quarta-feira, 18 de maio de 2022

Uma deusa de primeiro escalão

- Velho, por que ela não é igual a todo mundo?

Curte música clássica e rock progressivo...

Bem que ela podia curtir as baladas que a gurizada frequenta,

aquelas sertanejas repetindo e repetindo histórias de amor

que duram tanto tempo quanto feiras de finais de semana.

Beiço, ela é anormal. E jura que eu também sou.

Manda dezenas de áudios falando de seus livros favoritos.

É a Capitu e o Quincas Borba do Machado de Assis,

é a Madame Bovary, do Flaubert. Bah, cara, disse que teve uma fase

de Macabéa, a personagem da Clarice Lispector em A hora da estrela.

Não entendi se ela se identificou com o fim trágico da pobre retirante

tentando a vida numa cidade grande, ou se teve empatia,

tomando consciência das desigualdades históricas deste país.

Tu acha, Beiço, que ela é uma joia rara no meio de tanto cascalho?

É claro que isso me assusta. Como vou encarar frente a frente uma deusa de primeiro escalão?

- Cadelão, tá na hora de tu parar com tanto delírio. Mais realidade, cara.

Tu compra jaquetas de 30 pilas nos brechós, e se diz satisfeito por se deslocar as 24 Horas

atrás de fardos de cerveja barata.

- Nem me fale em cerveja barata, meu velho. Ontem disse pra psicanalista

que não consigo deixar um latão de cerveja na geladeira até o dia seguinte.

Perguntei pra ela em qual neurose ou psicose eu me enquadro, e ela apenas riu.

- Tareco, marque presença nos bailões do Gervi nos domingos de tardinha

e te deixe seduzir por uma Balzaquiana de uns 50 anos que busca companhia e estabilidade na vida.

- Ah tá, desde quando tenho condições financeiras e estrutura psíquica pra dar estabilidade pra uma senhora?

- Já pensou, Cadelão, dançar umas marchinhas, tomar uns latões de Brahma e então deixar rolar

aquele olhos nos olhos e a inevitável declaração "tu é o amor de minha vida..."?

Rapaz, é sério, por que tu não te acomoda e fica satisfeito em dividir com ela um Xis Calota no sábado de noite,

mais um litrão de refri, e aos domingos tomar chimarrão nos parques,

conversando o que todo mundo conversa? O que tem de errado nisso, cara?

Não, não, não... não diga nada! Te conheço. Sempre fugindo pela diagonal.

Tanto é que, ao se sentir solitário, a primeira coisa que faz é me chamar pra dar entrada num puteiro,

pra seduzir umas garotinhas ingênuas e carentes.

Te conheço. Se pintar uma dona com centenas de hectares de soja plantada,

tu não vai aguentar por muito tempo em dividir a vida com ela,

tu tá acostumado a abrir e fechar os botecos pelo menos umas 3 vezes por semana.

- Eu mereço, Beiço... A deusa fez moradia na minha cabeça.

Penso nela quando estou chupando bergamota no quintal, quando estou fritando ovos,

quando estou ouvindo Zé Ramalho, "mulher nova, bonita e carinhosa,

faz um homem gemer sem sentir dor".

Olha só o sonho que tive ontem de noite:

uma enorme cobra se aproximava - pense na beleza deslumbrante da Anaconda -

e ela foi se enroscando, e eu paralisado, e aquela língua fazendo cócegas na minha orelha,

e a filha da mãe me apertando e sussurrando

"Cadelão, hoje tu vai morrer de amor no meu abraço"

e, então, quando eu já estava com falta de ar, acordei.

- Mas e daí, cara, o que pode significar esse sonho?

- Sei lá... Pensei numa garota poderosa me cercando e seduzindo,

e senti algo meio ambíguo: a deusa me atrai e, ao mesmo tempo, me apavora.

- Cadelão, tu não existe!

- Olha pra mim, Beiço, repara no quanto sou lírico e romântico,

um poeta maravilhado diante das belas surpresas da vida...

 

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Divã

 

Pernas cruzadas, fita-me em silêncio,

enquanto uns balõezinhos sobre sua cabeça

sussurram "e então?, e então?...".

Ponho-me a rir.

Relato que ao chegar no consultório errei de porta

e, sem graça, interpreto o ato como tentativa de fuga.

Choro e rio e digo o que me vem

e agora quem ri é o Isso e o Aquilo

e eu já quase gosto de ouvir a minha voz.

Admito, canso de mim mesmo repetindo quilômetros de ladainhas

empanturradas da promessa de que um dia serei melhor.

Sobre sua cabeça retornam os balõezinhos

em ordem unida insinuando "é mesmo?...".

Eu me fecho, direciono o olhar pras paredes e suas estantes com livros

e o divã ao seu lado ansioso pra amplificar os meus próximos delírios.

Não vim aqui a fim de deixar que o Isso fale,

passei a vida construindo muralhas,

e não vai ser essa gostosa que agora me observa

que vai me fazer pegar no tranco.

E tem mais, não suporto imaginar que Ela me vê

como o mais comum dos mortais.

Sou esperto em aprender a desaprender.

A lógica do divã não é a mesma do bar, mas há algo em comum:

fantasmas movem-se nesses espaços protegidos por coleiras invisíveis

ou senhoras autoritárias ou superprotetoras ou pais ausentes

e você sentindo-se um covarde porque destruiu sua bússola,

paralisado por sentimentos de culpa.

 

Quando me vem uma associação qualquer,

logo fujo do Isso e escorrego pros lados da Razão,

descrevendo minhas fantasias ou sonhos adolescentes

de ser escritor, ator ou narrador de jogos de futebol.

A psicanalista apenas me fita aguardando minha farta desconversa,

e eu imploro, Imaginação querida, fique por perto,

até a pé nós iremos para o que der e vier.

 

A gostosa anda não ao meu lado, mas atrás de mim,

como se me transportasse um imaginário divã.

Chega a ser engraçado ouvi-la perguntar "e então?", "e daí?".

 

Um amor.

Acredita que um dia vou agarrar a boia

enquanto estiver afundando em alto mar.

Dá corda pros meus delírios, balbucia "hum, hum...", "ahan, ahan...".

Sei que ela ri cascatas sob sua máscara

quando relato que ganharia prêmios literários

se tivesse mais tempo ou se direcionasse minha libido

para a criação.

 

(B. B. Palermo)

terça-feira, 26 de abril de 2022

Há quanto tempo não te vejo!



"Se queres ser universal, comece por pintar a tua aldeia" (Tolstoi).

 

No Reencontro com tantos conterrâneos da Vila Faguense,

ouvimos inúmeras vezes a frase " Há quanto tempo não te vejo...".

Olhares admirados feito lâmpadas acendendo memórias,

semblantes, causos, histórias...

No decorrer do dia, emocionado e zonzo, muitos de nós

fizemos em silêncio algumas perguntas:

onde estão os troféus que o Juventus conquistou ao longo de décadas?

Onde estão as ferramentas que nossos antepassados usaram,

domando a terra do norte gaúcho e dela tirando o sustento de suas famílias?

E seus costumes e culinária, ainda praticamos?

 

Museus e livros de história, por exemplo, são indispensáveis,

eles puxam nossas orelhas diante dos vacilos e indiferenças

ao lugar de onde viemos, e dos laços de afeto,

gratidão e compromisso para com nossos antepassados.

 

Creio que a busca por respostas a estas perguntas distensiona nossa sensibilidade,

e acordamos cidadãos do mundo, orgulhosos da aldeia que nos deu suporte.

Os valores que herdamos do lugar de onde viemos

não deveriam se tornar jardins abandonados, ao contrário.

 

A pressa e o imediatismo cotidiano nos afastam de quem realmente somos.

Talvez esteja aí um dos gatilhos ou portas de entrada para a depressão e a ansiedade,

patologias que andam de mãos dadas com o estresse, o individualismo, a rasa empatia...

 

É incrível o amanhecer desses encontros, frutos do desejo;

e, junto, vem o desejo de revisitar nosso passado,

desenterrar e compartilhar histórias com pessoas que cresceram próximas,

e que depois tomaram posse de suas asas e seguiram rumos diversos.

 

Relato a seguir lembranças compartilhadas no dia do Encontro.

Tudo isso nos chama a fazer pesquisas, trabalhos demorados e suados,

mas prazerosos por prestarem algumas contas à nossa história.

 

Um avô, hoje talvez bisavô ou até tataravô, cedeu parte de seu galpão,

que servia de estrebaria para os animais, para que houvesse uma singela escola,

possibilitando a alfabetização das crianças da Vila.

Eis sua preocupação: "As crianças precisam frequentar a escola para se tornarem gente".

Outro filho, pai, avô, bisavô doou a área que atualmente é de proteção ambiental,

lugar onde se situa a cascata e a gruta Nossa Senhora de Lurdes.

Ao ser aberta a picada que leva à cascata e à gruta, ele pediu:

"Abram a picada, mas evitem derrubar muitas árvores ".

 

Vai aqui um desafio para que se faça um trabalho de resgate

dos acontecimentos e pessoas que fizeram a diferença

na educação/formação dos descendentes da Vila Faguense.                            

Um celular possibilita muita coisa:

gravar depoimentos das pessoas mais antigas, fotografar e filmar, enfim...    

Ferramentas técnicas são um importante meio para resgatar o sentido de nossa existência

na direção do que disse o filósofo Walter Benjamin:

"Quem não pode lembrar o passado,

não pode julgar o presente

nem sonhar o futuro".


sexta-feira, 11 de março de 2022

Nossa alma viajando pelo esgoto

O cocô de sujeitos que viveram há milhares de anos

tem uma mensagem para você, dizem os cientistas

que analisam esses tipos de fósseis.

Nossos intestinos não carregam coisas mais saudáveis

do que os dos povos pré-industriais.

Hoje em dia o cocô está repleto de alimentos ultraprocessados,

e isso nada contribui para nossa qualidade vida.

Óbvio que muita coisa melhorou desde quando fazíamos cocô em cavernas,

tanto é que vivemos mais tempo do que os antigos.

A vida hoje em dia está melhor:

enquanto nas horas de lazer você se encharca com meia dúzia de litrões de cerveja,

ou vai ao mercado e compra uma grande variedade de alimentos e bebidas,

os primatas rifavam sua vida na caça de animais

ou na busca de frutas e tubérculos.

A ciência parou de cagar para o cocô,

percebendo sua importância para o conhecimento e a história,

e é triste saber que você não está nem aí a respeito

do que está sendo investigado e testado nos laboratórios.

Cadelão é um vidente, sabe dos minutos intermináveis

de luta que os valentões da city têm com o intestino preso.

Mas vocês deviam se preocupar também com os pobres peixes

abocanhando tantas merdas.

Cadelão está convicto de que as princesas, em vez de se preocuparem

apenas com sobrancelhas e unhas bem feitas, pra se exibirem pra amigas e rivais,

deviam prestar mais atenção com o que depositam nesses vasos

de banheiros limpinhos e perfumados.

A novidade é que os segredos do nosso cocô estão sendo analisados

através da coleta da água dos reservatórios.

Os esgotos de nossas casas desembocam nos lagos e rios

e deles regressa a água que jorra trepidante pelas torneiras de nossos lares.

Raciocine junto com o Cadelão, mire o todo e a parte,

a fusão entre animal, mineral e vegetal.

Na análise da água são encontrados antidepressivos, ansiolíticos,

tranquilizantes, cocaína e outras drogas.

Resumindo: através da ciência é possível detectar

como andam as dores de nossos corpos e almas.

Cadelão pesquisou e informa que, se forem feitas análises

de amostras da água todos os dias, saberemos em que dias da semana

você mais se entorpece, se é de segunda a quinta

ou nos finais de semana.

Se eu fosse você me preocupava com os peixes

que vivem nessas águas drogadas.

Pense na imagem, meio que lembrando os desenhos do Bob Esponja:

filiais de nossas farmácias espalhadas por rios, lagos e oceanos.

Vocês e eu sabemos que tais drogas, como antidepressivos, salvam vidas,

e que no atual estado de coisas é difícil reduzir o seu consumo, aliás,

vem acontecendo o contrário.

O negócio é investir no tratamento do nosso esgoto.

Afinal, nossa alma drogada porque sofredora,

conduzida por tubulações fiéis à gravidade,

desemboca no rios, lagos e até nos mares,

e deles retorna em forma de água "limpinha",

que jorra cristalina

pelas torneiras

de nossos lares.

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 2 de março de 2022

Um cavalo me observa do outro lado do espelho

Não estou fora do jogo.

Ainda consigo pensar

nesse caos

que bombardeia

nosso mundo.

Suporto amigos e conhecidos,

mas está difícil negociar

com papagaios gritando

suas verdades

absurdas.

 

Indiferente aos anos que voam,

um cavalo me observa

do outro lado do espelho.

Sua voz silenciosa repete:

VÁ COM CUIDADO!

 

Se me detenho diante do espelho

quando estou embriagado

ou de ressaca,

o mamífero quadrúpede

sobe no palco e ensaia seu teatro,

tentando me convencer

de que é uma entidade

de outras galáxias.

 

Já me acostumei

com essa criatura,

um estagiário de guia.

Já não ligo tanto

para os punhados de culpas

que ele me atribui.

Sei que somos a sombra

um do outro.

 

A parte dramática

é quando ele faz questão de lembrar

que os amores que tivemos poderiam ter sido

mas não foram.

 

(B. B. Palermo)


sábado, 26 de fevereiro de 2022

De bar em bar

O cérebro do amigo

está acelerado

e isso coloca em jogo

úlceras e gastrites,

ou até coisa pior.

Pedreiros drogados das periferias

não estão atrás de grandes serviços,

mas sim de bicos que rendam trocados

pra acalmar sua dependência.

Isso faz com que os planos do amigo,

de edificação da obra da década,

permaneçam rentes ao chão.

O inferno também são os bicheiros,

que o transformam num marionete.

Os espertinhos sabem como criar

e manter a compulsão pelo jogo

dessas pálidas criaturas.

Copo firme na mão,

dirijo ao amigo opiniões lúcidas:

Velho, estou preocupado contigo.

Teu motor está desregulado,

o giro dessa porra está aceleradíssimo,

parece que tua pressão arterial anda em 22/14.

Tu tem sorte, não é poeta,

senão estaria na miséria

ao se deixar enjaular

por essas possibilidades ilusórias

de ganhar alguns trocados com apostas.

O poeta mantém-se à distância dessa fauna

repleta de chinelões com calibre

igual ao teu.

O poeta observa, analisa,

faz uns rasantes contemplativos,

acredita que discretas janelas distantes,

que mostram o miúdo sentido da existência,

darão o ar da graça.

No final das contas, nos parecemos.

Sonhamos com o grande prêmio da loteria,

e a cada dia nos enredamos

na miséria comum,

traindo a verdadeira namorada,

a originalidade.

 

Ao notar que o amigo repete e repete

a mesma grandiosa ou trágica história,

o poeta fica ansioso

como bicho encurralado

num habitat estranho,

e não tem outra coisa a fazer

senão emigrar

pra outro bar.

 

(B. B. Palermo)


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...