quinta-feira, 23 de março de 2017

Os músicos - Rubem Fonseca


Faz calor. Os grandes espelhos da parede vieram da Europa no fundo do porão; cristal puro. “Tua avó fez risinhos e boquinhas, namorou dentro desse espelho”. Respondo: “minha avó nunca viu esse espelho, ela veio noutro porão”. Nesse instante chegam os músicos, três: piano, violino, bateria; o mais moço, o pianista tem quarenta anos, mas é também o mais triste, um rosto de quem vai perder as últimas esperanças, ainda tem um restinho mas sabe que vai perdê-las num dia de calor tocando os Contos dos Bosques de Viena, enquanto lá embaixo as pessoas comem bebem suam sem ao menos por um instante levantar os olhos para o balcão onde ele trabalha com os outros dois: Stein, no violino – cinquenta e seis anos, meio século atrás: espancado com uma vara fina, trancado no banheiro, privado de comida “nem que eu morra você vai ser um grande concertista” e quando Sara, sua mãe, morreu, ele tocou Strauss no restaurante com o coração cheio de alegria – Elpídio na bateria, cinquenta anos, mulato, coloca um lenço no pescoço para proteger o colarinho, o gerente não gosta, mas ele não pode mudar de camisa todos os dias, tem oito filhos, se fosse rico - “fazia filho na mulher dos outros, mas sou pobre e faço na minha mesmo” - e todos começam, não exatamente ao mesmo tempo, a tocar a valsa da Viúva Alegre. Na mesa ao lado está o sujeito que é casado com a Miss Brasil. Todas as mesas estão ocupadas. Os garçons passam apressados carregando pratos e travessas. No ar, um grande burburinho.

Rubem Fonseca
Lúcia McCartney, 1967

quarta-feira, 22 de março de 2017

Notas de um Cadelão


Enquanto para alguns é terrível, para outros é incrível tornar-se coroa. É que muitos ficamos babando quando somos atendidos com simpatia pela Caixa do banco. Flutuamos radiantes, pois nos disseram "meu amor" e "querido". Ah, e o grand finale... para compensar a conta estourada, ganhamos de brinde uma piscadinha!

(Diário de B. B. Palermo)


terça-feira, 14 de março de 2017

segunda-feira, 13 de março de 2017

Notas de um Cadelão


Perto de onde moro abriu uma loja de roupas de moda íntima. À noite sua vitrine luminosa chama a atenção dos que por ali passam. À tardinha, dezenas de garotas diminuem o passo para contemplar e desejar sutiãs e calcinhas. Do outro lado do espelho há um mundo que desperta o imaginário. Do bar mais próximo observo e me convenço de que isso revela muito de nossa cultura. Li esses dias que a ciência médica investe cinco vezes mais em pesquisas de terapias de embelezamento e de deficiências eréteis do que em prevenção da doença de Alzheimer. Não importa com que cabeça chegaremos à velhice. O mais importante é o desempenho do corpo aqui e agora. Para a ciência médica a serviço do lucro, o que vale é os velhinhos terem muita disposição e uma puta ereção. Não faz mal se no dia seguinte não lembrarem com quem transaram.


(Diário de B. B. Palermo)

Dolorosa interrogação - Mario Quintana



(Caderno H)

sábado, 11 de março de 2017

Somos amadores e carentes... de poesia


Meu poema não reivindica amores frustrados. Não humaniza estrelas e endeusa a lua cheia. O poema se engraçou com o novo bar repleto de chinelões mal-encarados, putas e carinhas drogados que se apavoram com o passado e se embebedam para suportar o amanhã.
O amor magoado proíbe que o poema sangre que a metáfora lateje e a febre goze. É uma temporada de tempo abafado, raiva a zero grau.
Mágoas de amor se engraçam no escândalo e submissão, no homicídio e suicídio raivosos. Só depois se tornam poemas.
Fazer poesia para se purificar de amores mal-amados é roubar o emprego do analista.
Mas Cadelão - diz uma Ninfa enluarada e esperta - o mundo está carente de poetas. Não critiques os enamorados, os que despertaram e vivem de paixões, e também os que gangrenam suas dores insuportáveis, não deboches por se dedicarem à poesia. Afinal, são tão poucos os sensíveis neste mundo frio e cruel.
Sim, garota esperta, você tem razão. Mario Quintana também o disse:
"Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus, não tem importância. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos do que fazer nenhum. O exercício da arte poética representaria, no caso, como que um esforço de auto-superação. É fato consabido que esse refinamento de estilo acaba trazendo necessariamente o refinamento da alma. Sim, todos devem fazer versos. Contanto que não venham mostrar-me" (Caderno H).


(Diário de B. B. Palermo)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

NOTAS DE UM CADELÃO

Estava no centro da cidade e cruzei por duas garotas cujas camisetas estampavam o nome CÉLINE. Será que elas leram o grande livro dele, "Viagem ao fim da noite"? Ou pelo menos ouviram falar desse grande escritor, a época que viveu, sua escolhas na política (apoiou o anti-semitismo), a desgraça de ter caído no esquecimento na última parte de sua vida... Talvez as peculiaridades, e também a visão de mundo, desses gênios signifique nada para grande parte das gerações atuais. Será que teriam razão em bradar que não têm nada a ver com histórias, artes e ideias de gerações passadas? Ah, esqueci de dizer: as estampas das camisetas eram bem bonitas!
OBS.: acabei de consultar o Google e percebi meu erro: as estampas não têm nada a ver com o escritor Louis-Férdinand Céline, mas sim com outra marca. Foi mal.
Já que estamos nessa, vou trazer aqui algumas frases... do escritor:

“Quando não se tem imaginação, morrer é pouca coisa, quando se tem, morrer é demasiado.” 
“A maior parte das pessoas morre apenas no último momento; outras começam a morrer e a ocupar-se da morte vinte anos antes, e às vezes até mais. São os infelizes da terra.” 
“Confiar nos homens é já deixar-se matar um pouco.” 

(Diário de B. B. Palermo)


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Menos chocolate, Baby


Sim, estou preocupado com as queixas das garotas a respeito desses caras insensíveis que só querem ficar, presos ao seu orgasmo e prazer animal, fugindo de compromissos mais sérios. Também me sinto de coração partido, Baby, apesar de admitir que o meu coração, como o desses caras, é de galináceo. Mas não escrevo textos românticos para agradar, e até enganar, numa linguagem açucarada. Minha ilha não tem apenas paisagens deslumbrantes. Se a primeira imagem é de praia paradisíaca, no subsolo alastra-se o esgoto, que destroça corações e mentes.
Sim, se escrevesse bem poderia ser lido por multidões, publicando auto-ajuda. Mas não seria sincero, estaria em contradição com o que passa no íntimo.
Seria hipócrita se espalhasse aos quatro ventos (como o faz a multidão, nas redes sociais, por exemplo) o que é certo e errado, e endeusasse o "certo", quando no meu eu mais profundo agitam-se desejos e fantasias impublicáveis de tramas e traições, de banquetes e surubas.
Sou contraditório. Mas quem não é? Na primeira parte do dia, nas manhãs tranquilas, desejo abraçar todo mundo. Mas, compreendam-me, é impossível passar o dia todo em serena voltagem. E isso, vejam bem, que me afastei das páginas policiais e políticas dos jornais, sites, rádio e TV. 
Hora de buscar um pouco de glicose. 
Chocolate. 
Compreendam-me, não consigo suportar muitas horas do dia cantando em silêncio ou a plenos pulmões as mais românticas canções. Agitam-se pensamentos obscuros, energizados pela ira e a inveja.
Não, Baby. Nossa mente racional é apenas uma fatia do bolo. Depois de uma bebida, pílulas e outras drogas, teu verbo arromba as grades, como se fossem gaiolas de alumínio. E então, naturalmente, transformo-me num cafetão irado e você numa bela ninfeta super star do happy hour.


(Diário de B. B. Palermo)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Eichmann em Jerusalém - Hannah Arendt


LEITURA DA SEMANA


SINOPSE


Sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense, Adolf Eichmann é levado para Jerusalém, para o que deveria ser o maior julgamento de um carrasco nazista depois do tribunal de Nuremberg. Mas o curso do processo produz um efeito discrepante - no lugar do monstro impenitente por que todos esperavam, vê-se um funcionário mediano, um arrivista medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos.É justamente aí que o olhar lúcido de Hannah Arendt descobre o 'coração das trevas', a ameaça maior às sociedades democráticas - a confluência de capacidade destrutiva e burocratização da vida pública, expressa no famoso conceito de 'banalidade do mal'. Numa mescla de jornalismo político e reflexão filosófica, Arendt toca em todos os temas que vêm à baila sempre que um novo morticínio vem abalar os lugares-comuns da política e da diplomacia.
RESENHA
A máquina burocrática do mal

A filósofa Hannah Arendt pôde acompanhar o julgamento de um dos mais famosos nazistas em Israel e analisa nessa obra o que viu e ouviu. Ela começa fazendo uma pequena biografia de Eichmann, e o descreve como um aluno medíocre em seus tempos de escola e que não conseguiu terminar os seus estudos, e estava destinado em um emprego sem perspectivas de futuro. Por causa disso, quando Eichmann teve a oportunidade de entrar para uma unidade da SS ficou muito feliz. Primeiramente foi designado para reunir informações a respeito da maçonaria, mas o trabalho não foi adiante. Foi então mandado para a parte que cuidava dos assuntos judaicos. Passou então a estudar o sionismo e a manter contato com autoridades judaicas sionistas. Eichmann passou a admirar os sionistas porque os considerava idealistas, ao contrário dos assimilacionistas e dos judeus ortodoxos, a quem desprezava. Passou a trabalhar então no centro de emigração dos judeus austríacos, onde sentiu-se bem.
Foram pensadas algumas alternativas para a questão judaica, como a expulsão, a concentração e,por fim, a solução final: assassinato. Eichmann nesse período assistiu à morte de alguns judeus na câmara de gás e por fuzilamento, mas nunca abandonou o seu posto. Arendt nota que o exército nazista nunca ameaçou de morte alguém que tivesse se recusado a participar de tais eventos, por causa disso Eichmann não tinha como se desculpar. O programa de extermínio dos judeus havia sido inspirado pelo projeto de eutanásia de 1939, no qual cerca de 50 mil doentes mentais e outros inválidos haviam sido executados na câmara de gás. Na época, esse programa havia sido denunciado pelo arcebispo Von Galen. O programa foi então extinto, mas Von Galen infelizmente iria apoiar a invasão da Rússia pelos exércitos alemães, e isso iria custar a vida de 20 milhões de soviéticos.
Arendt escreve então sobre o pastor Heinrich Grüber, que foi convocado pelo tribunal e parecia ser uma grande testemunha para descrever a personalidade de Eichmann. O resultado foi decepcionante. A descrição do pastor Grüber sobre Eichmann foi errônea e, mais, quando confrontado pelo tribunal se havia alertado o réu que suas atitudes( do réu) eram criminosas, disse que nunca o fez porque considerava os atos como mais significativos do que as palavras. O próprio Eichmann negou que alguém em qualquer oportunidade tivesse dito para ele que o que ele fazia estava errado. Algumas páginas adiante Eichmann disse que agia de acordo com a noção Kantiana de dever. Ou seja, aja como se sua vontade possa se tornar a lei universal. Arendt defende Kant, e o fato foi que Eichmann distorceu o argumento e considerou sempre que a vontade do Führer deveria ser a lei universal.
A história sobre o comportamento das diversas nações europeias e suas reações à ordem nazista de extraditar os judeus para os campos de extermínio revela a grandeza de duas nações, segundo Arendt: a Dinamarca e a Itália. Nesses países a maioria da população judaica conseguiu sobreviver e seus governos opuseram-se às ordens de Berlim.
***
A tragédia que se abateu sobre os judeus, e o fato de que pela primeira vez desde o tempo dos romanos os judeus poderem julgar eles próprios crimes contra seu povo, e a visão de que aquele julgamento serviria como base para que crimes como esse nunca mais acontecessem, tudo isso esteve presente no julgamento de Eichmann. Arendt percebeu que ele seria condenado à morte desde o princípio. A grande tarefa do tribunal era como mostrar ao réu suas responsabilidades e não permitir que ele se defendesse alegando ser apenas uma peça em uma complicada máquina burocrática, além de ser um cidadão que respeitava as hierarquias e ordens de seu governo. No fim, o mais importante é como definir responsabilidades individuais em crimes cometidos pelo Estado. Foi isso que esteve em julgamento em Jerusalém.
https://felipepimenta.com/2013/03/10/resenha-de-eichmann-em-jerusalem-de-hannah-arendt/

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...