terça-feira, 12 de março de 2013

Fome


"Eu não quero faca nem queijo, 
eu quero é fome" (Adélia Prado).

Não basta me apressar, se estou distante do paraíso.
Não basta querer vencer, se amanhece e fico triste.
Não basta entardecer, para ganhar o teu sorriso.
Não basta me encolher, se quero amor e auto-estima.
Não basta te encontrar, se não partilho esse teu ritmo.
Não basta te intuir, se eu não sei como fazer.
Não basta me contemplar, se eu não quero passar em branco.
Não basta me maquiar, se eu não quero levar um tombo.

A lua veio me seduzir, mas me empolguei e errei o pulo.
O sol veio me iluminar, mas eu surfei e caí no mundo.

Não basta inventar um nome,
se eu não tenho a tua fome!

sexta-feira, 8 de março de 2013

Profundamente - Manuel Bandeira




Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

***
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Poesia numa idade dessas?

Super-herói
não saio de dentro da TV
para emocionar você.
(Basta me encontrar
em qualquer lugar).
Não uso efeitos especiais
                             jamais
não impressiono com cenas impossíveis
                                               surreais
dispenso a ajuda do computador
minha performance usa a
                      imaginação.
De especial
só basta o jeito
de me apresentar:
de maneira
tragimágica
tragimímica
tragicômica.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Pensando com o corpo


Quando pensamos, não esprememos apenas o suco do conhecimento, armazenado em nosso cérebro. O corpo também quer embarcar nessa aventura.
Nosso corpo mostra, para quem está por perto, o esforço que fazemos para verbalizar o que sentimos.
Conheci um sujeito que não gesticulava.  Falava, falava, seja da vida, ou de mulher, e batia forçosamente os dois pés.
Tem também outro cara que, quando ajustava e nos fuzilava com a sua verdade - num constante diz e desdiz - cerrava o punho e coçava o nariz.
Os casos não param por aí: Zé diz e contradiz, dos amores que conquistou, acariciando a aliança do dedo da mão.
Conheço uma gata sarada (ai de nós, coitados) que dialoga com as comidinhas que traz do mercado. Os frios, refris e enlatados são os seus versos cifrados.
No facebook, Z diz (e mostra) que conquistou lindas garotas e até curtiu uma sereia. Só que ninguém sabe, atrás do monitor, no seu cantinho solitário e abafado, ele expia sua culpa beliscando a orelha.(Lugar comum:  a fera atira pra tudo quanto é lado, e não atira pra lugar nenhum!).
Se o tempo ameaça chuva, X se encolhe infeliz, e pensa com a cicatriz.
Antenor, quando o assunto é futebol, se contorce em pesadelos, e pensa com os pinos (que latejam) no tornozelo.
No piloto automático, Y não pensa e não se espanta. Tudo o que faz é repetir o mantra: se eu voltar a beber, ai de mim, eu boto pra perder, o peso que perdi!
tanta gente pensa que pensa. Pensa com o copo colado à mão.
Pensa com as piruetas da fumaça do cigarro. 
Pensa com seu engasgo.
Pensa com seu catarro.
Quando saio pra balada, visto uma camisa apertada, e uma ideia logo me intriga:droga de vida, nada me resta senão apalpar e amolar minha barriga!

sábado, 2 de março de 2013

cruza com os bichos


Tenho cruza com os bichos,
meu ouvido é de cão:
qualquer moto-serra
betoneira ou cortador de grama
fico melancólico
e corro pra debaixo da cama!

sexta-feira, 1 de março de 2013

Andorinha - Manuel Bandeira


Andorinha lá fora está dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

matinê


"Coisa mais triste quando, ao recordar um amor, a gente tenta lembrar: qual era a nossa música? E não havia". (Martha Medeiros)

Nas últimas músicas da matinê, aos domingos à tarde, é que eu procurava minha paixão adolescente para dançar.
mas quase sempre ela já tinha par.
Quando esperava por mim, minha timidez dava um jeito de estragar tudo.
Eu vacilava, ía e não ía, e logo  a música (perfeita) acabava.
As últimas músicas eram românticas, "lentas", imagino que para aproximar os corpos...
Sentir, em toda a sua extensão, o calor da paixão... E ficar a semana imaginando...
Nesse faz de conta, o amor era perfeito.
Alcançávamos o paraíso, e a duração era do tamanho da eternidade.
Mas na hora de colocar o amor em prática, conseguíamos estragar tudo!
cresci e fui me ajustando, e sendo ajustado, pelo lado prático da vida. 
Era uma necessidade.
 Tudo funcionava, mal ou bem: agendas, horários, cobranças.
Ajusta daqui, conserta (e concerta) dali, ganhamos alguma experiência, e até alguma sabedoria.
Mas as dores de amores continuam as mesmas.
E quando ouço aquelas músicas, cúmplices da minha paixão, volto a ser guri, um poeta sonhador.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Bendita - Fabrício Carpinejar



Palavra tem sentimento, muda o destino do casal. Um termo errado nos precipita ao desterro, o termo certo nos conduz ao paraíso. Falar não é um detalhe para as mulheres que nasceram para ouvir. É trocar um adjetivo, que renovamos o alvará do amor. Não podemos, homens, nos dar ao luxo da preguiça. A sedução é trabalho diário e incansável. Cultive o dicionário, colecione vocábulos, sente na gramática.
 
Não diga que ela é autoritária, diga que ela é uma liderança.
 
Não diga que ela é indiscreta, diga que ela é curiosa.
 
Não diga que ela mente, diga que ela possui uma imaginação poderosa.
 
Não diga que ela é estourada, diga que ela é corajosa.
 
Não diga que ela é atrapalhada, diga que ela é perfeccionista.
 
Não diga que ela é irritante, diga que ela é persistente.
 
Não diga que ela é consumista, diga que ela sabe escolher.
 
Não diga que ela é manipuladora, diga que ela é decidida.
 
Não diga que ela é dramática, diga que ela é emotiva.
 
Não diga que ela é vulgar, diga que ela ama a simplicidade.
 
Não diga que ela é imprudente, diga que ela é ousada.
 
Não diga que ela é ciumenta, diga que ela é interessada.
 
Não diga que ela é medrosa, diga que ela é sensível.
 
Não diga que ela cozinha mal, diga que sua comida é rústica.
 
Não diga que ela exagerou ao cortar o cabelo, diga que ela transpira independência.
 
Não diga que ela grita, diga que todos precisam ouvi-la.
 
Não diga que ela é agressiva, diga que ela é lutadora.
 
Não diga que ela é orgulhosa, diga que ela tem personalidade.
 
Não diga que ela é possessiva, diga que ela é cuidadosa.
 
Não diga que ela é mimada, diga que ela é uma princesa.
 
Não diga que ela não tem razão, diga que sua opinião é importante.
 
Não diga que ela sempre se atrasa, diga que admira sua calma.
 
Não diga que ela é confusa, diga que ela é misteriosa.
 
Não diga que ela é ambiciosa, diga que ela é sonhadora.
 
Não diga que ela entendeu errado, diga que você explicou muito rápido.
 
Não diga que ela é fofoqueira, diga que ela é bem informada.
 
Não diga que ela é obcecada, diga que ela não desiste.
 
Não diga que ela é maníaca, diga que ela é organizada.
 
Não diga que ela é gorda, nem tente encontrar um sinônimo, apenas não diga.

(Zero Hora, 26/02/2013)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Se eu fosse um padre



Numa época repleta de tragédias, sabemos que as religiões e a espiritualidade são muito importantes para nos confortar. Como seria difícil os pais enterrarem seus filhos, sem a ajuda da fé...
Por outro lado, vemos a proliferação de igrejas, não apenas de concreto, nas vilas de nossas cidades, mas também nos canais de televisão. Sabemos que tudo isso, em boa medida, não passa de um grande "negócio".
Trago aqui o que pensa o poeta, Mario Quintana, a respeito de Deus. Sem deixar de lembrar que ele brinca com as palavras, inventa e, também, vê Deus como um inventor - certamente bem-humorado, em vez de autoritário e castigador.



Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!

O mundo anda muito sério, cheio de "verdades" e dogmáticos que se autoproclamam donos da verdade. É que usam o nome de Deus, e de Jesus", com  a pretensão (falaciosa) de serem o seu porta-voz.
Está em falta, cada vez mais,  a imaginação, a criatividade, o faz de conta - que é muito peculiar  na infância.
O que aconteceu com a gente, para renunciarmos às surpresas (e belezas) da arte, da poesia e da vida?
Acho tudo isso uma renúncia à própria vida!

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Jogo de palavras - Tulio Milman

Um guri de 14 anos foi ao futebol e não voltou. Aconteceu na Bolívia.
Um guri de 14 anos foi atingido no olho por um sinalizador.
E morreu.
Sentido figurado: essa areia movediça que é, ao mesmo tempo, refúgio e inferno. Ninguém aguenta uma vida literal, onde a distância entre cada palavra e seu significado se resume a uma linha reta. Mas tem hora e lugar para tudo.
Bando de loucos.
Só um louco aponta um sinalizador para uma arquibancada cheia de gente. E loucos, em bando, podem tudo. Porque são loucos. Porque ser louco é bacana. Porque só os loucos fazem parte do bando.
Jogadores, cartolas, jornalistas. Todos reproduzimos e induzimos, olhos vidrados, aos gritos: "Bando de loucos".
Batalha, exército, guerra, inimigo, morte súbita, guerreiro, matador. Termos que deveriam ser banidos para sempre do futebol. Porque a fronteira entre o literal e o figurado se apaga em um ecossistema contaminado pela paixão. É lindo morrer de amor. Na poesia. É lindo matar a saudade. Com um abraço. Num estádio de futebol lotado, ninguém está autorizado a matar. Ou morrer.
Sobe a placa: sai inimigo, entra adversário. Sai matador, entra artilheiro.
O maior jogador de todos os tempos se chama Pelé. Só. Duas sílabas que inspiram sorrisos, magia, poesia. E tem o gol do raio de sol, a folha-seca, a bicicleta, o balãozinho.
Não sei em que momento o futebol se transformou em guerra. Mas sei exatamente em que momento deveríamos depor as armas.
E esse momento já passou faz tempo.

Zero Hora de 23/02/2013 - Informe Especial - Tulio Milman

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...