quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Flores, moedas, mortos e muito lixo


O bêbado do meu bairro mudou de estratégia
para conseguir algumas moedas para comprar cachaça.
Ontem trouxe uma planta para que eu cultivasse no quintal.
Era uma dessas flores, parecida com copo-de-leite.
Não cultivo flores, apenas algumas hortaliças.
Alcancei-lhe umas moedas e pedi que desse a planta a algum vizinho.
Hoje trouxe uma planta florida.
Deve ter arrancado do jardim de sua mãe.
Estava sem moedas, não abri a porta,
fiz de conta que não estava em casa.
A mãe frequenta a igreja regularmente e mantém as oferendas em dia.
Mães foram feitas para amar e sofrer.
Não é por acaso tantas orações e promessas.
Se ele esqueceu de botar a tampa no tubo do creme dental,
ela vai ao banheiro e o faz.
Nas semanas de abstinência devido ao uso do álcool,
e da insônia que bate à porta,
ela compartilha com o filho tarjas pretas e noites mal dormidas e
redobra visitas à igreja.
O filho, alto, seco, rosto sofrido, tem uns trinta anos e
aparenta ter uns sessenta.
Insetos do bairro alardeiam, mais indiferentes do que tristes,
que ele não passa desse ano.
Eles acreditam que o sujeito não deu certo nesse mundo.
Ao contrário, eles são os tais, com seu trabalho e esposa e amante e
novela e rotina cheia de crenças e pobre de novidades.

À tardinha abro a porta, vou à padaria buscar queijo e pães.
Havia uma planta no degrau da porta da frente.
Devo ser pouco espirituoso, mesmo assim um frio
atravessou-me por todos os quadrantes.
Percebi que as plantas que ele trouxe são as mesmas que parentes e
familiares e amigos levam para os mortos,
no feriado de Dois de Novembro.
O bêbado do bairro e sua mãe e o maluco que aqui escreve e
todos vocês circulamos pelas vias de um imenso formigueiro.
Não sei se os insetos que me rodeiam se perguntam sobre
quem estará presente daqui a alguns anos.
Como e o que estaremos fazendo?
Isso é o de menos.
O mais importante, para este inseto que vos fala,
é que a banana e a cebola e as peras e as batatas e o peito de frango e
o coxão de fora e a cerveja que bebo estão em promoção no Big mercado.
Enquanto o bêbado do bairro traz plantas para trocar por moedas para trocar por cachaça,
toda a biodiversidade que nos rodeia recebe nosso lixo diário.
Movimento desigual. Damos menos do que recebemos.
Quem sabe o sentido de nossas vidas, interagindo com a natureza,
seja produzir lixo, muito lixo.
Eis nossa missão número um.
E o álcool é mais uma válvula de escape para suportarmos o
fato de estarmos sufocados por esse lixo que produzimos.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Desapega, Cadelão



Não tenho humor para pisotear as flores
das árvores deitadas na calçada.
Não suporto contemplar por muito tempo a bola de fogo
no entardecer do fim de outubro.
Não creio estar preparado para enfrentar a semana que avança
e o exame médico e o defeito no carro e a dor de ouvido e
a alegria e mau humor dos vizinhos.
Sem vontade de ouvir rock ou blues ou Debussy ou Beethoven.
O dia está quente e por isso não usarei máscara ou maquiagem.
Estacionei tempo demais nesse lugar.
Hora de desapegar e juntar umas coisas e seguir.
Rodeado de amigos, porém solitário,
não me preparei para isso.
Baby, decifra-me os sinais.
Você sempre diz que é hora de virar a página.
E repete, e repete, Não é uma questão de idade ou experiência.
E foi assim que você quase me convenceu a jogar na fogueira
toneladas de versos bem intencionados, mas pouco criativos.
No final das contas eu me contive, ou foi aquele medo.
Esteja à vontade para sempre repetir Desapega, Cadelão, desapega.
Eu não fico chateado, juro.
(B. B. Palermo)

Peixe vivo



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Tão banal como uma folha em branco



O letreiro amarelado do bar
e os gritos vindos da mesa de sinuca chamam,
mas uma voz que vem de um resto de consciência
pede pra que volte pra casa.
Tenho medo de voltar.
Moradores do prédio vizinho rosnam,
e a imagem que me vem é uma faca
atravessando corpos na diagonal.
Garotas espalham orgias pela noite
e eu aqui melancólico.
Sei que tudo se reinicia
e sou livre e estou
rabiscando essas neuras.
Posso adotar um pet que me cuide,
posso adotar uma garota que me chame
para o café da manhã.
Livre, porém paralisado. Sim, sei que
posso fazer tantas coisas que ajudem a
suportar as armadilhas.
Pode ser um bom sinal o fato de achar engraçado
casaizinhos devorarem hambúrgeres gigantes.
Sei, sei, isso tudo é banal, inclusive a melancolia

de estar paralisado diante de uma folha em branco.
(B. B. Palermo)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Caneladas e chutões



Dou uma passada pelas redes sociais e 
observo como está o jogo político.
Criaturas de todas as idades se digladiam à direita e à esquerda, 
a maioria fora de forma com relação às regras da argumentação, 
barrigudas, cansadas, amadoras.
Um festival de voadoras e caneladas e chutões pro alto.
Mas seguem jogando.
Sinto que é quase uma obrigação, 
como se o mundo fosse acabar amanhã.
As pessoas estão com raiva, 
inclusive alguns poetinhas.
Parodiando Bukowski, é a única coisa em que são bons.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Uma calcinha vermelha



No ano em que Elis veio de Curitiba me visitar, eu tinha um fusca azul com umas rodas e um volante e um som que eram a minha cara.
Naqueles dias, enquanto eu cheirava a cachaça, o fuscão cheirava a gasolina.
O pobre do mecânico do bairro tirava o tanque, lavava o tanque, virava o tanque do avesso e nada de encontrar o vazamento.
Assim que chegou, Elis analisou o ambiente do meu lar e disse que umas cortinas nas janelas da sala cairiam bem.
Percebi que ela tinha planos para mim. Isso me deixou em pânico.
Tudo veio abaixo quando ela remexeu o guarda-roupa e encontrou uma calcinha vermelha.
Pegou, de uma gaveta, uma tesoura enferrujada e fez picadinho.
Não consegui esconder certa satisfação com a sua raiva.
 Ela retalhava e gritava:
Cadela! Piranha! Vadia!
Aos seus olhos, CADELÃO era um garoto ingênuo e, por isso, um indefeso aos ataques das vagabundas.
Eu gostava daquele ciúme e me achava.
Falei da loira, suas coxas musculosas, novinha e estudante de psicologia, de lábios carnudos e que mordia minha boca sempre que gozava.
Elis ouvia com atenção e com olheiras e queria saber mais detalhes.
Daí a pouco emputeceu e sumiu o dia inteiro.
Voltou à tardinha e me presenteou com um pijama de seda, trouxe também cortinas pras janelas e umas compras do mercado.
Não quis jantar fora, cozinhou nosso prato preferido: molho de galinha e massa, com muito queijo e alho e pimenta.
Depois de duas taças de vinho, Elis, mais serena, quis saber detalhes de como a piranha loira e musculosa e cadela e novinha transava.
Mais tarde ela disse que ia tomar banho e depois me ensinaria umas coisas.
Fiquei meio nervoso, não queria ser um Cadelão traidor, pensar na loirinha musculosa enquanto Elis cavalgasse.
Rapidinho, suguei três doses de uísque do Paraguai.
Ao sair do banho, Elis não quis saber de conversa e partiu pra aula prática.
Aprofundou-se nos detalhes, repetimos, repetimos a lição.
 Foi a primeira vez que dei uma trepada com alguém rebolando a bunda daquele jeito.
Parecia rainha de escola de samba num ensaio pro carnaval.
Elis era uma especialista. Elis sabia ensinar.
Hoje, contando pra vocês, eu morro de vergonha.        
Eu não sabia trepar.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...