Preparo
uma carne de segunda, agulha, que o açougueiro jurou que é macia.
Penso
várias coisas. Que estilo adotar nas histórias que escrevo para que alguma editora
tenha interesse. Na lista de compras neste início de mês, como os panos de
prato pra substituir os que estão encardidos e furados. Nas toalhas de banho
que, obviamente, vão ocupar o lugar das velhas, as quais desempenharão agora o
papel de tapetes diante da porta que dá para o pátio. Em renovar o estoque de preservativos,
creio que alguns estão vencidos ou por vencer. Em separar os livros que prometi
doar pra uma campanha que vai presentear, às vésperas da páscoa, moradores de
periferia. Preciso também separar as camisas e calças que não uso há décadas, e
mesmo assim guardo no roupeiro. Ah, e sempre me cobro e reincido a respeito dos
desodorantes que compro. Aqueles baratos custam muito, mancham as camisetas sob
as axilas, nesses meses de temperatura elevada e então aparecem, além das
manchinhas, aqueles furinhos.
Prometi
dar algumas roupas ao lixeiro que toda semana passa na minha rua. Ele é tão
hilário quanto eu. Empurra sua carrocinha, sendo que carrega, dependurada numa
tela lateral, uma garrafa de refri contendo cachaça. Gosta de uma prosa. Quando
soube que li uma quantidade razoável de livros de filosofia, disse-me que leu o
"Mundo de Sofia" no Casarão. Ao confessar que não sabia que o Casarão
era a Penitenciária Modulada, ele riu de minha cara. Dependendo da semana, esse
lixeiro bebum e ex-drogado é meu papo mais produtivo.
Procuro
uma maneira pra amaciar a carne de segunda emborrachada. batem à
porta. Não esperava ninguém. É a Marga. Vejo de cara que Ela tem necessidade de
falar. Traz novidades. Aprendeu com o Dr. Biza, um naturopata de fundo de quintal,
técnicas para interpretar seus sonhos.
-Cadelão,
a gente precisa aprender a se conhecer. Os sonhos trazem muita informação a
respeito do nosso ser.
-
Hum... não duvido. Conhecer o que, por exemplo?
-
Ah, nossos medos, por que fugimos ou desistimos de nossos sonhos.
Observo
o cozido, penso em desligar o fogo e me concentrar noutro fogo, por isso dou
uma averiguada nos líquidos disponíveis na geladeira, e volto a dar atenção à
garota. Ela está narrando um sonho que teve e como interpretou.
-
Os sonhos usam imagens poderosas. Mas precisamos decifrar. Assim que você
acorda, precisa anotar tudo. Anteontem sonhei que buscava algo, por um caminho desconhecido.
Aí surgiu a imagem de uma árvore muito alta. Havia um tesouro na copa mais
alta, que não lembro o que era, e que eu desejava muito. Ventava, balançando
todos os galhos, aí eu me encostei no tronco e olhei pra cima e morri de medo.
Desisti de subir...
-
Hum...
-
Olha só, eu interpretei assim a mensagem que o subconsciente me enviou: o vento
foi a desculpa que eu achei pra não arriscar correr atrás do meu tesouro, isto
é, os meus sonhos. Esse é um dos meus medos, o medo de bater de frente com os
obstáculos.
Pensei:
"Ela poderia se agarrar no tronco e escalar, com tudo, saltando de galho em
galho. Isso é tão simples de decifrar. Ela tem fixação pelo caralho, de pular
de um caralho pra outro".
-
Não dramatize, Marga. Todos temos algum tipo de medo, e isso nos ajuda a
sobreviver nesse mundo louco.
-
Sabe, tem outra imagem, acho que no mesmo sonho. Eu agora estava num lugar
alto, olhava pra baixo e não sabia como descer. Assim que desci, encontrei
esparramadas minhas roupas sujas, que recolhi numa mochila, acho que dessas de
viagem. Do jeito como o Dr. Biza me ensinou, eu deixava um rastro, não de roupa
suja, mas de coisas que eu fazia e que me envergonhavam, me dando um enorme
sentimento de culpa.
"Hum"
- pensei - "Imagino o que passa com ela. Depois das preliminares e antes
das primeiras estocadas, antes de engolir o cacete, ela pede pra que o cara
coloque a camisinha. Faz isso comigo e com todos os outros. Pede, timidamente,
pra que vistam o medonho e é claro que todos nós enrolamos e fica por isso
mesmo".
-
Marga, todos nós deixamos um rastro de sujeira por onde passamos. A diferença é
que, enquanto alguns não ligam pra isso, outros se sentem os piores. Tem
sujeitos que se matam por menos até.
Várias
coisas me vinham à cabeça. Pensei: "Imagina como um psicanalista dos bem
cretinos lidaria com a fragilidade dessa criatura. Ou escolheria transar com
ela e romper a relação analista/paciente, ou continuaria sugando mais e mais
grana, durante anos, em sessões intermináveis. Adivinhem o que o bostinha
escolheria... Óbvio que é a segunda opção".
-
Gosto de ouvir os teus papos. Me inspiram e abrem meu apetite.
Servi
outro drinque da geladeira, me aproximei dela no sofá, lambi a ponta de sua
orelha, soprei meu bafo morno e ela estremeceu e conduziu minha mão para o meio
das suas coxas. A agulha emborrachada que espere, até porque depois meu apetite
virá com tudo.
Ontem eu caminhava pela calçada de um
bairro de minha cidade e me deparei com um solitário velhinho, com cara de
transtornado. Falava alto e, mesmo que estivesse a poucos metros de distância, não
me notou, continuou falando.
O final do dia, além de abafado, está
meio estranho, pensei.
Quando era criança, cenas como essa me
impressionavam. Mas quem liga pra isso hoje em dia?
Algumas vezes, ao retornar pra casa do
bar, embriagado, eu também falo sozinho. Porém, tomo o cuidado de o fazer um
pouco tarde da noite, quando a comunidade está em sono alto, só assim não me
intimido.
Se é noite de luar ou o céu está
estrelado, converso animadamente com as estrelas e a via láctea, algumas das representantes
de Deus no universo.
Ao servir o exército, numa cidade que
ficava a uns setecentos quilômetros de onde eu morava, trocava cartas com uma
garota adolescente, uma "quase" namorada. Depois de ser colocada no
correio, a carta demorava uma semana pra chegar ao seu destino. Isso quer dizer
que recebia a resposta da garota não menos do que duas semanas depois.
Poderia ter renunciado ao serviço
militar, mas disse ao comandante, na entrevista derradeira, que queria
permanecer. O que fiz aos dezoito anos eu faço até hoje: gosto de sofrer, gosto
de sentir saudade, morando longe das pessoas mais próximas.
Quanto a isso, os
psicanalistas, freudianos ou lacanianos, têm o conceito na ponta da língua pra "classificar"
meu tipo de neurose. Fodam-se todos eles.
Escrevia muitas cartas. Não sei como as
garotas suportavam páginas e páginas daquelas "viagens". Talvez esse
gosto pela escrita me salve (ou liberte?) de caminhar pelas ruas falando
sozinho.
Hoje, Ao recordar minha juventude, até acho
engraçado. Tinha aspirações literárias. Sonhava me imortalizar como poeta. E
não fazia ideia de que todo esse sonho iria pro ralo, bastava me apaixonar por
alguma garota. Foram várias paixões. O poeta amou e deixou a arte em segundo
plano.
Juvenil, não tinha qualquer maturidade e
noção de que poderia "reencarnar" almas altamente criativas de tempos
passados, que me presenteariam com histórias imortalizadoras. Quando a
inspiração surgia, meu espírito apaixonado se desviava dos caminhos criativos,
os insights. E, com certeza, não tive um mínimo de "café" para
compreender e decifrar essas histórias e colocá-las no papel.
É por essas e outras que, ao observar
essa gurizada por aí, não sinto pena ou lamento tamanha ingenuidade. Ao
contrário, me coloco no lugar deles. São o que eu fui um dia.
Nesses
dias de esforços sobre-humanos para me manter sóbrio e recuar um pouco a
barriga, a primeira música que me sobe à cabeça é de propaganda de cerveja.
Pior
ainda é duelar com a vontade capeta que só vê copo cheio diante dos olhos à
espera pra ser sugado, e a toda hora me perguntar quem sou eu e o que quero da
vida.
Ainda
mais dramático é ler poetas rebeldes de alguns séculos atrás e buscar traços
que me identifiquem com eles, como se tivesse herdado ou reencarnado seus defeitos
e vícios.
Agora,
ao ouvir o blues que o Renato Fernandes canta bêbado nuns versos em nossa
língua varonil, a palavrinha que lateja em minha mente é "dignidade,
dignidade". Como se eu devesse me culpar por todas as merdas que os
políticos planejam na calada da noite, e seu papo furado de que são necessárias
reformas urgentes, como se o mundo fosse acabar se não aceitarmos isso.
Os que
os apoiam são chamados de "gado".
Os que
fazem a crítica são chamados de comunistas.
Rebanhos,
todos, com ou sem conhecimento de causa, marchando em ordem unida para o abate.
Não
suporto bater de frente com a opinião desse povo. Sei que serei odiado, pois
aqui estou dando meus palpites.
Nossa
opinião tem o mesmo grau de veracidade dos seis números que jogamos na Mega sena.
A probabilidade de acertar e de ser levado a sério é de uma em seis milhões.
Então, não perca tempo opinado por aí. É muito mais saudável ir pescar ou fazer
sexo ou, por que não?, se masturbar. Vai por mim, meu brother.
Pachos na testa
Terço na mão
Uma botija Chá de limão
Zaragatoas
Vinho com mel
Três aspirinas
Creme na pele
Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela
Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto
Já vejo o inferno
Chamas diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Tigres sem listas
Bodes de tranças
Choros de corujas
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é a chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo
Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
À cabeceira
Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada
Faz-me tisanas
E pão de ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer.