segunda-feira, 9 de maio de 2022

Divã

 

Pernas cruzadas, fita-me em silêncio,

enquanto uns balõezinhos sobre sua cabeça

sussurram "e então?, e então?...".

Ponho-me a rir.

Relato que ao chegar no consultório errei de porta

e, sem graça, interpreto o ato como tentativa de fuga.

Choro e rio e digo o que me vem

e agora quem ri é o Isso e o Aquilo

e eu já quase gosto de ouvir a minha voz.

Admito, canso de mim mesmo repetindo quilômetros de ladainhas

empanturradas da promessa de que um dia serei melhor.

Sobre sua cabeça retornam os balõezinhos

em ordem unida insinuando "é mesmo?...".

Eu me fecho, direciono o olhar pras paredes e suas estantes com livros

e o divã ao seu lado ansioso pra amplificar os meus próximos delírios.

Não vim aqui a fim de deixar que o Isso fale,

passei a vida construindo muralhas,

e não vai ser essa gostosa que agora me observa

que vai me fazer pegar no tranco.

E tem mais, não suporto imaginar que Ela me vê

como o mais comum dos mortais.

Sou esperto em aprender a desaprender.

A lógica do divã não é a mesma do bar, mas há algo em comum:

fantasmas movem-se nesses espaços protegidos por coleiras invisíveis

ou senhoras autoritárias ou superprotetoras ou pais ausentes

e você sentindo-se um covarde porque destruiu sua bússola,

paralisado por sentimentos de culpa.

 

Quando me vem uma associação qualquer,

logo fujo do Isso e escorrego pros lados da Razão,

descrevendo minhas fantasias ou sonhos adolescentes

de ser escritor, ator ou narrador de jogos de futebol.

A psicanalista apenas me fita aguardando minha farta desconversa,

e eu imploro, Imaginação querida, fique por perto,

até a pé nós iremos para o que der e vier.

 

A gostosa anda não ao meu lado, mas atrás de mim,

como se me transportasse um imaginário divã.

Chega a ser engraçado ouvi-la perguntar "e então?", "e daí?".

 

Um amor.

Acredita que um dia vou agarrar a boia

enquanto estiver afundando em alto mar.

Dá corda pros meus delírios, balbucia "hum, hum...", "ahan, ahan...".

Sei que ela ri cascatas sob sua máscara

quando relato que ganharia prêmios literários

se tivesse mais tempo ou se direcionasse minha libido

para a criação.

 

(B. B. Palermo)

terça-feira, 26 de abril de 2022

Há quanto tempo não te vejo!



"Se queres ser universal, comece por pintar a tua aldeia" (Tolstoi).

 

No Reencontro com tantos conterrâneos da Vila Faguense,

ouvimos inúmeras vezes a frase " Há quanto tempo não te vejo...".

Olhares admirados feito lâmpadas acendendo memórias,

semblantes, causos, histórias...

No decorrer do dia, emocionado e zonzo, muitos de nós

fizemos em silêncio algumas perguntas:

onde estão os troféus que o Juventus conquistou ao longo de décadas?

Onde estão as ferramentas que nossos antepassados usaram,

domando a terra do norte gaúcho e dela tirando o sustento de suas famílias?

E seus costumes e culinária, ainda praticamos?

 

Museus e livros de história, por exemplo, são indispensáveis,

eles puxam nossas orelhas diante dos vacilos e indiferenças

ao lugar de onde viemos, e dos laços de afeto,

gratidão e compromisso para com nossos antepassados.

 

Creio que a busca por respostas a estas perguntas distensiona nossa sensibilidade,

e acordamos cidadãos do mundo, orgulhosos da aldeia que nos deu suporte.

Os valores que herdamos do lugar de onde viemos

não deveriam se tornar jardins abandonados, ao contrário.

 

A pressa e o imediatismo cotidiano nos afastam de quem realmente somos.

Talvez esteja aí um dos gatilhos ou portas de entrada para a depressão e a ansiedade,

patologias que andam de mãos dadas com o estresse, o individualismo, a rasa empatia...

 

É incrível o amanhecer desses encontros, frutos do desejo;

e, junto, vem o desejo de revisitar nosso passado,

desenterrar e compartilhar histórias com pessoas que cresceram próximas,

e que depois tomaram posse de suas asas e seguiram rumos diversos.

 

Relato a seguir lembranças compartilhadas no dia do Encontro.

Tudo isso nos chama a fazer pesquisas, trabalhos demorados e suados,

mas prazerosos por prestarem algumas contas à nossa história.

 

Um avô, hoje talvez bisavô ou até tataravô, cedeu parte de seu galpão,

que servia de estrebaria para os animais, para que houvesse uma singela escola,

possibilitando a alfabetização das crianças da Vila.

Eis sua preocupação: "As crianças precisam frequentar a escola para se tornarem gente".

Outro filho, pai, avô, bisavô doou a área que atualmente é de proteção ambiental,

lugar onde se situa a cascata e a gruta Nossa Senhora de Lurdes.

Ao ser aberta a picada que leva à cascata e à gruta, ele pediu:

"Abram a picada, mas evitem derrubar muitas árvores ".

 

Vai aqui um desafio para que se faça um trabalho de resgate

dos acontecimentos e pessoas que fizeram a diferença

na educação/formação dos descendentes da Vila Faguense.                            

Um celular possibilita muita coisa:

gravar depoimentos das pessoas mais antigas, fotografar e filmar, enfim...    

Ferramentas técnicas são um importante meio para resgatar o sentido de nossa existência

na direção do que disse o filósofo Walter Benjamin:

"Quem não pode lembrar o passado,

não pode julgar o presente

nem sonhar o futuro".


sexta-feira, 11 de março de 2022

Nossa alma viajando pelo esgoto

O cocô de sujeitos que viveram há milhares de anos

tem uma mensagem para você, dizem os cientistas

que analisam esses tipos de fósseis.

Nossos intestinos não carregam coisas mais saudáveis

do que os dos povos pré-industriais.

Hoje em dia o cocô está repleto de alimentos ultraprocessados,

e isso nada contribui para nossa qualidade vida.

Óbvio que muita coisa melhorou desde quando fazíamos cocô em cavernas,

tanto é que vivemos mais tempo do que os antigos.

A vida hoje em dia está melhor:

enquanto nas horas de lazer você se encharca com meia dúzia de litrões de cerveja,

ou vai ao mercado e compra uma grande variedade de alimentos e bebidas,

os primatas rifavam sua vida na caça de animais

ou na busca de frutas e tubérculos.

A ciência parou de cagar para o cocô,

percebendo sua importância para o conhecimento e a história,

e é triste saber que você não está nem aí a respeito

do que está sendo investigado e testado nos laboratórios.

Cadelão é um vidente, sabe dos minutos intermináveis

de luta que os valentões da city têm com o intestino preso.

Mas vocês deviam se preocupar também com os pobres peixes

abocanhando tantas merdas.

Cadelão está convicto de que as princesas, em vez de se preocuparem

apenas com sobrancelhas e unhas bem feitas, pra se exibirem pra amigas e rivais,

deviam prestar mais atenção com o que depositam nesses vasos

de banheiros limpinhos e perfumados.

A novidade é que os segredos do nosso cocô estão sendo analisados

através da coleta da água dos reservatórios.

Os esgotos de nossas casas desembocam nos lagos e rios

e deles regressa a água que jorra trepidante pelas torneiras de nossos lares.

Raciocine junto com o Cadelão, mire o todo e a parte,

a fusão entre animal, mineral e vegetal.

Na análise da água são encontrados antidepressivos, ansiolíticos,

tranquilizantes, cocaína e outras drogas.

Resumindo: através da ciência é possível detectar

como andam as dores de nossos corpos e almas.

Cadelão pesquisou e informa que, se forem feitas análises

de amostras da água todos os dias, saberemos em que dias da semana

você mais se entorpece, se é de segunda a quinta

ou nos finais de semana.

Se eu fosse você me preocupava com os peixes

que vivem nessas águas drogadas.

Pense na imagem, meio que lembrando os desenhos do Bob Esponja:

filiais de nossas farmácias espalhadas por rios, lagos e oceanos.

Vocês e eu sabemos que tais drogas, como antidepressivos, salvam vidas,

e que no atual estado de coisas é difícil reduzir o seu consumo, aliás,

vem acontecendo o contrário.

O negócio é investir no tratamento do nosso esgoto.

Afinal, nossa alma drogada porque sofredora,

conduzida por tubulações fiéis à gravidade,

desemboca no rios, lagos e até nos mares,

e deles retorna em forma de água "limpinha",

que jorra cristalina

pelas torneiras

de nossos lares.

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 2 de março de 2022

Um cavalo me observa do outro lado do espelho

Não estou fora do jogo.

Ainda consigo pensar

nesse caos

que bombardeia

nosso mundo.

Suporto amigos e conhecidos,

mas está difícil negociar

com papagaios gritando

suas verdades

absurdas.

 

Indiferente aos anos que voam,

um cavalo me observa

do outro lado do espelho.

Sua voz silenciosa repete:

VÁ COM CUIDADO!

 

Se me detenho diante do espelho

quando estou embriagado

ou de ressaca,

o mamífero quadrúpede

sobe no palco e ensaia seu teatro,

tentando me convencer

de que é uma entidade

de outras galáxias.

 

Já me acostumei

com essa criatura,

um estagiário de guia.

Já não ligo tanto

para os punhados de culpas

que ele me atribui.

Sei que somos a sombra

um do outro.

 

A parte dramática

é quando ele faz questão de lembrar

que os amores que tivemos poderiam ter sido

mas não foram.

 

(B. B. Palermo)


sábado, 26 de fevereiro de 2022

De bar em bar

O cérebro do amigo

está acelerado

e isso coloca em jogo

úlceras e gastrites,

ou até coisa pior.

Pedreiros drogados das periferias

não estão atrás de grandes serviços,

mas sim de bicos que rendam trocados

pra acalmar sua dependência.

Isso faz com que os planos do amigo,

de edificação da obra da década,

permaneçam rentes ao chão.

O inferno também são os bicheiros,

que o transformam num marionete.

Os espertinhos sabem como criar

e manter a compulsão pelo jogo

dessas pálidas criaturas.

Copo firme na mão,

dirijo ao amigo opiniões lúcidas:

Velho, estou preocupado contigo.

Teu motor está desregulado,

o giro dessa porra está aceleradíssimo,

parece que tua pressão arterial anda em 22/14.

Tu tem sorte, não é poeta,

senão estaria na miséria

ao se deixar enjaular

por essas possibilidades ilusórias

de ganhar alguns trocados com apostas.

O poeta mantém-se à distância dessa fauna

repleta de chinelões com calibre

igual ao teu.

O poeta observa, analisa,

faz uns rasantes contemplativos,

acredita que discretas janelas distantes,

que mostram o miúdo sentido da existência,

darão o ar da graça.

No final das contas, nos parecemos.

Sonhamos com o grande prêmio da loteria,

e a cada dia nos enredamos

na miséria comum,

traindo a verdadeira namorada,

a originalidade.

 

Ao notar que o amigo repete e repete

a mesma grandiosa ou trágica história,

o poeta fica ansioso

como bicho encurralado

num habitat estranho,

e não tem outra coisa a fazer

senão emigrar

pra outro bar.

 

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Nasi esteve em Ijuí

- Por onde tu andou, Cadelão? Estava te esperando no Telmo, e tu nada de aparecer.

- Beiço, tropecei numas coisas estranhas, ontem. Estava passando diante do bar do Mestre Luli

e vi uns caras e duas garotas com um violão, e a música que cantavam era decente,

então sentei na mesa ao lado e tomei uns chopes.

Lembro que eles cantavam a música do Zé Ramalho, "Sinônimos".

Em seguida o cara que tocava violão cantou uma do John Lennon.

Eu me empolguei ainda mais quando ele começou a cantar uma da Blitz,

até eu fui junto... "Longe de casa / a mais de uma semana".

Meu, tive a alegre lembrança dos embalos de sexta à noite,

e nem percebi a velocidade com que o chope do meu copo evaporava.

Rapaz, a percepção de que ainda existe vida inteligente neste planeta

me fez pedir à garçonete uma folha e uma caneta.

Fiquei lá curtindo as canções e anotando umas coisas.

O cara que tocava e cantava se sentia o centro da roda,

e improvisou a música dos Mamonas, "Robocop gay".

Uma das duas garotas, uma loira de 20 e poucos anos, notou que eu escrevia algo,

e assim que a música terminou ela falou pro bando:

"Gente, o Nasi tá escrevendo um pedido. Tô curiosa pra saber que música ele quer ouvir..."

Beiço, foi aí que o maluco que tocava e cantava me perguntou:

"Pô, Nasi, quando tu vai voltar a cantar com a banda IRA?".

Eu fiquei indignado, como pode não saberem quem eu sou?

Será que não leram nenhum livro meu?

- Cadelão, que delírio é esse?

- Ah, Beiço, eu sei que tu não acredita, mas estou emprestando vida ao velho Bukowski.

- Puta que pariu, que viagem! Hehehe... Tá, mas diz aí, o que rolou?

- Eu falei pro cara: "Velho, tu não tá me reconhecendo? Nunca leu nada do Bukowski?"

Aí ele falou: "Acho que tu tá mentindo. O Bukowski tinha uma cara cheia de buracos,

e tu até que é bem bonitinho".

A galera toda riu e eu murmurei, meio sem jeito: "Obrigado, mestre".

Voltei-me pras duas garotas e falei: "Que que foi, anjinhos rebeldes, rolou ciuminho?".

As garotas se fecharam um pouco e eu pensei ter ouvido: "Credo, esse Nasi é muito estranho!".

Voltei-me pro cara do violão e provoquei: "Aposto que tu não manja nada de blues".

Beiço, o cara levantou de onde estava, parou na minha frente,

fez aquele solo e cantou em falsete uma das melhores da Janis Joplin.

O bar todo parou pra ouvir e no final foi aquele aplauso.

 

O amigo do cantor estava cambaleante e se despediu da galera.

Perguntei pro cara do violão: "De onde você é", e ele apontou pro céu.

Todo mundo riu. Aí eu falei: "Entendi, você é um alienígena vindo do planeta Zaros."

A morena de uns 30 anos falou pra mim: "Nasi, tu é bem bobinho, né?

Não percebeu que ele é um poeta que desceu das estrelas?".

Beiço, todo mundo riu de novo, e não tive saída, disse a eles de qual planeta desembarquei:

"Galera, eu sou do planeta Gugus. Vocês conhecem?".

Rolou silêncio... Aí, declamei este poema do Ricardo Silvestrin:

 

"Em Gugus,

as pessoas nascem velhas

e terminam bebês.

Vão desaprendendo e esquecendo

uma coisa a cada mês.

Cabelos brancos

ficam pretos,

carecas ganham tranças.

Com setenta anos,

todo mundo é criança".

                                                                          

Perguntei pro cara, que continuava imóvel na minha frente:

"E aí, piradão, sou um garoto sarado ou um velho escroto?"

O cara fez "não, não" com a cabeça, se afastou e embarcou na nave

em que seu amigo aguardava, um Uno 1998.

 

- Tá, Cadelão... E os anjinhos ciumentos, não rolou nada?

- Beiço, nem tudo tá perdido nessa vida. É claro que o bando me convidou para sentar com eles.

E perguntaram: "Nasi, o que tu anda fazendo na noite

com essa cara de cachorro abandonado?".

Disse a eles: "Sou um escritor desesperado, à procura de minha imaginação.

Ela fugiu de casa na segunda-feira e até hoje não voltou".

Beiço, as garotas tinham sobre a mesa um aparelho bluetooth, e se esforçaram pra me impressionar.

A morena de uns 30 anos, cabelo negro farto, sobrancelhas enigmáticas, assim como sua boca e os olhões negros,

tomou conta da conversa e começou a rodar o repertório musical que ela curtia.

Meu, era Pixinguinha, Vinicius, Tom Jobim, Cartola, Elis, Adoniran Barbosa...

Eu me perguntava, gemendo em silêncio:

"Cara, isso tudo existe? Será que morri e acordei no paraíso?".

Elas falavam e falavam, eu delirava de prazer, e os dois caras decidiram dar uma volta,

disseram que iam atrás de cigarros.

Aos poucos a morena tomou conta da mesa, e eu soube por que, era uma geminiana dominadora.

Disse pra ela: "Guria, tu não é desse mundo!". Aí ela dizia: "Eu... Eu sou aleatória".

Beiço, as gurias iam juntas pro banheiro e demoravam séculos pra voltar.

E os dois caras simplesmente saíram de cena.

Da segunda vez que retornaram do banheiro, a morena me falou:

"Nasi, não te preocupa, só rolou uns beijinhos... mas não fale pra ninguém".

 

- Tá, Cadelão... E aí??

- O que rolou depois que o bar fechou eu não consigo narrar. É emoção demais, cara.

- Tu tá é de sacanagem!

 

(B. B. Palermo)


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...