e mau humor dos vizinhos.
Sem vontade de ouvir rock ou blues ou Debussy ou Beethoven.
O dia está quente e por isso não usarei máscara ou maquiagem.
Estacionei tempo demais nesse lugar.
Hora de desapegar e juntar umas coisas e seguir.
Rodeado de amigos, porém solitário,
não me preparei para isso.
Baby, decifra-me os sinais.
Você sempre diz que é hora de virar a página.
E repete, e repete, Não é uma questão de idade ou experiência.
E foi assim que você quase me convenceu a jogar na fogueira
toneladas de versos bem intencionados, mas pouco criativos.
No final das contas eu me contive, ou foi aquele medo.
Esteja à vontade para sempre repetir Desapega, Cadelão, desapega.
Eu não fico chateado, juro.
(B. B. Palermo)

Peixe vivo



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Tão banal como uma folha em branco



O letreiro amarelado do bar
e os gritos vindos da mesa de sinuca chamam,
mas uma voz que vem de um resto de consciência
pede pra que volte pra casa.
Tenho medo de voltar.
Moradores do prédio vizinho rosnam,
e a imagem que me vem é uma faca
atravessando corpos na diagonal.
Garotas espalham orgias pela noite
e eu aqui melancólico.
Sei que tudo se reinicia
e sou livre e estou
rabiscando essas neuras.
Posso adotar um pet que me cuide,
posso adotar uma garota que me chame
para o café da manhã.
Livre, porém paralisado. Sim, sei que
posso fazer tantas coisas que ajudem a
suportar as armadilhas.
Pode ser um bom sinal o fato de achar engraçado
casaizinhos devorarem hambúrgeres gigantes.
Sei, sei, isso tudo é banal, inclusive a melancolia

de estar paralisado diante de uma folha em branco.
(B. B. Palermo)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Caneladas e chutões



Dou uma passada pelas redes sociais e 
observo como está o jogo político.
Criaturas de todas as idades se digladiam à direita e à esquerda, 
a maioria fora de forma com relação às regras da argumentação, 
barrigudas, cansadas, amadoras.
Um festival de voadoras e caneladas e chutões pro alto.
Mas seguem jogando.
Sinto que é quase uma obrigação, 
como se o mundo fosse acabar amanhã.
As pessoas estão com raiva, 
inclusive alguns poetinhas.
Parodiando Bukowski, é a única coisa em que são bons.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...