segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Ser Nêne


Ser Nêne é não ter desconfiômetro, e circular por aí com o som do carro a todo volume.
Dirigir e conversar no celular, esquecer de usar o pisca-pisca, posicionar-se no meio da pista, obstruir todos os espaços da rua.
Ser Nêne é dizer que todo político é corrupto, e que por isso vai votar em branco, mas quando ninguém está olhando cruza o sinal vermelho, joga o lixo no chão, fura fila e nem fica vermelho.
Ser Nêne é falar bem alto no celular, mesmo nos espaços públicos.
Ser Nêne é dizer “não gosto de tal livro e de tal autor” sem nunca ter lido uma página sequer.
Ser Nêne é não saber usar algumas expressões básicas de convívio, tais como “por favor”, “muito obrigado”, “desculpe” e “com licença”.
Ser Nêne é fazer as coisas com maldade, arrogância e segundas intenções.
Ser Nêne é cantar os pneus, dirigir em alta velocidade no perímetro urbano.
Ser Nêne é...

Você tem razão, amigo. Eu não devia pegar tão pesado com os nênes. Até porque ser Nêne virou regra, em vez de exceção.
Sim, existem nênes simpáticos até, uma mistura de ingenuidade com cegueira.
Eu conheço um Nêne engraçado. Sua dose de má-criação, talvez, deve-se ao fato de ter nascido prematuro, ou fora de época. Quem sabe em outro século poderia ter sido pacato cidadão normal.
Desde criança ninguém podou suas asas. Não o incentivou a se instruir mais, e exercitar sua autonomia.
Então, quem é o culpado quando ele faz suas cagadas?
Vocês sabem... O que pode fazer um Nêne diante dos perigos deste mundo?
Ser Nêne hoje é uma válvula de escape, se defender para sobreviver...

Pior... Não tem como fugir. O clima mal esquentou e os nênes proliferam por aí como mosquito da dengue.

domingo, 28 de setembro de 2014

O assalto - Mia Couto


A atualidade do conto a seguir tem a ver com a atualidade do seu tema: pouco conversamos com os outros. Principalmente com pessoas de terceira, quarta idades. O personagem reage com pavor pelo fato de ter sua vida posta em risco diante de um assalto. Mas fica surpreso quando vê que o assaltante reivindica algo diferente (no seu "roubo"): ele assalta em nome de uma conversa. E mais surpreendente ainda é que, em vez de falar, ele quer ouvir histórias de sua vítima...


Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado. 
Tudo se embrulhava em apuros e eu fazia contas à vida. O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos.

— Para trás!Obedeci à ordem, tropeçando até me estancar de encontro à parede. O gelo endovenoso, o coração em cristal: eu estava na ante-câmara, à espera de um simples estalido. Cumpria os mandamentos do assaltante, tudo mecanicamente. E mais parvalhado que o cuco do relógio. O que fazer? Contra-atacar? Arriscar tudo e, assim sem mais nem nada, atirar a vida para trás das costas?
Diga qualquer coisa.
— Qualquer coisa?
— Me conte quem é. Você quem é?

Medi as palavras. Quanto mais falasse e menos dissesse melhor seria. O maltrapilho estava ali para tirar os nabos e a púcara. Melhor receita seria o cauteloso silêncio. Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu temia por entender. O serviço do terror é esse — tornar irracional aquilo que não podemos subjugar.
Vá falando.
— Falando?

— Sim, conte lá coisas. Depois, sou eu. A seguir é a minha vez.
Depois era a vez dele? Mas para fazer o quê? Certamente, para me executar a sangue esfriado, pistolando-me à queima-roupa. Naquele momento, vindo de não sei onde, circulou por ali um furtivo raio de luz, coisa pouca, mais para antever que para ver. O fulano baixou o rosto, e voltou a pistola em ameaça.

Você brinca e eu …
Não concluiu ameça. Uma tosse de gruta lhe tomou a voz. Baixou, numa fracção, a arma enquanto se desenvencilhava do catarro. Por momento, ele surgiu-me indefeso, tão frágil que seria deselegância minha me aproveitar do momento. Notei que tirava um lenço e se compunha, quase ignorando minha presença.

— Vá, vamos mais para lá.

Eu recuei mais uns passos. O medo dera lugar à inquietação. Quem seria aquele meliante? Um desses que se tornam ladrões por motivo de fraqueza maior? Ou um que a vida empurrara para os descaminhos? Diga-se de passagem que, no momento, pouco me importavam as possíveis bondades do criminoso. Afinal, é do podre que a terra se alimenta. E em crise existencial, até o lobisomem duvida: será que existe o cão fora da meia-noite?
Fomos andando para os arredores de uma iluminação. Foi quando me apercebi que era um velho. Um mestiço, até sem má aparência. Mas era um da quarta idade, cabelo todo branco. Não parecia um pobre. Ou se fosse era desses pobres já fora de moda, desses de quando o mundo tinha a nossa idade. No meu tempo de menino tínhamos pena dos pobres. Eles cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres. A pobreza converteu-se num lugar monstruoso. Queremos que os pobres fiquem longe, fronteirados no seu território. Mas este não era um miserável emergido desses infernos. Foi quando, cansado, perguntei:

— O que quer de mim?— Eu quero conversar.— Conversar?— Sim, apenas isso, conversar. É que, agora, com esta minha idade, já ninguém me conversa.
Então, isso? Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção. Se ninguém lhe dava a cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que fosse a tiro de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto.

E me sentei, sem hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em cores e mentiras. No fim, já quase ele adormecera em minhas histórias eu me despedi em requerimento: que, em próximo encontro, se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos sentaríamos ambos num bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou:

Não faça isso. Me deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto.

E se converteu, assim: desde então, sou vítima de assalto, já sem sombra de medo. É assalto sem sobressalto. Me conformei, e é como quem leva a passear o cão que já faleceu. Afinal, no crime como no amor: a gente só sabe que encontra a pessoa certa depois de encontrarmos as que são certas para outros.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

À beira-mar - stanislaw Ponte Preta

Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler “Maravilhas da Biologia”, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia.
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia.
O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.
Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo.
― Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando-se muito – explicou o menininho, dando outra fungada.
O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.
― Não faça isso, meu filho – disse ele (e depois viemos a saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: ― Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.
O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:
― Deixa eu jogar neles.
O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:
―Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.
O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: ―Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.
― Por minha causa? Estranhou o chato. ― Mas que casal é aquele?
― O homem eu não sei – respondeu o menininho. ― Mas a mulher é a sua.

Preta, Stanislasw Ponte. O gol do padre & outras crônicas. Ática: 1997.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Taca-lhe fogo no CTG, Marcos véio!"


Quem assiste o comercial da cerveja Polar, fazendo um tributo à Revolução Farroupilha, não deixa de levar um susto. Tendo como garoto propaganda o Peninha (Eduardo Bueno), chamado de “o maior historiador do mundo”, o comercial pretende fazer um “revisionismo histórico”, afirmando taxativamente que o RS venceu o Brasil – “deu de relho” na revolução.
A novidade da Polar é fazer diferente de outras marcas de cerveja. Não vende um mundo dos sonhos, ilusório, de juventude e beleza, etc. e tal. Ao escolher o tema da nossa tradição histórica, nos obriga a pensar sobre a mesma – e rever nossas certezas. Além do mais, aborda o tema usando um recurso retórico que herdamos da filosofia grega: a IRONIA.
Segundo o Aurelião, ironia vem do grego e significa “interrogação”. E também “modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo”.
Esta é a ironia do personagem, o “maior historiador do mundo”. Disse o Peninha, numa entrevista ao jornal Zero Hora de 7/09/2014, ao ser perguntado sobre a propaganda que ele protagoniza para a mais bairrista marca de cerveja do RS: “Será exagerado, histriônico e debochado... como eu mesmo (risos). Sempre achei sensacional a ideia de ironizar essa certeza tão gaúcha de que somos os maiores e os melhores em tudo – que, aliás, eventualmente parece ser levada a sério por certos segmentos da mídia...”.
É óbvio que Peninha faz o comercial com o objetivo de ganhar fama e dinheiro, segundo as leis do mercado. Mas também nos obriga a pensar nossa mania de grandeza. Toca nos temas significativos da cultura, de forma exagerada, levando-nos à dúvida, estranhamento e ao questionamento: “O que será que ele quis dizer?” “Será que esse historiador pensa exatamente assim sobre a nossa história?”
Nas mensagens habituais da publicidade quase todas as mães são loiras, as famílias são felizes, nosso carro representa nosso poder, físico e sexual... Enfim, “você é o que consome”.
Ao abordar o tema da Revolução, e a dúvida/certeza sobre quem venceu, o comercial da Polar não traz uma verdade (como de início aparenta). Provoca sim o exercício de pensamento a respeito de nossa história, além de bagunçar nossas verdades a esse respeito. Neste sentido se aproxima da ironia do filósofo grego Sócrates – o qual dizia que pouco ou nada sabia, e perguntava aos outros o que eles sabiam, os quais,  à medida que opinavam, iam tomando consciência dos limites do seu saber.
Ora, considero isso mais sensato do que termos uma verdade petrificada, um dogma, e sairmos “tocando fogo” em quem discorda de nossa opinião.
Vivemos um momento histórico repleto de ironias. O problema não são as ironias em si. O problema está na dificuldade que a maioria de nós temos para compreendê-las. Certamente que, se ficarmos no senso comum, sem buscarmos um senso crítico e o bom senso, nossa opinião permanecerá limitadíssima.
Será que os pilares em que fundamos a tradição gaúcha não estão com algumas (ou muitas) rachaduras? Aí, diante da insegurança de que venham a desmoronar, em vez de fazermos um esforço reflexivo, apelamos à violência, chamamos o “Marcos véio” para que vá lá e termine de vez com o debate, “tacando fogo no CTG”.
Os pilares de nossa tradição não foram feitos ao acaso. Foram construídos com nossa narrativa histórica. Fazemos escolhas quando edificamos nossa tradição. Escolhemos contar a história de vencedores ou de vencidos. Ou podemos dizer que em nossa tradição só houve vencedores, inclusive os índios, os negros e, até, o “gáucho”.
Qual o problema de hoje perguntarmos: “Será que foi bem assim, como diz Fulano? Mas qual é o interesse dele pra contar a história dessa forma?”.
E os pilares que sustentam nossa mania de grandeza, até quando se sustentam? Aliás, aqui cabe uma pergunta anterior: “Nós gaúchos temos de fato mania de grandeza?”.


De seu jeito polêmico e debochado, o “maior historiador do mundo” contribui, a meu ver, para dar uma balançada em algumas de nossas convicções. Acho isso ótimo, até porque descobri que pensar dói coisa nenhuma! 

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Lições de política com o temerário Revisor

Minha conversa com o temerário Revisor rendeu mais do que escrever histórias e de como melhorá-las. Segundo ele, aplicamos a correção e a reescrita também na ação política.
- Tu tens acompanhado o horário eleitoral? – Perguntou-me.
Disse-lhe que, curioso por novidades, assisti pela TV durante os dois primeiros dias. Caro leitor, aposto que também você daria uma resposta idêntica à minha. Certamente compartilhamos o mesmo sentimento, “O que estou fazendo aqui?” diante do aparelho de TV, ouvindo um desfile de bordões saturados, tais como “nova forma de governar”, “sou o candidato mais preparado”, “vou cuidar das pessoas”, “meu governo será um pilar”, “serei um político de atitude”, “sou um homem de palavra”, “tenho propostas concretas”.
Foi então que o Temerário iniciou sua aula para ver se abria minha cabeça.
- Tu percebeu que esse povo que torce por um partido, ou candidato, ou inclusive time de futebol, não tem luz própria? Ao abraçar uma ideologia corre-se o risco de apagar a própria luz. Sim, apegar-se ou até “endeusar” os que sobem no palco e acendem (bem ou mal, forte ou fraca) a sua luz, significa um esquecimento ou fuga de si mesmo.
Veio-me à lembrança tiradas que ouvi comentarem do Temerário, tais como: “Você precisa ouvir melhor isso porque tá aprendendo”. Para mostrar que não andava por fora, eu comentei:
- Percebo nas redes sociais que os militantes veem os candidatos adversários como inimigos a serem combatidos. Dizem que seus candidatos representam o bem, enquanto os adversários representam o mal.
- Sim, parece um combate numa arena. Há pressa para nocautear o adversário. Comportam-se assim: que a eleição ocorra o quanto antes, e que possamos garantir o poder imediatamente. Acho um absurdo não valorizar o espaço da troca de argumentos. Parecem não se importar para com a transparência nas propostas, esclarecendo mais e mais a população.
Pois é, meus amigos, soube através de terceiros que o Temerário ficou uma dúzia de anos sendo persuadido por colegas, professores e militantes. Mas ele mesmo diz que mudou. Não é mais ingênuo. Sem falsa modéstia, ouvi de sua boca a afirmação de que somos todos professores. E de que precisamos admitir que só temos a aprender com os outros. Após um breve silêncio, perguntei-lhe:
- Será que é por isso que se percebe um certo conformismo e indiferença dos eleitores, pois acreditam que grande parte das promessas não serão cumpridas?
- É bom tu ficar atento sobre como esse jogo funciona. Logo vais ter o título de eleitor, acho importante não fazer como a maioria dos eleitores mais velhos. Eles esquecem pouco tempo depois em quem votaram, e também as promessas feitas e se foram ou não cumpridas.
E acrescentou:
- Pra mim, isso é uma traição. Os políticos apostarem na falta de memória e na ignorância dos eleitores. Enquanto isso, a história se repete: grande número de pessoas sonha com a entrada em cena de um salvador da pátria, um “Messias”, não compreendem que a democracia precisa da contribuição delas para debater propostas, propor projetos, fiscalizar as administrações e auxiliar na tomada de decisões.
- Pois é, qual o problema em não aceitar ou suportar um argumento bem elaborado, razoável, por parte de quem joga num outro partido? – perguntei-lhe.
- Absurdo não admitir que o nosso programa de governo, como qualquer outro, tem suas falhas, e necessita de correções. Os conflitos e o embate de ideias e argumentos é fundamental para arejar o solo da democracia, já que no seu funcionamento a sociedade possui diferentes interesses.
Foi então que eu associei política com futebol:
- Sabe que não consigo ver diferença no debate de gremistas e colorados e o debate entre militantes de diferentes partidos?
- Exato. É um equívoco tomar esse conflito de ideias de maneira emocional (como se fosse grenal) e não racional.
Revisitando seus tempos de professor, o Revisor explicou-me que o mais importante não é estar acima do bem e do mal. Nada de ser profeta. O que estão em jogo são as manhas e artimanhas. Mas elas devem nos levar aos “cernes” das questões. Embora possam haver vários cernes - quer dizer, as verdades são relativas.
E o Temerário (cada vez menos temerário) se empolgou e acrescentou:
- Meu sonho é que cada um de nós possa tomar consciência de sua liberdade de escolha, e que tenha cada vez mais autonomia, inclusive para se sentir responsável por essas escolhas, como por exemplo em quais candidatos votar. Ah, e que tenha coragem de revisar suas crenças, em vez de se agarrar a vida inteira a elas, pois essas crenças acabam sendo obstáculos para ampliar a visão de mundo, a qual poderá quem sabe acrescentar algo de novo ao mundo do qual faz parte.
- Acho que entendi – acrescentei – em vez de serem Maria-vai-com-as-outras, e totalmente passivas, deveriam ficar mais inquietas e se engajarem na vida social...

Andei matutando, ao retornar para casa. Por que chamam o Revisor de temerário? Acho que deram-lhe este apelido porque ele diz o que pensa, enquanto a maioria teme pagar o preço para ter luz própria.


 (TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Levantadores de copo - Stanislaw Ponte Preta




Eram quatro e estavam ali já ia pra algum tempo, entornando seu uisquinho. Não cometeríamos a leviandade de dizer que era um uísque honesto porque por uísque e mulher quem bota a mão no fogo está arriscado a ser apelidado de maneta. E sabem como é, bebida batiza­da sobe mais que carne, na COFAP. Os quatro, por conseguinte, esta­vam meio triscados.

A conversa não era novidade. Aquela conversa mesmo, de bêbedo, de língua grossa. Um cantarolava um samba, o outro soltava um palavrão dizendo que o samba era ruim. Vinha uma discussão inconseqüente, os outros dois separavam, e voltavam a encher os copos.

Aí a discussão ficava mais acalorada, até que entrasse uma mu­lher no bar. Logo as quatro vozes, dos quatro bêbedos, arrefeciam. Não há nada melhor para diminuir tom de voz, em conversa de bêbedo, do que entrada de mulher no bar. Mas, mal a distinta se in­corporava aos móveis e utensílios do ambiente, tornavam à conversa em voz alta.

Foi ficando mais tarde, eles foram ficando mais bêbedos. Então veio o enfermeiro (desculpem, mas garçom de bar de bêbedo é muito mais enfermeiro do que garçom). Trouxe a nota, explicou direitinho por que era quanto era etc. etc., e, depois de conservar nos lábios aquele sorriso estático de todos os que ouvem espinafração de bêbedo e levam a coisa por conta das alcalinas, agradeceu a gorjeta, abriu a porta e deixou aquele cambaleante quarteto ganhar a rua.

Os quatro, ali no sereno, respiraram fundo, para limpar os pul­mões da fumaça do bar e foram seguindo calçada abaixo, rumo a suas residências. Eram casados os quatro entornados que ali iam. Mas a bebida era muita para que qualquer um deles se preocupasse com a possibilidade de futuras espinafrações daquela que um dia — em plena clareza de seus atos — inscreveram como esposa naquele livrão negro que tem em todo cartório que se preze.

Afinal chegaram. Pararam em frente a uma casa e um deles, depois de errar várias vezes, conseguiu apertar o botão da campainha. Uma senhora sonolenta abriu a porta e foi logo entrando de sola.

—   Bonito papel! Quase três da madrugada e os senhores completamente bêbedos, não é?
Foi aí que um dos bêbedos pediu:

—   Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de nós quatro é o seu marido que os outros três querem ir para casa.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Otávio, o temerário

Desde a infância ouvi falarem do Otávio, o temerário. É o grande olho e ouvido da cidade. Dos avisos fúnebres aos bailes. Dedicado em tempo integral à palavra - escrita, falada ou cantada - é o pombo correio que todos escutam.
Ele é o que se pode chamar de o revisor. Pequenos textos, seja científicos ou literários, dissertações, teses, livros... Os esboços que algum iniciante, depois de muita dúvida, decidiu publicar passam por seu olho de águia.
Vinte e quatro horas por dia, com amigos, em rodas de bar, está sempre farejando. Qualquer deslize nas palavras, pronúncias distorcidas, metáforas fora do contexto, e o temerário capitão anuncia “Veja bem...” e derrama meia hora de explicação lógica. Observador da linguagem e linguarudo, tem opinião para tudo.
Dorme com o rádio ligado. Sintoniza emissoras castelhanas. Tangos, polcas, milongas, chamamés. Quem me contou foi Tininha Meia Luna: enquanto dorme, os sonhos são espantados pelas canções que invadem seus ouvidos. É por isso que ele conhece todas as canções. Nunca lembra do que sonhou, mas sempre tem uma música nova pra cantarolar.
Quando conhece novos amigos, faz questão de filosofar: “Meu fígado acostumou a trabalhar no limite. Junto a outros órgãos vitais deste corpinho, ainda vão me levar à marca dos setenta anos. Cara, meu medo é o de me acostumar a viver, e depois não mais querer morrer!”
Embora metido a filósofo, Temerário sente-se em casa na poesia, e por isso tem o maior número de namoradas impossíveis de sua cidade. A mesa de trabalho está cheia de bilhetes e recortes de notícias engraçadas que ele retira de jornais. Os poemas são fragmentos dos amores rompidos, trágicos, que ele vive.
Escrevi umas historias e levei pra ele avaliar se tenho alguma veia literária.
Grave, como só ele sabe ser, deu uma olhada relâmpago e perguntou:
- Tchê, quantas vezes tu corrigiu e reescreveu isto daqui?
E, antes de eu sussurrar qualquer palavra, ele disse:

- Escrever qualquer merda, isso quase todo mundo faz. Piá, não dáaa pra ser comum!

TIRADAS do Teco, o poeta sonhador

terça-feira, 19 de agosto de 2014

De post e de circo


Todo mundo vive de pão e de circo.
Todos têm razão com seus belos motivos.
Pobre de mim, perdi dois amigos
 num dia épico de overdose. 
Era falta de pão e muita cirrose.
Menos eu, todos são príncipes - dizia o poeta.
Devoro Pessoa, com se fosse profeta.

Pensava perguntar, do alto do prédio, como faz o suicida:
Por que insistir em viver?
Suicidar-se significa enganar a morte, que dizem ter dia e hora marcada para nos visitar?
Hoje em dia, perguntas assim não emocionam ninguém.
Muita gente só quer ser curtida no facebook. Virar celebridade. Abrir as janelas da privacidade, escancarar-se para o mundo. Fazer sua dança, apresentar seu número. Mostrar a mais nova tatuagem, as fotos do casamento, as alianças do noivado, a aquisição do carro.
Inclusive o suicida, a maioria implora pra ser notada.
Saídas de emergência. Gritos desesperados: Olhem, estou aqui!
Apenas o eco, solidário, responde. Nossos gritos são garrafas jogadas em alto mar.
Quanto mais esperneamos para chamar a atenção, os outros dão a mínima para isso. Boiamos no mar confuso da solidão. Subimos e descemos ao sabor da maré do desamparo.
Privacidade jogada aos leões.
Cada um por si, maquiando as tatuagens ao redor do umbigo. Se preciso for, com muita dor. Mas dói muito mais se ninguém liga pra isso. Compartilhamos (virtualmente, claro) o bolo da mamãe. Os primeiros passos do filho. Os sentimentos e a inteligência de nosso cão. O início e o fim da festa. O aniversário. A viagem. A formatura.
Tem prazer maior do que as curtidas que visualizamos depois, em nossa página?
Tem sofrimento maior do que a indiferença para com nosso post, inteligente, original, criativo?
Somos e não somos o centro do mundo. Depende do tamanho de nossa ilusão. Somos e não somos o início e o fim de tudo. Depende da imaginação. O problema são os outros. Boa parte de mim resulta do que me fizeram. Nasci livre, mas me deixaram prisioneiro. Mas eu o permiti. Agora, ao reclamar, não passo de eco.
Teses e teses. Meras pretensões de verdade. E a verdade lá fora, disfarçada de qualquer coisa, ri da nossa cara, e se afasta quando estendemos a mão.
Aqui estou, com estes fragmentos, cheio de pretensão para que se torne um texto, lido por muitos. Também quero ser curtido, escutado, comentado. Igual todo mundo.
Rabisco estas linhas nos guardanapos do bar, enquanto aguardo o início do jogo. O jogo vai terminar empatado, vitória de um time ou de outro. O texto talvez não passe de vaga mensagem, presa numa garrafa, boiando solitária em alto mar.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

As impressões digitais - Eduardo Galeano


Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
- Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.

(Do livro: O livro dos abraços. L&PM POCKET).

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Minha cadela se chama Tina



Tenho uma boxer que chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Três vezes por semana separamos nossas armas, coleiras e focinheiras, afinamos os cheiradores e vamos passear. 
Posso ser pedinte, virar o lixo e ser imundo, mas no meu íntimo sou o dono do mundo.
Meu tio abraçou as convenções para se acostumar com o som do seu nome. A acústica, o tom da voz, lembram sempre seu continente, tão vasto e tão algoz.
Quando entoavam sua pronúncia, as pedras uivavam e abafavam o seu silêncio de nuvem derradeira. Foi assim que fracassou na décima primeira missão de curar a dor das pedras.
Hoje meu tio ouve a música do seu nome com orgulho, pois tem uma cadela que chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Conhece todas as pets da cidade, e quando ouve os cães uivarem seus olhos de ET se enchem de luz.
Mas eu não consigo me acostumar completamente, com o fato de os bichos aceitarem o meu desejo de se tornarem gente. Se eu quero um dia voltar pro mato, por que eles precisam vir pra cidade, e me imitar?
Já não liguei, quando estava no bar com amigos, ceiando e brindando às pencas, e os vira-latas se aproximavam com seus olhares humildes, orelhas, pulgas e pelos, a implorar não só comida mas também carinho.
Repentinamente eu vi, com estes lindos olhos que a terra há de comer, que também sou vira-latas catando abraços, olhares e suspiros poéticos. E o que agora me preocupa é nem ligar pra isso.
Sei que estou pretensioso demais ao ver com certo medo os bichos se tornarem gente. Embora eu também seja guaipeca que fugiu das vitrines e correu até os lugares apinhados de gente, a implorar um novo lar.
Mas me soa estranho minha cidade ter quase o mesmo número de animais do que de gente. E minhas orelhas empinam quando vejo humanos passarem mais necessidade do que os bichos. Nessas horas lembro de um pedaço de uma música do Caetano: “Algo parece estar fora da ordem, da nova ordem mundial...”.
Temo pelos animais domésticos. Tenho pesadelos quando penso numa possível revolução dos bichos. E sofro também por mim, que me tornei doméstico.
Mas sei também que se eu forçar até o limite do meu olhar, até o limite da minha compreensão, se eu dobrar as vontades mais urgentes, então compreenderei feliz que não sou mais do que aranha, cobra, gato, cão e carrapato, pois todos nós temos nossos humores, manhas e artimanhas, para sobreviver pelo menos até amanhã de manhã.

O que me consola é que tenho uma boxer que chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Três vezes por semana agarramos coleira e focinheira e, faceiros como as árvores e os postes, deslizamos a passear.


TIRADAS do Teco, o poeta sonhador

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Existe educação ideal?


Penso na educação ideal. Penso muito sobre isso, afinal sou pai e professor.
Penso na idade ideal para se alcançar a aprendizagem ideal. Repito tanto a palavra “ideal” porque é esse o objetivo (e sonho) de nós adultos.
Alguém já perguntou às crianças sobre qual é o seu ideal?
Abrimos um pouco mais os olhos, tentamos outros ângulos de observação, e percebemos chocados que a gurizada pouco está ligando para esse ideal dos adultos. Então, esperneamos e chegamos à conclusão (meio resignada) de que o futuro deles vai ser uma catástrofe.
Outro dia um pai queixou-se do seu filho, de 12 anos de idade. As velhas e conhecidas dificuldades: notas baixas, repetência de ano, déficit de atenção, enfim, o menino manifesta grande indiferença para com a escola.
Com sofrimento desenhado pelos pés de galinha em torno dos olhos, o pai desfiou uma ladainha de preocupações a respeito do futuro do rebento. O menino não serve pra nada, é um inútil – e essa conclusão é reforçada ao comparar a “performance” de seu filho com o desempenho de alguns filhos de amigos e vizinhos.
Os pais sonham e projetam nos filhos, muitas vezes, aquilo que eles não alcançaram. E investem, inclusive boa grana, para que os filhos realizem o que eles não puderam realizar.
Parece-me cada vez mais comum: quanto mais a família, a escola e a sociedade apertam o cerco, impondo regras de utilidade, mais se fazem notar crianças e jovens “inúteis”.
Nessas horas vemos coisas interessantes. A criança pode ter déficit de atenção e aprendizagem, mas não de alegria e de poesia. E procura ganhar fôlego indo à biblioteca, e mergulhar nas histórias dos livros, para respirar um ar mais leve.
Porém nós adultos, obcecados pela ideia de utilidade, não percebemos esses sintomas – e um deles é o de rejeitarem esse alimento que não lhes apetece. E é por isso que a escola esperneia, tentando empurrar goela abaixo aqueles saberes que podem ser “úteis” a esse modelo de sociedade, mas que dão pouco prazer a quem deles se alimenta.

No fundo no fundo, estamos bastante desamparados. Pais, professores, crianças e jovens. E então nos agarramos com desespero à primeira corda de salvação que nos jogam. Carentes de luzes (próprias) que mostrem quais possíveis caminhos escolher, agarramos com unhas e dentes o que a sociedade utilitarista oferece. Com muita renúncia, estresse, e quase nenhum prazer.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...