sexta-feira, 20 de março de 2015

“Silenciosa algazarra” – a vertente crítica de Ana Maria Machado


“Silenciosa algazarra” – a vertente crítica de Ana Maria Machado
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB) 

Crítica sempre faz falta. Um artista precisa se acostumar a ver seu trabalho ser comentado pelos outros, virar objeto de discussão de leituras alheias. (Ana Maria Machado. Silenciosa Algazarra, p.269) 

“Silenciosa algazarra: reflexões sobre livros e práticas de leitura (Companhia Das Letras, 2011) é o mais recente livro de Ana Maria Machado na vertente da crítica literária. O livro reúne quatorze ensaios com temas diversos: a censura, a prática da leitura com crianças em hospitais, aspectos da intertextualidade na literatura infantojuvenil, a importância da leitura, entre outros. Esses textos selecionados foram apresentados em congressos, seminários e palestras no Brasil e no exterior. Ainda consta a monografia inédita” Contador que conta um conto faz contato em algum ponto”, texto premiado pelo Instituto Goethe, no concurso comemorativo ao bicentenário dos irmãos Grimm. 
Na monografia que conquistou o prêmio do Instituto Goethe, a escritora discorre, inicialmente, sobre aspectos teóricos dos contos populares e depois compara contos recolhidos pelos irmãos Grimm com as versões brasileiras desses contos apresentadas por Monteiro Lobato no livro “Histórias de tia Nastácia”. 
No ensaio “A importância da leitura”, apresentado no Encontro Nacional “Crer para Ver”, São Paulo (novembro de 2008), Ana Maria Machado remete o leitor a ideias prazerosas sobre o ato de ler. Para Clarice Lispector, era uma “felicidade clandestina”; Jorge Luis Borges imaginava que “o paraíso era uma biblioteca infinita”; Virgínia Woolf confidenciou, numa carta, que “o céu deve ser uma longa leitura contínua, sem que a gente nunca se canse”; Katherine Mansfield garantia que não havia “maior alegria que a de ler”. 
Diante das opiniões de escritores mundialmente consagrados, o que nos diz Ana Maria? 
“A leitura abre horizontes mentais e emocionam de forma fantástica. Faz nossa inteligência crescer e permite que nossa passagem pelo mundo seja mais útil para nós mesmos, nossa família, nossa comunidade, nossa sociedade, toda a espécie humana”. (p.27)
Em “História em hospitais”, a escritora relata a experiência que teve com a leitura de alguns de seus livros para crianças hospitalizadas e dá exemplos com livros de outros autores. Ela cita o livro de Graciliano Ramos – “A terra dos meninos pelados” como um livro capaz de fascinar a garotada que passa pela experiência da calvície devido à quimioterapia. 
A leitura para crianças internadas em hospitais, nas palavras de Ana Maria, “pode lhes revelar formas de enfrentar seus problemas ou simplesmente distraí-las”. (p.63) 
“Nas asas da liberdade” foi fruto de uma palestra realizada em Lima (Peru), no 1º. Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil, em 2010. 
Além de problemas relacionados com a censura, a ensaísta apresenta depoimentos pessoais que revelam o espírito de independência que acompanha a escritora desde pequena. 
A revelação que se segue denota como foi o primeiro contato da escritora com a censura: 
“Meu primeiro contato com a censura não foi como criadora, e sim como leitora: na realidade antes de ser leitora, durante a primeira ditadura que vivi, a de Getúlio Vargas, que governou o Brasil de 1930 a 1945. Eu nasci na última semana de 1941.” (p. 197) 
Ana Maria gostava muito das histórias de Monteiro Lobato que eram lidas por seus pais em casa. Naquela época, não sabia que os livros de Lobato sofriam variados graus de repressão e recebia orientação dos pais para que não falasse sobre essas leituras. 
Nos últimos da ditadura Vargas, o pai de Ana Maria, que era jornalista no Rio de Janeiro, escreveu um artigo no jornal que o censor do governo não aprovou. Por conta disso, o jornal foi apreendido e o pai foi preso. Naquela ocasião, Ana Maria estava na companhia do pai e os dois foram levados para o cárcere. As autoridades permitiram que a menina ficasse com o pai por algumas horas, depois o tio foi chamado e levou-a para casa. Contava apenas três anos. 
Algum tempo depois a família se mudou para Buenos Aires, e Ana Maria, que já estava com seis anos, foi matriculada em uma escola. 
Um dia, a professora mandou fazer um desenho sob o título: “Esta es mi bandera”. Como brasileira, a menina desenhou a bandeira brasileira e cunhou a frase: “Esta es mi bandera”. A professora explicou que ela devia desenhar a bandeira argentina. Veio um novo desenho, agora sob o título: “Esta es tu bandera”. Novo protesto da professora e a ordem: desenhe a bandeira da Argentina com o título sugerido. A reação da pequena foi desenhar duas bandeiras e a brasileira maior do que a da Argentina. Por este ato de rebeldia, a menina foi expulsa da sala de aula e o pai chamado à diretoria. Para continuar estudando naquele colégio, o pai pediu a interferência do embaixador brasileiro na Argentina. 
Quando voltou ao Brasil, ainda criança, foi estudar em um colégio religioso. Certa vez, no pátio, foi feita uma fogueira dos livros de Monteiro Lobato. A mãe não deixou que a menina levasse os livros de Lobato que tinha em casa. Curiosa como toda criança, ela perguntou à professora o motivo da queima dos livros e ouviu esta explicação: Lobato era comunista e alguns livros dele falavam mal da religião e desrespeitava a igreja. 
Esses acontecimentos levaram-na a refletir alguns anos mais tarde que “censura não parte somente de governos ditatoriais, ela está associada, também, a fundamentalismos religiosos ou políticos.” (p. 200)
Mas, foi em 1969 que a escritora sentiu os efeitos reais da censura. Eram os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. Foi presa e proibida de dar aulas na universidade. Partiu para o exílio. Na Europa, durante três anos, enviou contos infantis para a revista Recreio. Nascia, assim, a escritora Ana Maria Machado. 
O período da ditadura militar foi muito fértil para os escritores de literatura infantil no Brasil. São palavras da autora: “... a literatura infantil corria em trilhos mais discretos. Era coisa de mulher e de crianças, não era algo que esses generais lessem e ouvissem em toda parte, como a música popular.” (p.204/205). 
É compreensível que, nesse período, Ruth Rocha tenha publicado a história do “Reizinho Mandão” e Ana Maria “Era uma vez um tirano”. Nas entrelinhas, evidenciava-se o protesto contra os governos autoritários, mas eram livros para crianças... 

Citado do blog: http://nastrilhasdaliteratura.blogspot.com.br/2011_07_01_archive.html

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Pra que cara feia?



Computador pifou... TV silenciou...
Pedem laudos, documentos. 
A vida anda
muito burocrática. 
Leio Leminski, e me consolo:

"Pra que cara feia?
Na vida
ninguém paga meia."

domingo, 22 de fevereiro de 2015

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Criação



No princípio 
era o raio 
e o trovão
hoje 
é descarga 
elétrica.
Deus 
cansou 
de criar 
o mundo
e contratou 
os poetas.

(Do livro: Canções pra não dormir! Ilustração de Guilherme Barrozo) 

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Reforço na torcida do São Luiz



Eis o Teco, um FANÁTICO torcedor, com ilustração da professora Andreia Czyzewski. Ele aproveita este espaço pra chamar todo mundo a participar da campanha deste ano, rumo à Primeira Divisão do Campeonato Gaúcho:


"São Luiz, São Luiz, São Luiz
Você me espera que eu vou aí
São Luiz, São Luiz, São Luiz
Tua torcida está aqui!"

“Galera, venham todos à baixada
participar dessa aventura!
Vamos empurrar o nosso RUBRO

rumo à PRIMEIRONA!”




domingo, 15 de fevereiro de 2015

Você lembra como escolheu o time do teu coração?

Igual a outros meninos,
de toda e qualquer idade,
eu gosto bar-ba-ri-da-de
de um jogo de futebol.
É que a turma da escola
come, bebe e arrota bola
faça chuva ou faça sol!
Ando chateado:
alguns querem 
que eu seja gremista
outros, que seja colorado...
Papai e mamãe me querem seu
o dia inteiro.
De manhã sou Saci
de tarde sou Mosqueteiro...
Os parentes oferecem
camisas dos times como prêmio,
pra que eu torça pro Inter,
ou pra que torça pro Grêmio.

Um dos tios é colorado...

(Do livro: Teco, o poeta sonhador, em: segredos do coração. Ilustrações de Vilson Wagner)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O porão de minha infância


Vocês lembram da casa de infância, e do porão que havia por lá?
Com oito anos eu já não tinha medo de ficar sozinho no porão. Estava acostumado com aquele lugar. Muitas vezes utilizava a escada, que ficava na despensa da cozinha, para chegar lá. Buscava qualquer coisa que meu pai ou minha mãe pediam.
Nele estavam as pipas com o vinho, a vara de taquara pendurada no teto, com salame, alho e cebola. Também as tulhas, onde eram armazenados os cereais, como o feijão, a pipoca e o amendoim. Havia a lata cheia de banha, e outras latas, com doces e geleias. Ah, também o saco com pinhões, que no inverno minha mãe assava na chapa do fogão.
No verão, o porão da casa era fresquinho, e ali descansavam os melões e as melancias, à espera dos serões, de noite, quando eram “devorados”.
E era nesse lugar que meu pai recebia as visitas para provarem o vinho...  Era ali, também, que eu me refugiava, quando as tias, ou as madrinhas, me intimidavam com seus comentários, do tipo “ai, que gracinha!”,  “já tem namorada?”


(do livro Os mistérios do porão)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Meu primeiro poema...

Minha vida de personagem, poeta sonhador, começou com este poema, que eu declamei no dias dos pais.

“Papai sonhou que recebeu a visita de seus primeiros sapatos. Eles disseram por onde andaram e o que fizeram em sua companhia. Derramaram lágrimas e lágrimas porque já não aguentavam dormir e acordar, acordar e dormir algemados no armário do porão...
Papai prendeu os sonhos no armário do porão e muito tempo depois as chaves ele perdeu...
Papai escondeu no armário os sonhos mais preciosos enquanto correu atrás de outras coisas que ele nunca desejou...
Papai também sonhou que recebeu a visita dos seus anjos da guarda. Eles o ensinaram a nadar no riacho, curaram o bicho-de-pé e a unha encravada.
Viram papai subir no pé de pitangueira, jogar futebol no gramado e roubar bergamotas no terreno do vizinho.
Papai sonhou também que recebeu a visita do caniço de pescar, do bodoque e do livro que a primeira profe lhe deu.
Também vieram de visita a primeira bicicleta, as pandorgas e as bolhas de sabão, o porquinho-da-índia, o arco-íris e o beija-flor, o banho de cachoeira, a mamadeira e os gibis, os cadernos e suas orelhas.
Vieram tantos amigos que naquele dia o coração de papai disparou de alegria!
Papai descobriu que os sonhos não avisam quando vão libertar-se do porão... e descobriu, também, que a felicidade não está guardada no armário do amanhã...
De vez em quando, papai, é preciso espiar por detrás dos ombros, e acenar para os brinquedos que sua vida conquistou!
Neste dia não esqueça de dar um pontapé na preguiça, para ser, com alegria, criança como eu sou!”


(Do livro Teco, o poeta sonhador, em: os mistérios do porão.)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Pequena crônica policial - Mario Quintana


Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
La continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Fora da caixa


Tua música não é rock, regae ou rap. Num momento mágico, quando tocas meu coração vertem flores das minhas mãos. Minha alma de Frankenstein fica num vermelho incerto quando passas por perto. Preciso de piercings e brincos, alegres, doloridos, para te encantar? Farei a loucura de cantar o meu amor, pra todo mundo ver e ouvir, seminu pelas ruas e avenidas ou do décimo primeiro andar! Posso investir num smartphone, tablet ou celular, com todos os códigos e senhas - nem que me transforme num “Eu, etiqueta”, como disse o poeta. Sei que no final da festa não sou grande coisa e, por qualquer coisa, você me deleta! Mas escute, anote e aguarde: ainda não tenho idade pra cair em desgraça. Com tua presença afundo na fossa, sem identidade, reputação e nome limpo na praça.
Depois que te vi, hoje, saí fora da caixa!


(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Inútil luar - Manuel Bandeira


Neste poema Bandeira abre espaço para o doce e surpreendente cotidiano.

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

Dormem as sombras na alameda
Ao longo de ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha...

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se a meu lado.
Medita, há no seu rosto uma ânsia...
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel...
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas...

Com outro moço que se cala.
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
 - de política,

Adiante uma senhora, magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
 - "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Príncipe, meu cachorro - Thiago de Mello



"...Hoje não quero perder a oportunidade de me lavar de um silêncio ingrato que faz tempo cometo com o meu inesquecível Príncipe. O Príncipe dos Poetas? Não. Príncipe é o nome do cachorro companheiro meu durante mais de 10 anos aqui na floresta. Vira-lata garboso, preto brilhante, dorso arqueado, pernas altas, olhar caricioso. Desde pequenino gostava de ficar, sempre atento, estendido na varanda da frente da casa. Não era rueiro. Só deixava a casa para namorar, que ele não era de ferro. Não me deixava sair sozinho. Ia na minha frente, abrindo caminho.
Tinha um faro infalível para a índole das pessoas. Quando o Príncipe rosnava grosso para alguém que me procurava, era aviso de que a pessoa não era flor de cheiro. Tinha certas implicâncias insondáveis. Quando eu voltava de viagem, de véspera ele adivinhava a minha chegada: dava saltos de alegria, as crianças achavam que ele estava ficando maluco. De manhã cedinho ia para o porto, ficava horas à espera do barco. Mal eu desembarcava, ele corria ao meu encontro, erguia o corpo e pousava as patas  dianteiras no meu peito, enquanto eu lhe acariciava o dorso aveludado. Era um amigo mesmo. Envelhecido, magro, perdeu as forças para caminhar. adoeceu, e fiz o que pude para salvá-lo. Não saía do seu lugar, no alto da varanda. Só aceitava água e umas bocadas de arroz cozido só pra ele. Um dia seu lugar amanheceu vazio. Ninguém nunca encontrou o seu corpo, nem na água nem na mata. Príncipe não morreu, se encantou".

Da apresentação do livro A poesia dos bichos. Ed. Bertrand Brasil, 2002.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

"Falando com os botões" - Lygia Bojunga

"Às vezes, numa noite de insônia, num embalo de rede, numa viagem de trem, eu gosto de dar linha pra minha memória. Só pra ficar vendo até onde é que ela vai. Aqui e ali dou um puxão na linha, pra ver se a memória volteia bonito pra mais e mais longe. E uma vez, num desses puxões, a minha memória chegou o mais longe que eu já consegui fazer ela voar: eu me vi aos quatro anos, sentada no chão, a minha mãe do lado, o costureiro também; e me escutei dizendo: 
— Tu ficas muito tempo sem falar. 
E ouvi ela respondendo: 
— Engano teu: eu estou falando.
Falando com quem?
— Com os meus botões. 
— Eu não ouvi.
— Quando a gente fala com botão, os outros não escutam.
Foi a primeira vez que eu me lembro de ter sintonizado nessa expressão que a minha mãe gostava muito: falar com os botões.
A resposta da minha mãe, quando eu disse que ela ficava muito tempo sem falar, me deixou meio perplexa. Não pelo fato dela falar com botão (ou com linha, ou com tesoura): tipo da coisa natural. O que eu achei extraordinário foi a minha mãe ficar assim, falando tanto tempo. Logo ela: uma mulher de tão pouca fala. A conclusão não demorou: se a minha mãe fica esse tempo todo batendo papo com os botões é porque o papo é ótimo! (Conclusão que logo emprestou aos botões uma qualidade mágica.) E, se minha mãe fala com eles, eu também vou falar, ué.
E falei.
E falei e falei.
Mas eu falava em voz alta: afinal de contas, falar era falar. E vivia à cata de novos interlocutores. No fundo mais fundo de tudo que é costureiro, em qualquer pacotinho que eu encontrava no meio de linha e de lã, lá estava eu fuçando, atrás de novos botões pra conversar. De quê? Ora, do casamento do botão de madeira, do nascimento do botão de madrepérola, do noivado do botão de metal, da doença e morte de um botão sem furo. E, já imitando o mundo adulto, que parecia achar muito natural a estranhíssima divisão adotada de alguns ricos para muitos pobres, eu também, lá no meu mundinho, já tinha os Botões Ricos (trabalhados em metal) e uma porção de Botões Pobres (de pano e de osso) pra conversar. 
Acho que um dia a minha mãe ficou intrigada de ver que eu não conversava com alfinete, nem com agulha, nem com linha, e então me perguntou:
— Por que que tu só falas com botão?
— Tu também, ué.
E só aí ela me explicou que aquela expressão significava falar com a gente mesma, pensar, meditar. E, outra vez querendo imitar a minha mãe, eu larguei a prática de conversar com os botões e me iniciei na prática de falar com os meus botões.
Até o fim da vida, a minha mãe se demorou nesses falatórios com ela mesma. Quando ela já estava muito doente, uma vez eu entrei no quarto dela e vi ela de olho fechado, sem se mexer. (Essa é uma das únicas cenas em que me lembro dela de mão parada.) O susto me pregou no chão. Mas lá pelas tantas ela abriu o olho, estudou minha cara, e a mão se mexeu, fazendo um gesto negativo. A voz confirmou o gesto:
— Ainda não, minha filha: eu só estava falando com os meus botões.
Foi a procura dos botões que me levou mais fundo nos costureiros que acompanhavam a minha mãe; foi de tanto a minha mão andar por lá, num convívio cada vez mais estreito com tesoura e linha, e com agulha e lã, que eu comecei a achar que trabalhar com a mão era uma coisa tão da vida feito comer e dormir: era bom.
Foi bom querer imitar a minha mãe nos trabalhos manuais e aprender que a mão é um instrumento único.
É bom."

BOJUNGA, Lygia. “Falando com os botões”. In: Feito à mão. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2005, pp. 47-53


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

ET AUAU



De qualquer ETnia, é senhor de todas as graças. Se não tem pedriguee, isso pouco importa. ET pintas brancas e pretas, ET de verde esperança. Às vezes dengoso e solto das patas. ET late pra mim e a menina, de patins, nem me olha. Meu olhar implora a seus olhos, tropeça no vazio e fica na fossa. Ela não precisa de patins e de ET pra ser cheia de graça. E eu não passo de um ETerno sonhador, sem AUAUtonomia e fingida alegria.


(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Lero Lero - Cacaso

http://letras.mus.br/cacaso/687388/

Lero lero

Cacaso

Sou brasileiro de estatura mediana
Gosto muito de fulana mas sicrana é quem me quer
Porque no amor quem perde quase sempre ganha
Veja só que coisa estranha, saia dessa se puder
Não guardo mágoa, não blasfemo, não pondero
Não tolerolero lero devo nada pra ninguém
Sou descansado, minha vida eu levo a muque
Do batente pro batuque faço como me convém
Eu sou poeta e não nego a minha raça
Faço versos por pirraça e também por precisão
De pé quebrado, verso branco, rima rica
Negaceio, dou a dica, tenho a minha solução
Sou brasileiro, tatu-peba taturana
Bom de bola, ruim de grana, tabuada sei de cor
Quatro vez sete vinte e oito nove´s fora
Ou a onça me devora ou no fim vou rir melhor
Não entro em rifa, não adoço, não tempero
Não remarco, marco zero, se falei não volto atrás
Por onde passo deixo rastro, deixo fama
Desarrumo toda a trama, desacato Satanás
Sou brasileiro de estatura mediana
Gosto muito de fulana mas sicrana é quem me quer
Porque no amor quem perde quase sempre ganha
Veja só que coisa estranha, saia dessa se puder
Diz um ditado natural da minha terra
Bom cabrito é o que mais berra onde canta o sabiá
Desacredito no azar da minha sina
Tico-tico de rapina, ninguém leva o meu fubá

sábado, 31 de janeiro de 2015

Três pactos de morte - Paulo Henriques Britto



Como se fôssemos pássaros
voamos contra a vidraça.

Dançamos duas valsas sobre a mesa.
Roemos os ângulos dos móveis.

Copulamos em pleno voo, depois
nos atiramos na chama da vela.

E um cheiro forte de borracha queimada
nos acompanha até o paraíso. 


***
1. Antes que fôssemos mumificados por completo, você descobriu uma maneira de apodrecer tão depressa que fosse impossível até mesmo para o mais hábil mumificador do Alto Egito.
2. Nossos resíduos rolaram rio abaixo e foram vistos a trinta e cinco quilômetros do Delta, tentando desesperadamente dissolver-se na salmoura do mar.
3. Estado coloidal.

***
Embora não fôssemos nem um pouco
como duas gazelas se apascentando entre as açucenas,

nem muito menos como um rebanho de cabras
que descesse as colinas de Galaad,

nem por isso merecíamos ser confortados,
em vez de com bálsamos e maçãs,

com meio vidro de formicida cada um
num quarto de hotel barato em Cafarnaum.


(do livro Macau)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Os filhos do sim - Heloisa Seixas



Este conto da Heloisa Seixas vai nos levar a uma reflexão sobre a questão da mudança de comportamento na relação pais e filhos nos últimos tempos (contemporâneos). Tempos pós-repressão. 

A mulher estava sentada lendo um livro, na sala, quando ouviu o grito da filha. Depois, um estrondo de porta batendo. Murmúrios, passos. E a mocinha apareceu na sala, com uma expressão terrível no rosto. Tinha acabado de se pesar na balança do banheiro. Engordara um quilo. “Um quilo!”, dizia, aos gritos, a ponto de a mãe pedir que baixasse a voz, por causa dos vizinhos.

E a menina saiu da sala, com o rosto amarrado. Pouco depois, entrou o filho. Suando, chegava da academia. Tinha, também, um ar atormentado. Entrou, cumprimentou a mãe e desapareceu a caminho do chuveiro, parecendo imensamente cansado. E a mulher ficou outra vez sozinha na sala, pensando. Fechou o livro e levantou-se, caminhando até a janela. Pensava no sofrimento dos jovens de hoje.

Filhos e filhas daqueles que fizeram a revolução da contracultura – dos hippies, loucos, guerrilheiros – esses jovens poucas vezes ouvem um NÃO na vida. É uma geração para a qual quase nada é proibido. Os pais de agora, que foram jovens nos anos loucos, têm enorme dificuldade em impor disciplina. Deixam os filhos fazer tudo. Chegar tarde, sair durante a semana, trancar-se no quarto e dormir com a namorada ou o namorado – tudo. 

Talvez isso tenha criado um vazio na vida desses rapazes e moças, refletiu a mulher, olhando as luzes da rua. Os jovens de hoje formam uma geração que pode tudo. Com acesso livre a todas as informações, têm, diante de si, enorme variedade de ofertas de consumo.... Biscoitos, por exemplo, pensou a mulher. No tempo dela, só havia dois ou três tipos de biscoito doce. Hoje, em qualquer lojinha de posto de gasolina, há prateleiras inteiras de biscoitos de todos os tipos, recheados ou não, com chocolate amargo ou de leite, com nozes ou passas, tudo. Biscoitos demais. Mas, para quê? Inútil paisagem. Não se pode comer! E quem proíbe? São eles mesmos, os jovens.

Eles mesmos inventam aquilo que não se pode fazer. Precisaram criar suas próprias impossibilidades – talvez pelo excesso de vezes em que ouviram um SIM dos pais. Porque o ser humano precisa do proibido. Então agora é proibido comer, é proibido não ter músculos, é proibido ser feio, é proibido envelhecer. O padrão de beleza vigente é irreal. Parece ter sido criado apenas para fazer sofrer – pois é inalcançável. Qualquer mocinha que não viva à base de alface e água – a não ser as que, por natureza, tenham a sorte de ser excessivamente magras – vai se olhar no espelho e chorar porque não tem aquele aspecto de campo de concentração que se vê nos anúncios de moda (incluindo os olhares, tão tristes). 

É essa a vida dos jovens, hoje – concluiu a mulher, dando de ombros. Coitados. São os filhos do sim.”

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Aves desejantes - Paulo Fensterseifer




Amigos, eis uma bonita (e valiosa) contribuição para pensarmos a relação dos humanos com os bichos. O poema foi escrito pelo professor Paulo Fensterseifer, e a ilustração é da professora Andreia Aparecida Czyzewski.


sábado, 24 de janeiro de 2015

Agostar de você



Por que fui cavar, cavar para desenterrar o sapo e beijar a princesa, se anjo não dá moleza? Sonhar com o primeiro beijo, num camping, praia ou passeio. Pra que tanto sofrer e penar, se comigo ela não quer ficar? Pesquisei todos os passos na internet, como ter lampejos para ganhar seu primeiro beijo. Anatomia, biologia e geografia. Mapeei no imaginário pescoço, bochecha, orelha, testei perfumes para ter pra mim sua alegria. Seus nãos são pura adrenalina que me jogam com vontade num bote em alto-mar. Se na primavera agostava só um pouco, no verão agosto muito mais. Embora agosto seja mês de cachorro louco, vou remar, remar até lá, pois é tri-agridoce te agostar!


(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Realidade



Mãe e filho precoces. O pai desaparece. É fácil olhar do outro lado da rua e julgar a realidade que, nua, a nossos olhos se transveste. Estou no meio do povo e faço de conta que dou conta de toda a verdade. Meus olhos usam filtros, leis, mordaças, e são cruéis com a realidade. Ajusto, ajusto, até ficar satisfeito com os limites de minha compreensão. Também minha palavra foi forjada por duras ferramentas. A palavra que busco ao poema é outra – sempre - e foge, se distancia, como uma sombra. Ou dá o bote, como uma serpente.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Amor ou humor?



Em alguns momentos “anormais”, em que tudo foge do previsto, aquilo que gostaríamos que acontecesse, buscamos um consolo (ou desculpa). Para dirimir a frustração, dizemos: “Eu tive um pressentimento de que isso ia acontecer”. Nessas horas “rir é o melhor remédio”. Érico Veríssimo afirmou que “em certos momentos o que nos salva nem é o amor, é o humor”.
***
Um adolescente, aluno do Ensino Médio, me contou como faz para gabaritar as provas de Ensino Religioso. Dentre as alternativas para as questões, escolhe sempre respostas que agradam a professora, tais como: “Eu amo Jesus”. “Quando eu crescer, quero ter fé em Deus”. Nada de questionamentos existenciais, do tipo: “De onde vim?”, “Para onde vou?”. Ou perguntas mais radicais, tais como: “Se Deus nos ama, porque permite tanta violência e pobreza no mundo?” E acrescenta:
- Se eu disser o que penso, que é mais ou menos “Foda-se isso! Foda-se aquilo!”, ela vai me mandar sair da sala de aula e ir direto pra coordenação da escola.
Perguntei-lhe, então:
- Você fica angustiado e infeliz, por ter que dizer o que agrada à profe, e te garante passar de ano sem pegar exame?
- Não. Até que não sofro. Tanto é que estou aqui contando e rindo desse fato. Obter nota alta ou não numa disciplina não vai resolver minhas dúvidas sobre crença religiosa.
Aproveitando a deixa, falei-lhe da estreita relação entre liberdade de expressão e responsabilidade, e também de que não há sociedade e (óbvio) escola sem uma certa repressão. Daí a importância de abrirmos espaços para o humor; rir de determinadas situações, usando-as como válvulas de escape para nossas frustrações.
Além do humor, há a possibilidade da ironia. O que não podemos aceitar é a visão simplista de que no mundo existem apenas duas possibilidades: de que ou estamos certos ou estamos errados, e de que os outros, que pensam diferente de nós, são nossos inimigos.
Rir dessas situações. Sim. O que mais nos “salva” nessas horas é a ironia e o humor.
Tudo bem. Há momentos em que temos que escolher entre A ou B, em vez de ficar em cima do muro. Mas no exercício do pensamento, da reflexão, deve haver mais de duas possibilidades.
O Mais importante é não abrir mão da dúvida, de desconfiar de nossas verdades “cômodas”. O pensamento científico, por exemplo, progride porque os cientistas desconfiam, duvidam e testam suas teorias e conhecimentos.

***
A conversa que tive com o adolescente voltou à lembrança nestes dias, com o atentado ao jornal francês. Um dos temas, de novo, é “liberdade de expressão”. O que podemos falar publicamente, assumindo o risco de sermos escolhidos como inimigos dessa ou daquela ideologia – inclusive inimigos da “palavra de Deus” (ou inimigos dos que acreditam e agem “em nome” de determinada divindade).
Parece que caminhamos pra tudo quanto é lado, inclusive para trás. Mas o pior é que aqueles que têm certeza de qual é o verdadeiro caminho a seguir, que nos leva “para frente”, são os fanáticos, e esses são os mais perigosos à vida, pois matam em nome de “verdades” para eles absolutas.

Rindo ou chorando, considero que vivemos numa época em que os passos da humanidade, diferente do andar do caranguejo, são absolutamente imprevisíveis.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

TIRADAS...



Somos todos bichinhos de estimação, demarcando territórios e acenando das vitrines e das sacadas dos prédios: 
- Ei, estou aqui! Olhem pra mim!.

(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Tirar o pé...



Quando confessou ao amigo de que cansou de sonhar, e de que agora vai ser mais realista, este respondeu-lhe:
- Pra caminhar tem que tirar o pé do chão!

domingo, 4 de janeiro de 2015

Esboço da teoria da pessoa normal


Estamos esboçando a teoria da pessoa normal. Quem quiser pode contribuir. 
Pessoa normal é aquela que cansou de ficar na crista da onda.
Pessoa normal é aquela que cansou de estar sempre na moda.
Pessoa normal é aquela que cansou de chegar sempre em primeiro.
Pessoa normal é aquela que cansou de competir como gato e rato.
Pessoa normal é aquela que cansou de ter a melhor selfie.
Pessoa normal é aquela que cansou de ter algumas dúzias de calçados e guarda-roupa lotado.
Pessoa normal é aquela que tá a fim de compartilhar:
- os espaços públicos de lazer...
- o respeito e cuidado dos idosos e dos bichos abandonados...
- ...

Agora, amigos, deixo para vocês sugerirem ações e comportamentos que nos  caracterizam como pessoas normais...

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Novela - Elias José






A vaca amarela
ganhou uma rosa amarela
e uma declaração de amor
de um boi voador,
louquinho por ela.

A vaca amarela
sorriu, jogou beijo
e ficou mais bela.
O boi voador deu a ela
uma aliança de noivado.

Marcaram o casamento,
montaram uma casa.
O boi voador prometeu
não voar mais.

Na despedida de solteiro,
o boi voador resolveu voar
só um pouquinho...

Só que voou, voou,
e até hoje não voltou
.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Janela sobre o medo - Eduardo Galeano


Agora compreendo por que tanto barulho, tantos fogos, na virada do ano. Para Eduardo Galeano, "o medo do silêncio atordoa as ruas". E diz mais:
"O medo ameaça:
Se você amar, vai pegar aids.
Se fumar, vai ter câncer.
Se respirar, vai se contaminar.
Se beber, vai ter acidentes.
Se comer, vai ter colesterol.
Se falar, vai perder o emprego.
Se caminhar, vai ter violência.
Se pensar, vai ter angústia.
Se duvidar, vai ter loucura.
Se sentir, vai ter solidão."

(Do livro, As palavras andantes)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...