sábado, 13 de junho de 2020

A vaca de presépio viu um gato preto em cima do muro (Continuidade da história "Nego bom não se mistura")



Como disse, me preparava para retornar ao lar, e eis que surgem o doctor Biza e o Damo do cachorrinho. Disseram que vinham de uma consulta - e a dita cuja continuou no bar do Maneta.
Pensei: "Jesus! Doctor trouxe o consultório aqui pro boteco... O mundo tá de pernas pro ar".
Não sei da onde, Biza comparou o Damo comigo.
- Tu, Damo, tem muito instinto, diferente do Cadelão... Ele não tem instinto, é mais sensibilidade... Tu não é tão sensível, tem menos coração...
Ali, vendo o doctor derramar sua sabedoria, pensei: "Deus do céu! O que esse deslumbrado anda estudando?".
Biza jogava saber pra cima do garoto, olhava pra mim e perguntava: "Não é isso mesmo, Cadelão?". Eu me encolhia, empinava aquele gole de cerveja e dizia "Aham, aham...".
- Por que o teu namoro não tá dando certo, lembra do que tu me falou? Quando tu quer sexo, ela não quer. Quando ela quer, tu não tá a fim".
Pronto - pensei - embarcamos numa terapia de grupo. Biza metralhava. Não dava espaço para contra-argumentos. Aí, atravessei sua sessão de análise, dizendo: "Meu, eu também era assim. Sabe como resolvi o problema?" Agora eles vão me ouvir - pensei. Falei como quem sobe no pódio e levanta um troféu. "Depois de 2 anos de terapia, transei com a terapeuta". Pausa... silêncio... "Aqui estou... totalmente curado".
- Cadelão, tu tá de sacanagem. Nosso papo aqui é sério! - reclamou o Damo.
E um maldito gato preto ali, em cima do muro, me encarando...
O Damo estava agitadíssimo.
- Cadelão, tu tá sugerindo que se eu transar com o terapeuta ficarei curado?
- Não falei isso, meu bem, só disse que a minha experiência deu certo. Tu não curte aquelas séries da Netflix? Quantos milhões de seres curtem aquilo, igual a tu? É isso, as cabeças dos humanos são muito parecidas.
Gente, agora eu derramei sapiência. Complementei: "Vocês não leram 'O homem unidimensional', do Marcuse? Caralho, está tudo ali" - disse isso e gritei pro Maneta providenciar outro litrão.
Eu me perguntava sobre o sentido de ficar ali, enchendo a cara e participando de uma "terapia de grupo". Doctor Biza falava e falava, analisando nariz e olhos e boca e outras expressões corporais do garoto. Meia hora depois consegui uma brecha no meio de sua falação. Então esparramei sobre a mesa meus conhecimentos do poliamor. Os bonitinhos me escutaram! falei sobre um monte de coisa. Citei Nietzsche e sua crítica ao cristianismo, amarrei tudo isso (não me perguntem como) com os sofrimentos dos humanos resultantes da monogamia e disse pro Damo que o problema dele é o mesmo da maioria dos escrotinhos que habitam a Terra. Biza me fitava, como a dizer: "O espertinho do Cadelão tá querendo roubar o meu paciente".

Eis que chegam no bar o Beiço e o dom Carlone num unozinho todo embarrado e caindo aos pedaços. Tive uma espécie de vertigem. "Aiaiai, meu paizinho, perdi os últimos fios que me conectam à realidade. Isso é o começo do fim".
Os dementes tinha passado as últimas horas na casa da dona Mire, a poeta de São Luiz Gonzaga, rodeados de meia dúzia de ninfas. Carlone sentou, encheu seu copo, fez um brinde às mulheres, deu aquele gole, falou de seu pobre cartão de crédito, e gemeu: "Eu-não-posso-me-apaixonar... eu-não-devo...".
Foi providente a chegada dos dois. Daríamos um tempo pra falação do doctor Biza. Beiço tomou conta da conversa. Estava delineando um governo paralelo, pra dar novo rumo a essa bosta de país.
- Gurizada, chegou a hora de um governo alternativo pra essa porra que está aí. Vamos pensar numa nova via, num "parlamentarismo alternativo". E o legal que temos aqui belas cabeças pensantes.
Hum - pensei - belas cabeças pensantes... O que passa na cabeça do eloquente?
Eu me contorcia, esfregava as mãos e perguntava pro meu eu interior: "Paisinho, pra que lado fica o mundo?".
O Beiço estava em altas rotações. Caramba - pensei - que bagulho esse maluco andou encarando?
- Brothers, já tenho os nomes para dirigir a economia e a saúde do país.
- Fala, aí, velho.
- Dom Carlone pra economia. Doctor Biza pra saúde.
E o Beiço esmiuçou a coisa:
- La na boate da dona Mire ouvi umas ideias interessantes do Carlone para acelerar a distribuição de renda nessa época difícil.
- hum...
- Ele propõe injetar reais nas periferias. Estimular a atividade sexual de nosso povo.
Gente, eu não acreditei que estava ouvindo aquilo...
- Carlone planeja botar grana nas putas e puteiros, e dali a fartura transborda pras periferias... Tudo isso evitará mais desemprego e possibilitará a abertura de novas vagas de trabalho, e tals...
Foi então que o Carlone agarrou a palavra e tacou-lhe pau nas suas teses a serem implantadas na economia. No começo seus argumentos pendiam pra esquerda. Daí a pouco, ao falar sobre o papel do estado e blá-blá-blá, os argumentos pareciam pender pra direita.
Eita, esse moleque conhece! Está nos sacaneando - pensei.
Carlone discursava como quem entra num labirinto, daí a pouco emendava com outro assunto, logo adiante falava de outras coisas, creio que eram os problemas enfrentados pelos índios da Amazônia. Eu pensava, "meu paizinho, pra que lado fica o mundo real, me diz, meu paizinho", enquanto sugava o copo cheio - e não podia ser pra menos.
O Beiço olhou pro doctor e quis saber quais ideias ele tinha pra saúde.
- O que esse povo precisa é parar com tanto ódio! parar com essa ilusão de esquerda e direita, comunistas versus fascistas. Vamos tirar esses bundões das redes sociais e botar todo mundo pra trabalhar. Hortas urbanas. Aí terão uma alimentação saudável e vão aumentar as defesas do organismo.
Fez aquele discurso, casando alhos com bugalhos, e arrematou:
- Gente, nós precisamos de um governo forte. Tem que botar as fardas nas ruas.
Foi então que o Beiço botou ordem no "debate":
- Doutor, te preocupe com os assuntos da saúde. Deixe o resto comigo. Aliás, tu vai me prometer uma coisa: tu vai superar esse teu amor pelos milicos.
O Beiço continuava em alta rotação. Olhou pro Damo do cachorrinho, e disse:
- Tô achando que a pasta da cultura vai ficar contigo. Mas tu também tem que me prometer uma coisa.
- Fala, mestre.
- Tu vai ter que superar essa tua paixão pelo Leandro Karnal.
Beiço se voltou na minha direção e viu diante de seus brilhantes olhos o primeiro ministro.
- Cadelão, teremos um parlamentarismo. Tu vai ser o cara. Mas não esquenta. Tu vai ser tipo uma vaca de presépio. Vai ocupar um cargo meramente figurativo. Tu também vai ter que me prometer uma coisa: não beberás em horário de expediente.
A coisa ia nesse ritmo, e eu sei que esta história tá ficando um pouco longa. O dom Carlone de novo gemeu, ao lembrar do seu cartão de crédito. "Eu-não-posso-me-apaixonar... Eu-não-devo".
Gente, essa frase começou a latejar na minha cabeça.
E o gato preto ali em cima do muro, me encarando. Disse pros amigos que era hora de voltar para casa.
- Nada disso. Tu vem com a gente pra boate - disse o doctor. Tô com um cheque de um paciente. Pagou um mês inteiro de consulta. Hoje é por minha conta.
- Gurizada, to com um mau pressentimento.
- O que foi, Cadelão?
- Observem aquele gato, ali em cima do muro. Faz horas que está me encarando.
- Gato? Que gato?
Os filhos da puta tão de sacanagem - pensei.
- Vamos, Cadelão, o amor de uma putinha vai te libertar dessas paranoias.
Na minha cabeça o mantra do Carlone latejava. "Eu-não-posso-me-apaixonar...Eu-não-devo".

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Nego bom não se mistura


Sou Cadelão romântico, mas não me critiquem, não ergam as patinhas, não sou tão bobo assim. Tenho certeza de que ela deu mole, juro que não é viagem de meus neurônios enferrujados. Mas não vou narrar para vocês a conversa surreal que tivemos no privado.
No dia de seus 20 e poucos, postou no Face: "Ela amadureceu... Agora ela sabe o que quer" - junto com aquela foto de atrair garotões ensandecidos. Imagina, quer pregar a moral de que agora ficou madura, não vai mais fazer as tais burradas.
Gente, vi esse filme dezenas de vezes, em dezenas de cinemas. Sei como operam essas criaturinhas lindas e frágeis. Babei, sim, com aqueles olhos verdes, e os contornos daquela  boca chupando bergamota e imaginei-a olhando-me demoradamente e insinuando "vai encarar, Cadelão?".
Admiro seu amor pelas crias, de pais diferentes, e que todo mês ela puteia fazendo estardalhaço nas redes sociais, porque os imbecis atrasam o pagamento da pensão.
Fico imaginando possibilidades, como seriam nossos encontros. Enquanto isso, nada de inspiração para teclar, aí eu entorno mais um gole de ceva. Não a conheço pessoalmente, mas estou convicto de que acrescentaria um tanto na sua vida. Sério, dar-lhe-ia visão de mundo, cultura, abriria sua mente para coisas mais nobres, além de conduzi-la em direção à nova garota, que jura que amadureceu. Ah, além disso eu a faria transcender o desejo de se apaixonar e dar pra uns garotos babacas e meses depois aparecer chorosa e barriguda.
São motivos singelos mas suficientes para logo correr pro bar e encher a cara. Apanho a carteira e a razão, numa atitude desesperada, me sacode, e invoca o sujeito reto que fui há alguns séculos atrás. Aí, boto música barroca pra tocar. Meu déficit de atenção me arrasta até o banheiro. Olho para o espelho, numa derradeira tentativa, e digo pro cretino que aparece do outro lado "tu prometeu que hoje não...".
Adoro bar, mas há um medo de aglomeração, ainda mais com uma gente estranha circulando entre as mesas de sinuca. Sempre chega algum maluco meio alto, que está voltando de alguma festa, ninguém duvida que abraçou alguns pesteados, e se aproxima e quer apertar a mão de todo mundo.
No banheiro do boteco, acendo a luz com o cotovelo, evito tocar a maçaneta, empurro a porta com o pé e, depois de mijar, não dou a descarga nem chego perto da torneira. Ao retornar esfrego as mãos com farto álcool gel e depois cheiro demoradamente e aí, sim, desfila diante dos olhos o sentido da vida.
O dono do bar, o Maneta, faz questão de mostrar quem é que manda no pedaço. Na faixa dos 50 anos, ele diz: "A nossa geração é só por Deus! Nós somos velhos, não temos mais que curtir esses Creedence e Scorpions e Pink Floyd. Vamos curtir Mano Lima e Baitaca, e deu...". Penso, mas não digo, "sim, tu tá certo, seu bobinho, nossas patroas não querem mais foder, só querem igreja, e veja lá...". Maneta é bom em jogar pra cima e repetir e se alegrar com versos de algumas músicas. "Nego bom não se mistura". "Não tá morto quem peleia". "Não podemos se entregar pros home".
Fazer o que, ele é o dono do bar, da conexão de wi-fi, do noty e da caixa de som, é ele quem controla os freezers abarrotados de cerveja gelada. Tá bem, tá bem, ele não controla a dona gastrite que quer virar úlcera, que quer virar câncer, e ele sabe disso e bebe e fuma como um ressuscitado. E nós, vermes, rastejamos por essas espeluncas, enchendo a cara para espantar a deprê e a solidão.
E quase sempre aparece um daqueles empresários que exibe a carteira e uma dúzia de cartões de crédito e diz que poderia dar um golpe de milhões com empréstimos, e os da turminha em volta concordamos que é o momento, e digo que isso é mais justo do que praticar pequenos estelionatos e foder ainda mais uns empresários falidos. Sim, é dar um único golpe, certeiro, nesses bancos imperialistas e sugadores do Estado, que não dá pra ficar satisfeito em viver no futuro com a merreca de uma aposentadoria. Fico empolgado com a ideia e gesticulo, "é isso, eis a melhor saída, é o momento de fazer algo bem no estilo de Robin Hood". Mas o meu amigo empresário diz que, se der um golpe, vai curtir a via no Paraguai. Percebo o quanto sou bobinho, sensível com as camadas mais pobres da população, pensando na distribuição de renda e tals...
Vida que segue. Os cretinos não me dão bola, estão agora discutindo futebol.
Um gato preto sobe no muro, ali ao lado, e fica me encarando. Minha máscara que está no bolso começa a queimar, é hora de voltar para casa. Ao pedir a conta, chegam no bar o doctor Biza e o Damo do cachorrinho. Doctor pediu um litrão, acendeu um cigarro, disse que vinha de uma consulta e queria ouvir a opinião do poeta sobre umas coisas muuuuito importantes. Mas essa já é outra história.

*Esta é uma historinha de ficção. Por favor, controle teu alcoolismo e FIQUE EM CASA.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Cadelão do gás



Eu queria enfeitar meu poema
com singelas metáforas,
afastado o que puder
das dores do mundo.
Mas não, preciso garantir meu leite
no bar
e, vejam só, aqui estou, ofegante,
fazendo entrega de gás.

Desconto, todos querem desconto,
e repetem que os tempos estão difíceis.
Não posso fazer concessões,
são ordens do patrão.
Então desconto no poema,
mergulho ele na lama
meu amor se alimenta do ódio
vivemos de tapas e safanões.

Eu queria escrever uma mistura de sentimentalismo ingênuo
com autoajuda,
pois renderia alguns trocados.
Queria ser alquimista dos sentimentos elevados,
chover flocos de algodão-doce nesta humilde cidade.
Eu queria escrever poemas tão bonitinhos e mágicos
que transformassem putas em madames.
Mas não! eu preciso ir correndo levar o gás,
que a patroa grita, nervosa,
a empregada não pode atrasar o almoço,
e minhas botinas estão emporcalhadas
e ela manda tirar na entrada
pois carregam a sujeira do mundo
e ela mora num lugar puro e superior.
Inconformado, eu fico quieto,
pra não ferir seu monogâmico tédio,
é uma burguesinha de merda
que bebe vinho de 70 reais a garrafa,
e que pede desconto no gás.

Eu queria escrever um poeminha metafórico,
como se fosse um pônei de filhinho de rico,
que acaba de sair do pet shop.

Os puteiros estão quebrados e pedem
desconto.
As igrejas me empurram Deus com 60 dias de prazo
pra entrada do dízimo
e pedem desconto no gás.
Desconto! Desconto!
Quem nada ganha com isso é meu poema
carente
de efeitos especiais.

O fogão da funerária precisa funcionar,
está morrendo gente e lá estou,
macacão surrado e botijão nas costas,
faço uma reverência ao finado,
pálido e impassível no caixão,
enquanto me dirijo até a cozinha,
pra dar minha singela contribuição:
garantir o café e o chimarrão desses vivos
que finalmente elogiam o morto.

O melhor lugar do mundo pra deixar meu gás
é numa boca de fumo.
Me tratam bem, não me pedem pra tirar
as botinas sujas,
até convidam pra um baseado.
Eis um templo sagrado da cidade.
Eis o paraíso, o mais visitado e o mais proibido.
A cidade necessita do gás como do pó.

Eu queria escrever poemas enfeitados,
mas tenho que correr o dia inteiro
pra dar energia a esses lares,
e ainda tenho que arranjar uns trocados
pro bêbado do bairro fazer sua combustão,
e naufragar na cachaça e compartilhar
comigo a gangrena prazerosa
do seu vício.
Ontem bateu o desespero:
seu pai morreu.
Deus morreu.
Meu poema ressuscitou da lama,  
divide comigo a Santa Ceia,                 
e estamos manchados de vinho.

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Prometo uma inesquecível tarde de amor



Abri as fotos no celular,
ampliei seu tamanho
e saltitaram diante dos olhos
poses sensuais
em diversos cenários de seu lar.
Ombros e coxas e rabo,
nuns ângulos incríveis,
e também braços
e panturrilhas tatuadas
e, desconfiei, meia calça tatuada.

Experts em moda,
mais um desafio
para modelos plus size
conquistarem as passarelas.

Cadelão provinciano que sou,
imaginei o fotógrafo,
o escultor e o arquiteto e
o açougueiro afiando
suas ferramentas,
dando forma àquele corpão,
provocando insights malucos
de nutricionistas moderninhas.

Cadelão romântico que sou,
imaginei a estrela no camarim,
embelezada pelo maquiador,
bajulada pelo diretor,
seu fã clube bombando nas redes sociais,
milhões de seguidores no Instagram.

Quem te preparou,
quem te conduziu para o altar,
quem te deixou assim
donzela para o amor?
O amor de tua vida,
numa noite qualquer,
numa transa qualquer,
em cima da mesa de jantar
da casa de um amigo,
de madrugada e de quatro,
numa aventura fantasiosa...

Baby, não sou ninguém,
não ligue pro meu papo,
mas carne explícita afugenta
deuses príncipes,
candidatos a "homens de tua vida".
Sensualize detalhes
que a maioria nem percebe,
como o tesão de tua voz
declamando um poema
romântico.

Aposte na doce voz
de tua alma,
deixando paus assanhados,
que desafiam durante horas
a gravidade.

Seja ousada, meu amor,
ainda há carinhas sensíveis,
"amantes à moda antiga".
Não te deixe exibir
e padronizar,
como se fosses bisteca,
costela e picanha e chuleta...
num balcão de açougue.

Acorde, baby,
acorde a leoa que berra
sufocada
dentro do teu ser.
Seja ovelha desgarrada,
dê uns safanões
na maria-vai-com-as-outras,
ria da piriguete,
manda um foda-se pra marionete,
corra, venha logo pro meu cantinho,
enrosca-te na velha cama,
nem que seja uma única vez,
prometo uma inesquecível tarde
de amor.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Notas de um velho safado



Apenas no início da tarde 
do outro dia,
percebi que o livro 
"Notas de um velho safado",
que nos últimos tempos 
tem feito companhia
me observando sobre a mesa,
estava com boa parte das folhas
umedecidas
pela cerveja que eu derramara
na noite anterior.
Não teve outro jeito:
abri e o pendurei
atrás da geladeira.
Em algumas horas 
o Bukowski
ficou seco
e quentinho.
Será que o filho da puta 
merecia
tantos cuidados?

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Essas canções são a cara de milhões de sonhadoras como tu

Finalmente, quando prometi namorar, 
ela veio com tudo e esfregou na minha cara
um pacote completo:
a flor-de-clitóris, úmida e suplicante,
e o catálogo de suas performances.
Aprendera direitinho algumas lições do kama sutra.
Não foi tudo aquilo, mas foi bom,
e nos sentimos em casa.

Sequestrou o espelho do quarto,
desfilaram flores e lingeries
e estremeceram os pilares de minha pessoa.
Para impressionar, mostrou a cicatriz
na nádega esquerda
e disse que fora mordida por um pitbull.
Eu não soube se era real ou metáfora,
mas a cicatriz estava ali,
uns contornos de uma bocona,
diante de minha visão arrepiada,
como se eu acabasse de desembarcar em Marte,
e havia multidões de serzinhos aguardando
pra me chamarem de covarde,
e, milagre, naquele dia havia  
poucas nuvens no céu
e muito sol.

É apenas a primeira cicatriz -pensei, e me apavorei.
Logo chegarão outras, parentes distantes,
umas tias raivosas e vingativas.
Gelei ao imaginá-la possuída,
abafando com velhos cobertores
incêndios de seu passado,
cicatrizes ou sinais que psicólogas chamam de "traumas".

Até quando o Cadelão suportaria?
Sejam compreensivos, meus irmãos.
E foi assim, mais uma vez,
que acendeu a luzinha do painel
de meus temores.

Também penso no futuro,
enquanto coleciono dúzias de fiascos.
Também quero envelhecer bem amparado,
de preferência dispondo de um bom estoque etílico.
Sim... Álcool. Para suportar as dores do mundo.

Eu ainda me apego à vida material.
O emprego, o consórcio do carro,
as comidinhas bem temperadas,
batidas de cachaça e vodca e catuaba e licores
e tudo o mais que fazem suportar anos e anos
de dedicação exclusiva ao meu amor.

Porém, o seu dia a dia me faz balançar:
aquele cuidado com os astros,
e o olhar atento aos sinais do zodíaco.
Os poemas preferidos,
as canções populares
que a fazem suspirar:
"Nossa, essa letra é a minha cara!",
"Quando ouço essa música passa um filme na minha cabeça!".
Eu não devia dizer-lhe, mas não suporto a real, e disparo:
Sei, baby, essas canções são a cara de milhões de sonhadoras como tu...
Umas pobres inocentinhas que não acordaram pra vida.
É o suficiente pra que a tampa de uma panela
exploda meus cornos,

e de novo eu perambulo solitário por aí.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...