segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

NOTAS DE UM CADELÃO

Estava no centro da cidade e cruzei por duas garotas cujas camisetas estampavam o nome CÉLINE. Será que elas leram o grande livro dele, "Viagem ao fim da noite"? Ou pelo menos ouviram falar desse grande escritor, a época que viveu, sua escolhas na política (apoiou o anti-semitismo), a desgraça de ter caído no esquecimento na última parte de sua vida... Talvez as peculiaridades, e também a visão de mundo, desses gênios signifique nada para grande parte das gerações atuais. Será que teriam razão em bradar que não têm nada a ver com histórias, artes e ideias de gerações passadas? Ah, esqueci de dizer: as estampas das camisetas eram bem bonitas!
OBS.: acabei de consultar o Google e percebi meu erro: as estampas não têm nada a ver com o escritor Louis-Férdinand Céline, mas sim com outra marca. Foi mal.
Já que estamos nessa, vou trazer aqui algumas frases... do escritor:

“Quando não se tem imaginação, morrer é pouca coisa, quando se tem, morrer é demasiado.” 
“A maior parte das pessoas morre apenas no último momento; outras começam a morrer e a ocupar-se da morte vinte anos antes, e às vezes até mais. São os infelizes da terra.” 
“Confiar nos homens é já deixar-se matar um pouco.” 

(Diário de B. B. Palermo)


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Menos chocolate, Baby


Sim, estou preocupado com as queixas das garotas a respeito desses caras insensíveis que só querem ficar, presos ao seu orgasmo e prazer animal, fugindo de compromissos mais sérios. Também me sinto de coração partido, Baby, apesar de admitir que o meu coração, como o desses caras, é de galináceo. Mas não escrevo textos românticos para agradar, e até enganar, numa linguagem açucarada. Minha ilha não tem apenas paisagens deslumbrantes. Se a primeira imagem é de praia paradisíaca, no subsolo alastra-se o esgoto, que destroça corações e mentes.
Sim, se escrevesse bem poderia ser lido por multidões, publicando auto-ajuda. Mas não seria sincero, estaria em contradição com o que passa no íntimo.
Seria hipócrita se espalhasse aos quatro ventos (como o faz a multidão, nas redes sociais, por exemplo) o que é certo e errado, e endeusasse o "certo", quando no meu eu mais profundo agitam-se desejos e fantasias impublicáveis de tramas e traições, de banquetes e surubas.
Sou contraditório. Mas quem não é? Na primeira parte do dia, nas manhãs tranquilas, desejo abraçar todo mundo. Mas, compreendam-me, é impossível passar o dia todo em serena voltagem. E isso, vejam bem, que me afastei das páginas policiais e políticas dos jornais, sites, rádio e TV. 
Hora de buscar um pouco de glicose. 
Chocolate. 
Compreendam-me, não consigo suportar muitas horas do dia cantando em silêncio ou a plenos pulmões as mais românticas canções. Agitam-se pensamentos obscuros, energizados pela ira e a inveja.
Não, Baby. Nossa mente racional é apenas uma fatia do bolo. Depois de uma bebida, pílulas e outras drogas, teu verbo arromba as grades, como se fossem gaiolas de alumínio. E então, naturalmente, transformo-me num cafetão irado e você numa bela ninfeta super star do happy hour.


(Diário de B. B. Palermo)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Eichmann em Jerusalém - Hannah Arendt


LEITURA DA SEMANA


SINOPSE


Sequestrado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense, Adolf Eichmann é levado para Jerusalém, para o que deveria ser o maior julgamento de um carrasco nazista depois do tribunal de Nuremberg. Mas o curso do processo produz um efeito discrepante - no lugar do monstro impenitente por que todos esperavam, vê-se um funcionário mediano, um arrivista medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos.É justamente aí que o olhar lúcido de Hannah Arendt descobre o 'coração das trevas', a ameaça maior às sociedades democráticas - a confluência de capacidade destrutiva e burocratização da vida pública, expressa no famoso conceito de 'banalidade do mal'. Numa mescla de jornalismo político e reflexão filosófica, Arendt toca em todos os temas que vêm à baila sempre que um novo morticínio vem abalar os lugares-comuns da política e da diplomacia.
RESENHA
A máquina burocrática do mal

A filósofa Hannah Arendt pôde acompanhar o julgamento de um dos mais famosos nazistas em Israel e analisa nessa obra o que viu e ouviu. Ela começa fazendo uma pequena biografia de Eichmann, e o descreve como um aluno medíocre em seus tempos de escola e que não conseguiu terminar os seus estudos, e estava destinado em um emprego sem perspectivas de futuro. Por causa disso, quando Eichmann teve a oportunidade de entrar para uma unidade da SS ficou muito feliz. Primeiramente foi designado para reunir informações a respeito da maçonaria, mas o trabalho não foi adiante. Foi então mandado para a parte que cuidava dos assuntos judaicos. Passou então a estudar o sionismo e a manter contato com autoridades judaicas sionistas. Eichmann passou a admirar os sionistas porque os considerava idealistas, ao contrário dos assimilacionistas e dos judeus ortodoxos, a quem desprezava. Passou a trabalhar então no centro de emigração dos judeus austríacos, onde sentiu-se bem.
Foram pensadas algumas alternativas para a questão judaica, como a expulsão, a concentração e,por fim, a solução final: assassinato. Eichmann nesse período assistiu à morte de alguns judeus na câmara de gás e por fuzilamento, mas nunca abandonou o seu posto. Arendt nota que o exército nazista nunca ameaçou de morte alguém que tivesse se recusado a participar de tais eventos, por causa disso Eichmann não tinha como se desculpar. O programa de extermínio dos judeus havia sido inspirado pelo projeto de eutanásia de 1939, no qual cerca de 50 mil doentes mentais e outros inválidos haviam sido executados na câmara de gás. Na época, esse programa havia sido denunciado pelo arcebispo Von Galen. O programa foi então extinto, mas Von Galen infelizmente iria apoiar a invasão da Rússia pelos exércitos alemães, e isso iria custar a vida de 20 milhões de soviéticos.
Arendt escreve então sobre o pastor Heinrich Grüber, que foi convocado pelo tribunal e parecia ser uma grande testemunha para descrever a personalidade de Eichmann. O resultado foi decepcionante. A descrição do pastor Grüber sobre Eichmann foi errônea e, mais, quando confrontado pelo tribunal se havia alertado o réu que suas atitudes( do réu) eram criminosas, disse que nunca o fez porque considerava os atos como mais significativos do que as palavras. O próprio Eichmann negou que alguém em qualquer oportunidade tivesse dito para ele que o que ele fazia estava errado. Algumas páginas adiante Eichmann disse que agia de acordo com a noção Kantiana de dever. Ou seja, aja como se sua vontade possa se tornar a lei universal. Arendt defende Kant, e o fato foi que Eichmann distorceu o argumento e considerou sempre que a vontade do Führer deveria ser a lei universal.
A história sobre o comportamento das diversas nações europeias e suas reações à ordem nazista de extraditar os judeus para os campos de extermínio revela a grandeza de duas nações, segundo Arendt: a Dinamarca e a Itália. Nesses países a maioria da população judaica conseguiu sobreviver e seus governos opuseram-se às ordens de Berlim.
***
A tragédia que se abateu sobre os judeus, e o fato de que pela primeira vez desde o tempo dos romanos os judeus poderem julgar eles próprios crimes contra seu povo, e a visão de que aquele julgamento serviria como base para que crimes como esse nunca mais acontecessem, tudo isso esteve presente no julgamento de Eichmann. Arendt percebeu que ele seria condenado à morte desde o princípio. A grande tarefa do tribunal era como mostrar ao réu suas responsabilidades e não permitir que ele se defendesse alegando ser apenas uma peça em uma complicada máquina burocrática, além de ser um cidadão que respeitava as hierarquias e ordens de seu governo. No fim, o mais importante é como definir responsabilidades individuais em crimes cometidos pelo Estado. Foi isso que esteve em julgamento em Jerusalém.
https://felipepimenta.com/2013/03/10/resenha-de-eichmann-em-jerusalem-de-hannah-arendt/

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Pedaços de um caderno manchado de vinho - Charles Bukowski


LEITURA DA SEMANA - Passagens do livro

“Bêbado outra vez num quarto do tamanho de um pacote de biscoitos, sonhando com Shelley e juventude, barbudo, um filho da puta desempregado com uma carteira cheia de bilhetes premiados tão impossíveis de reembolsar quanto os ossos de Shakespeare. Todos odiamos poemas de comiseração e lamúrias de um pobre sofredor – um bom homem pode vencer qualquer parada e saudar a prosperidade (assim nos disseram), mas quantos homens de valor você consegue apanhar num jarro hermeticamente fechado? E quantos poetas de qualidade você consegue encontrar na IBM ou roncando sob os lençóis de uma prostituta de cinqüenta dólares? Mais homens de valor morreram pela poesia do que todos os seus campos de batalha de merda; então se eu cair de bêbado num quarto de quatro dólares: você já ferrou com sua história – deixe que eu me vire com a minha”.

E tendo observado meu pai, aquele monstro brutal que abastardou minha experiência sobre esta triste terra, percebi que um homem podia trabalhar a vida inteira e ainda assim continuar pobre; seus vencimentos se consumiam na compra de coisas que ele precisava, pequenas coisas, como automóveis e camas e rádios e comida e roupas, pelas quais, como as mulheres, pediam mais do que valiam e o mantinham pobre, e até mesmo seu caixão foi um ultraje final à decência: toda aquela bela e lustrosa madeira para os cegos vermes do inferno”.

“Estamos cercados pelos mortos que ocupam posições de poder porque, de maneira a obter esse poder, é necessário que morram. Os mortos são fáceis de encontrar – estão por toda a parte a nossa volta; a dificuldade está em achar os que estão vivos”.

"seu amor é Cuba com uma barba,
uma multidão de dez centavos respirando rum;
seu amor é beisebol de gravata-borboleta
tocando bandolim para Bhahms;
seu amor são gatos agitados em minha mente;
seu amor é um bêbado de gim
e loucos santarrões vendendo panfletos na East First;
seu amor é um traje sob medida numa cela solitária;
seu amor é o naufrágio dos navios,
o torpedo da dúvida;
seu amor é vinho e pintura
e a pintura de Picasso;
seu amor é um urso hibernando no porão de Moulin Rouge;
seu amor é uma torre em ruínas,
destruída pelo raio de Eiffel;
seu amor percorre as colinas
e escala as montanhas
e dispara russos para a lua.
por que
você se
afasta?"
 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Vinte e quatro horas


Passa da meia noite
e você continua com sede
então olha para o céu
mistura lua e estrelas.
Solitário 
vê o firmamento
e não desconfia
que é privilegiado.
Saída de escape
da morte
disposta a salvar-te
por punhados de reais
a loja de bebidas funciona
das vinte e quatro às vinte e quatro.
Antes que decida
entre cerveja e vinho
no caminho
o cão acorrentado
esbraveja num beco
joga-se na grade.
Quer libertar-te.
Carros rebaixados
vidros escuros
pancadas de funk. 
O rostinho da lua minguante
despede-se na reta final 
do horizonte.
À tarde você passou pela mesma rua e viu, lado a lado, uma igreja e um bailão da terceira idade, bombando. Numa casa humilde um casal de velhinhos. Olhar fendido no horizonte a senhora, picada pelo AVC, move com fragilidade uma bola de basquetebol. O que lhe resta nessa altura da vida é a fisioterapia. Você viu o sujeito bombado músculos braços peitos salientes pernas finas fazendo força para equilibrar vaidades e desejos numa face preocupada e triste.
Meia noite e a rua está deserta.
Descansemos, irmãos.
Amanhã haverá muito trabalho
e nenhum tempo pra sentir.

(Diário de B. B. Palermo)


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Doutor, quem matou o Donga?


Fui aos botecos da periferia respirar uma vida mais pulsante. Algo me dizia que a inspiração se refugiou nesses lugares. Meus sentidos eram antenas que captavam todo e qualquer movimento. Doutor, busquei coragem para ouvir de um homem qualquer uma história que sacudisse a vida. Ao entardecer pousei no Tocha Branca. Alguns pretos amarelos brancos e de outras cores bebiam e jogavam o tempo com suas solitárias companhias. Havia um preto enrolando seu cigarro de palha e notei que era simpático e bom de papo, com seus gestos largos que buscavam o horizonte. Paguei-lhe uma cachaça como aproximação e convite para que me contasse algo interessante em sua vida. De preferência algo épico. O filho da mãe não me disse o nome, apenas que era conhecido por Justileia. E não titubeou, Doutor. Falou isso e aquilo, trabalhou com muitos patrões em diversas fazendas, era bem querido nos vilarejos por onde passou.
Pedi para que narrasse o acontecimento mais marcante de sua história. Ele então relatou o seu ato mais heroico: matou, com dezenove golpes de faca, um dos bandidos mais temidos da cidade. Não descreverei os detalhes, Doutor. Disse que o Donga parecia ter o corpo fechado, isso mesmo, não morria mesmo depois de retalhado por tantas estocadas. Diante da resistência do bandido em não partir dessa, meu herói do Tocha Branca decidiu por um golpe mais incisivo: degolou-o.
Doutor, se por um lado Justileia permitiu que a cidade repousasse mais sossegada, por outro lado, após cometer o crime, seu sofrimento triplicou. Teve que sumir por uns tempos. Fugir dos parentes do Donga, que o juraram de morte, e também da polícia, para não ser preso. Tinha dois filhos, um casal de crianças de três e cinco anos. Elas foram adotadas e com o passar dos anos e perambulando de um lugar para o outro ele perdeu o contato. Solitário, hoje ele afoga a saudade com martelos e martelos de cachaça.
Sim, Doutor, o Senhor tem razão. O fato de sair pelas ruas e becos em busca de histórias e personagens, e anotá-las bem ou mal num possível livro, isso tem a ver com o desejo de permanecer (de ser lembrado), depois que eu me for.
Mas tem outra coisa que preciso contar pro Senhor. Durante uma semana, em diferentes dias, percorri vários botecos em busca de relatos épicos. Caramba, ouvi outros bêbados, amarelos pretos brancos e de outras cores, e não é que pelo menos uns cinco disseram que esfaquearam e degolaram o Donga, e todos com dezenove facadas? Pobrezinho. E que bom. Na cidade o que não faltam são heróis. Pelas minhas contas, o animalzinho foi abatido por quase duzentas facadas. 

Parece que a vida se resume nisso, Doutor: avançar de golpe em golpe, inventando ou improvisando (de acordo com a plateia) nossos atos grandiosos, talvez convencendo menos aos outros que nos ouvem e mais a nós mesmos, de que em nossas vidas realizamos belas epopeias. Hem, Doutor, quantas vezes potencializamos (ou reinventamos?) nosso passado, nossos feitos, como algo grandioso, mesmo que as outras pessoas deem a mínima pra isso?

(Diário de B. B. Palermo)

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Pergunte ao grilo


Você que cultiva e compartilha crenças no trabalho escola ou igreja. Que todo mês faz as contas como num ritual que serve de portal para acessar o Hades. Que sai de fininho se a expectativa no amor foi frustrada. Você que sabe de cor, após o repouso dopado, como deve ser a política e a economia. Permita-me arriscar: você pouco sabe dos mistérios e da beleza da vida. É que você esqueceu de perguntar ao grilo, que apenas cricri. A noite os sonhos os pesadelos, o grilo não tem teorias verdadeiras, não diz se é do bem ou do mal, não diz quem é homofóbico ou racista, machista ou não. O grilo apenas apenas cricri. Você que reclama de boca cheia e cospe na cara dos outros, você que se transforma em bandido ou mocinho na intensidade do porre. Você precisa aprender com o grilo, que nada professa, que não reivindica aos quatro ventos sua liberdade de expressão. O grilo apenas apenas cricri.


(Diário de B. B. Palermo)

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Hilda Hilst - O místico e o filosófico de ser escritora e se inconformar com a morte

Hilda Hilst é uma figura de extremos que ultimamente tem se tornado cada vez mais famosa. Um de seus maiores desejos em vida era justamente “ser lida”, algo que ela teve a certeza de que iria acontecer pouco antes de sua morte, quando uma grande editora, a Globo Livros, se comprometeu em editar sua obra completa a partir de 2001. Hilda morreu em 2004, morando em Campinas, o seu refúgio da vida badalada que teve em São Paulo na juventude.
Além da obra completa de Hilda Hilst que engloba textos em prosa, poesia e teatrais, a Editora Globo também publicou o livro “Fico besta quando me entendem” que compila diversas entrevistas concedidas por Hilda Hilst durante sua vida. Assim como em seus livros, os temas existenciais, místicos e filosóficos são constantes e se misturam com o cotidiano, a política e o ser escritora.
“As pessoas perguntam sempre por que a gente escreve e eu fico pensado em todos os motivos que levam de repente uma pessoa a escrever e penso que a raiz disso em mim está na vontade de ser amada, numa avidez pela vida. Quem sabe também se não é uma necessidade de viver o transitório com intensidade, uma força oculta que nos impele a descobrir o segredo das coisas. Uma necessidade imperiosa de ir ao âmago de nós mesmos, um estado passional diante da existência, uma compaixão pelos seres humanos, pelos animais, pelas plantas.”
Quase premonitória, Hilda Hilst também fala de como a necessidade de se rebelar contra a morte também acompanha o ofício de escritora.
“A verdade é que, diante da morte, a gente nunca está realmente conformada. É por isso que penso que o que me leva a escrever é uma vontade de ultrapassar-me, ir além da mesquinha condição de finitude.”
Os motivos psicológicos e existenciais para se escrever são mais ou menos claros para Hilst, porém há o conteúdo e a relação dele com a própria vida. Ela que se isolou em seu sítio em Campinas para escrever é talvez um dos exemplos mais importantes da relação entre a vida e a literatura, de como andam juntas:

“É bem verdade que o escritor está sempre falando de si mesmo, porque é somente através de nós mesmos que podemos nos aproximar dos outros. Desnudando-nos, procuramos fazer com que os outros se incorporem ao nosso espaço de sedução. Estendemos as teias e desejamos que o outro faça parte delas, não para devorá-lo, mas para que sinta perplexidade e faça a pergunta, para que tome conhecimento da possível qualidade do nosso fio-sedução; caminhe conosco, num veículo que pode ser afetivo-odioso.” […] “Samuel Beckett na sua peça Dias Felizes escreve: “Eu não posso dizer mais; diz-se o que se pode”. Prefiro dizer: Quero falar tudo nos meus textos e posso dizer ainda mais. Faço perguntas possíveis a mim mesma: se eu falasse com a voz do mundo, como falaria? Se eu falasse com a voz dos ancestrais (que representa o sangue e o sêmen dentro de mim) haveria refulgência de uma nova voz? É preciso tentar tudo, experimentar tudo. Talvez assim a verdade, a resposta, seja encontrada.”
Consciente das complicações intelectuais e dos limites do escritor em desbravar com profundidade e domínio todos os temas, Hilda Hilst, assim como Bioy Casares ecoa ao redimir-se de um prefácio infeliz, mostra que a humildade e a disposição a se corrigir também são essenciais para se fazer literatura:
“Temos todos nós, escritores, os nossos textos infelizes, mas sempre sobra algum deles tatuado de sagrado e de magia.”
Repleto desse conhecimento visceral que Hilda Hilst cultivou durante toda sua vida, “Fico besta quando me entendem” é leitura obrigatória para quem quiser entender uma das maiores escritoras brasileiras.
Veja também um trecho da peça “Osmo” baseada nos textos de Hilda Hilst e o que Jorge Luís Borges também tem a dizer sobre ser um grande escritor.

http://www.pantagruelista.com/blog/hilda-hilst-escritora

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Palavrões, usar ou não usar? - Millôr Fernandes


 São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos.
 
  É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia.
 
  "Pra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz melhor a idéia de muita quantidade do que "Pra caralho"? "Pra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?
 
  No gênero do "Pra caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "Nem fodendo!". O "Não, não e não!" e tampouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, absolutamente não!" o substituem. O "Nem fodendo" é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranqüila, para outras atividades de maior interesse em sua vida.
 
  Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo "Marquinhos, presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!". O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Lupicínio.
 
  Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional. Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!". O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha. São dessa mesma gênese os clássicos "aspone", "chepone", "repone" e, mais recentemente, o "prepone" - presidente de porra nenhuma.
 
  Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um "Puta-que-pariu!", ou seu correlato "Puta-que-o-pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba...Diante de uma notícia irritante qualquer um "puta-que-o-pariu!" dito assim te coloca outra vez em seu eixo.
 
  Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.
 
  E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cu!"?
 
  E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no olho do seu cu!". Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta:
 
  "Chega! Vai tomar no olho do seu cu!".
 
  Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua auto-estima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
 
  E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar:
 
  "Fodeu!".
 
  E sua derivação mais avassaladora ainda:
 
  "Fodeu de vez!".
 
  Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando você parar:
 
  O que você fala?
 
  "Fodeu de vez!".
 
  Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"? O "foda-se!" aumenta minha auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta.
 
  "Não quer sair comigo? Então foda-se!".
 
  "Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!".
 
  O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição Federal.
 
  Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se.
 

domingo, 1 de janeiro de 2017

O selfista - Carpinejar


Sempre que me aproximo de quem está tirando uma selfie, eu tenho medo de atrapalhar. É como encontrar alguém nu ou se masturbando. É ser vítima de um atentado violento ao pudor. 
Fico com vontade de pedir desculpa, viro o rosto, evito encarar.

O selfista demonstra uma carência extrema, é um solitário pretendendo demonstrar que é conhecido. Desperta compaixão, insinua uma orfandade de amigos. 
Quem faz selfie pensa que ninguém está olhando, está possuído da vaidade e não compreende o quanto é patético.

O rosto sério passa a ser falsamente sorridente com a mão levantada. Um minuto atrás era uma careta, um minuto após é um sorriso de canto a canto da boca, sem nenhuma motivação secreta. Como pode rir se nada aconteceu de diferente?

As pessoas comuns inventaram o riso súbito, para concorrer com o choro profissional e o beijo cênico dos atores. O selfista transforma a tela em uma metralhadora de toques, até achar um momento que preste.

A busca pelo ângulo perfeito beira a obsessão. Tem gente que posa 10 horas para si mesmo, à procura de um instante de satisfação. Lota a caixa de imagens somente para atualizar as redes sociais. Um flagrante salvo significa 99 deletados. Já é compulsão, já é doença, já é vício.

Não tem como não se incomodar com o autorretrato virtual. Ele se baseia numa mentira. Boa selfie é aquela que parece que foi clicada por uma outra pessoa. Precisa de extensão do braço e de uma mirada ao lado, como se pego de surpresa. Ou seja, selfie é a negação da selfie. Se fosse algo agradável, ninguém teria vergonha de esconder como foi feita.

Quando testemunho alguém manipulando o celular freneticamente para todos os lados, a minha ânsia é chamar a Samu. É um ataque epilético do narcisismo.

O homem ou a mulher vai se debatendo com o aparelho, esfaqueando-se com o celular, quase se esganando de contorcionismo. Coloca o cabelo para frente e para trás, morde os lábios, encolhe a barriga, suspende a respiração, gira o quadril para enquadrar a melhor paisagem, não poupa esforços para fingir leveza.

Qualquer um que enxerga a cena acaba nervoso.

Trata-se de uma tragédia silenciosa. O selfista não se contenta jamais, percebe um defeito invisível no nariz, nos olhos, no penteado, mesmo quando há nada de errado. Alucina, não está mais entre nós. A ausência de confiança produz uma tortura infinita. Cada foto é o reconhecimento do que falta na aparência, cada foto piora a vontade de viver, cada foto é um aborto.

O selfie virou um espelho que anda e substitui a realidade.
Nem estou falando dos filtros e retoques, onde você tenta apagar as imperfeições e simplesmente desaparece dos registros, só ficando o lugar em que estava.
(Donna ZH 31 de dezembro de 2016 e 1 de janeiro de 2017)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...