segunda-feira, 23 de abril de 2012

Fragilidade


É tanta a fragilidade



que temo maltratar


a folha em branco.






Tanta luz da verdade


que me confundo


com o amanhecer.






Tanta liberdade pra falar


mas a alma explode


com o pôr-do-sol.






Às vezes sou monstro


                    aventureiro


basta ouvir a voz do povo


e ser jogado aos leões.






Tantas cenas trágicas


                     ensaiadas


tanto medo fome dor


eu aqui no centro


            da fogueira


rondo o precipício


como quem vai


                        brincar


no parque de diversões.






Quilômetros separam nossos mundos


                    de geografia e fantasia


mas sobrevivemos por um fio


com torpedos e ligações.






Ouço todas as canções


que tocam nesses bares


                                noturnos.


Durante séculos fui fiel a elas


                e a tudo mais


mas ninguém liga


para a dor


de estar sozinho


e assim eu sigo


sem coragem


de voltar atrás.





domingo, 22 de abril de 2012

Reparto com você o que não é meu - Ferreira Gullar


Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os lances sem roubar (Baudelaire.


Não é por falta de assunto. É que nada que escrevesse daria ao leitor tanto prazer quanto o que se segue:




- Comigo a anatomia ficou louca: sou todo coração (Maiakóvski).


- O pensamento se faz na boca (Tristan Tzara).


- Belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma mesa de necrotério (Lautréamont).


- Quando as mulheres vão urinar, as árvores olham e não dizem nada (poema dos índios Macunis).


- Pulo das páginas em teus braços (Walt Whitman).


- Não há lugar para a morte; sempre vivos, os seres retornam todos ao Céu, em esferas de luz (Virgílio).


- Se hoje, o arcanjo, uma ameaça detrás das estrelas, desse um passo apenas em direção a nós, nosso coração, sobressaltado, explodiria (R. M. Rilke).


- Após a morte, deveriam nos meter numa bola; essa bola seria de madeira e de varias cores. Rolariam a bola para nos conduzir ao cemitério e os papa-defuntos encarregados dessa tarefa usariam luvas transparentes para despertar nos amantes a lembrança das carícias (Francis Picabia).


- Desse pão não comerei (Benjamin Péret).


- É preciso esgotar o campo do possível (Holderlin).


- Se a aparência expressasse a essência, a ciência seria desnecessária (Karl Marx).


- Os poetas não mandam no que cantam (Homero).


- A natureza ama se ocultar (Heráclito de Éfeso).


- Boca de fome, oh boca generosa / dizendo sempre a mesma água clara (R. M. Rilke).


- Aqui é a escola das árvores. Estão aprendendo geometria (Raul Bopp).


- A noite está bonita. Parece envidraçada (Raul Bopp).


- Eu te mostrarei o medo num punhado de pó (T. S. Eliot).


- Irmã sem memória, morte, com um só beijo me tornarás igual ao sonho (Giuseppe Ungaretti).


- Na casa havia nove irmãs. Uma foi comer biscoito. Deu um tangolomango nela, não ficaram senão oito (folclore).


- Fixava vertigens (Arthur Rimbaud).


- Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os lances sem roubar (C. Baudelaire).


- Mas as coisas findas; muito mais que lindas / essas ficarão (Carlos Drummond de Andrade).


- Então a nuvem passou e o tanque estava seco / Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças, ali escondidas e excitadas, contendo o riso / Vai, vai, vai, disse o pássaro: o espírito humano não suporta tanta realidade (T. S. Eliot).


- No ponto em que estamos, não há nenhum temor urgente (René Char).


- Voltei lá onde jamais estivera. Nada do que não era tinha mudado. Sobre a mesa (a toalha de linóleo em quadrados); reencontrei pela metade, o copo que jamais se enchera. Tudo continuava tal como nunca havia deixado (Giorgio Caproni).


- Alguém moveu Sírius de um lado para o outro (Murilo Mendes).


- E os chapéus das mulheres que passam são cometas no incêndio do anoitecer (Blaise Cendrars).


- Uma floresta cujos pássaros são todos de chamas (André Breton).


- Os bombons e as flores me dão dor de dentes (Francis Picabia).


- Minha mãe tocava piano no caos (Murilo Mendes).


- O poeta futuro cai do velocípede (Murilo Mendes).


- Se dom Pedro II vier aqui com história, eu boto ele na cadeia (Oswald de Andrade).


- Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre a legião de anjos? (R. M. Rilke).


- Para onde caminha minha sombra / neste cavalo de eletricidade (Augusto dos Anjos).


- Já vai escurecendo / o sangue pára de arder / Agora o que digo acendo / para não me perder (Vitorino Nemésio).


- Quem fizer amor dormindo / é logo expulso do sono (Jean Cocteau).


- Por ter roubado a Nissus, cabelos de púrpura / sua filha traz cães furiosos no púbis e nas virilhas (Ovídio).


- Meu amor de nádegas de primavera (André Breton).


- A mulher do fim do mundo / chama a luz com um assovio (Murilo Mendes).


- Mais abaixo do que eu, sempre mais abaixo que eu, se encontra a água. É sempre de olhos baixos que a vejo (Francis Ponge).


- Mal entrava no mato, era um delírio / Os papagaios se reuniam em bando, protestando / como um verdadeiro comício (Cassiano Ricardo).

(Folha de São Paulo, 11 de maio de 2008)


quinta-feira, 19 de abril de 2012

O anjo Malaquias - Mario Quintana


O Ogro rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos, com esse exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de aparentar, por esporte.
Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele. Chamava-se Malaquias - tão piquinininho e rechonchudo, pelado, a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da primeira infância...
O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre. Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito... saiu voando janela em fora...
Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima, atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a Mãe de Deus lhe vale!
Que o digam as nuvens, esses lerdos cágados das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça para baixo.
E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no entrechocar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como cabelos de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase... E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso... Todos escutam, no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E quantas vezes um de nós, ao levar o copo ao lábio, interrompe o gesto e empalidece... - O Anjo! O Anjo Malaquias! - ... E então, pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos que foi apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um pneu estourou, longe... na estrela Aldebaran...

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Porquinho-da-India - Manoel Bandeira


Quando eu tinha seis anos
ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão.
Levava ele pra sala
pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
ele não gostava:
queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Ai de ti, Copacabana! - Rubem Braga




1. AI DE TI, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia.

4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

6. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.}

13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Rio, janeiro, 1958


sexta-feira, 6 de abril de 2012

No 13 de um hospital qualquer

Ao revirar caixas com textos, apostilas, anotações, me espantei com o que vi.
Creio que fazer isso ajuda a desvendar quem somos - às vezes desconhecidos de nós mesmos, às vezes imprevisíveis e inconstantes, ou o contrário...
O poema abaixo foi escrito a mais de duas décadas, e foi inspirado (provavelmente) por uma daquelas paixões adolescentes.

Amigo,
se encontrares meu amor por aí
diga-lhe que estou no 13 de um hospital
qualquer.
Tenho as veias perfuradas
batidas do coração descompassadas
não tomo banho a dois dias
e as visitas estão escassas.

Diga a ela pra me procurar
é certo que vai me encontrar
com os olhos amarelados
enterrado numa cama antiga
cheio de coceira na cabeça
alérgico às enfermeiras
coitadas, me querem tão bem!
Dão uma força tremenda
dizem que não morrerei dessa vez...

Amigo,
se ela estiver dengosa
diga-lhe que a vida não tem replay
vivo por um fio
e já não carrego o mesmo orgulho.
Nosso amor vai florescer
prometo não ser mais eu
quando voltar a viver.

Amigo,
se a encontrares pela manhã
diga para que venha de tarde
- tomo soro de manhã.
E que traga flores
gosto de rosas vermelhas.
Se a encontrares, amigo,
diga-lhe que traga consigo
seu belo sorriso
para espantar meus pensamentos loucos.

Imploro, amigo:
traga logo meu amor
traga ela e uma flor
nosso amor não morrerá
seja como for
agora será
infecto-contagioso!

sábado, 31 de março de 2012

Engarrafamento - Roseana Murray


Nada a fazer
no meio do engarrafamento,
a não ser
desamarrar os nós do pensamento.
E se deixar levar
para a longínqua
Transilvânia,
Atlantida,
Passárgada,
para o galho mais alto de um sonho.
E de lá de cima,
olhar o mundo
com profunda
paciência.


Do livro Paisagens. Belo Horizonte: Lê, 1996.

domingo, 25 de março de 2012

O time foi rebaixado


Quando ouvimos falar do fracasso dos outros, não perdemos tempo para investigar os diversos motivos que levaram a tal desfecho trágico. Focamos nossa atenção na ponta do iceberg, a que aparece, e não conhecemos toda a sua base, que é imensa, e que ficou submersa.
Observo a fotografia do time, na coluna de esportes do jornal. Do lado esquerdo está o auxiliar técnico, um novato que faz pós-graduação em Educação Física. Ele gesticula, com ar de muito conhecimento. Seu sonho é fazer um estágio na Espanha, no grande Barcelona, treinado por Guardiola.
À direita, à sua frente, estão os jogadores, de mãos na cintura, meias arriadas, olhar distraído. O gramado, desparelho, meio verde amarelado, completa o ar de desolação ao cenário. O tema da palestra é "Dicas para ser um vencedor".

O time foi rebaixado.

Grande parte dos jogadores do time não passaram pelas categorias de base. Aprenderam a jogar futebol, desde a infância e adolescência, nos campinhos de várzea, nas vilas das cidades. Quebraram muitas vidraças das casas, dividiram espaço com vira-latas e cavalos, quase sempre de pés descalços.
Do mesmo jeito que o lendário Garrincha, que primeiro jogava pelo prazer, e depois para vencer, boa parte desses jogadores, principalmente os que jogavam do meio para frente, estavam mais preocupados em fazer jogadas de efeito, cheias de categoria, do que em fazer o gol. A bola na rede era um fim, não um meio.

O rebaixamento resultou de uma cobrança de pênalti, desperdiçada pelo artilheiro do time, Tom Zé.
O jogo estava nos acréscimos, e seu time perdia por uma a zero. Se ele empatasse o jogo, faturariam um ponto, que era o que faltava para não cair pra segundona.
Nos segundos que antecederam à sua cobrança, um filme de sua vida passou pela cabeça. Todas as jogadas repletas de categoria, os gols de “Pelé”, enfim tudo o que ele aprendeu nos campinhos de várzea, desde guri, quase sempre de pés descalços.
Se ele era o “Pelé” sem chuteiras, imagina agora com suas chuteiras importadas!
Dito e feito. Tom Zé decidiu bater o pênalti do que jeito que fazia nos velhos tempos.
Recuou uns dez passos da bola, correu e... fez uma cavadinha... Porém, a bola não ganhou altura e o goleiro adivinhou o canto. Tudo isso nos acréscimos...

Dois minutos depois, a caminho do vestiário, Tom Zé foi demitido pelo presidente do time, com a seguinte sentença:

- No meu time não joga perdedor!


 


domingo, 18 de março de 2012

Mapa do céu


Aos doze anos, a maturidade do meu Guri remove a máscara da ingenuidade, que se formou em mim.
Foi-se o tempo de crença na evolução linear. Agora vivemos os sustos da pressa que nos transporta de um lado para o outro, sonhando pra frente, andando pra trás.
Ele encontra no meio dos livros algumas agendas que usei, nos anos passados. Balança a cabeça e não me diz nada.
Então eu acordo: vivo a recolher o que já passou e não vai voltar.
Ainda acredito ser possível reciclar o passado, como sementes que, a qualquer momento, irão germinar.
A inocência é tanta, que olho pro céu e espero que os deuses decidam, em ruidosos congressos, um destino glorioso pra mim.
Agora o céu se abriu, como um mapa misterioso, sobre a minha cabeça.
Cada estrela me observa, no seu silêncio e distância infinita.
Tento puxar conversa, mas só ouço o eco de meu medo do desconhecido.
Meu Guri trouxe um mapa dos grandes, que ele encontrou numa enciclopédia.
Agora temos a geografia das estrelas no céu, seu nome e origem.
Mostrou-me o que guarda o céu. Divertiu-se com minhas lembranças ruidosas. Comentou curiosidades e jogou os meus medos ao léu.
Desperto e liberto o sorriso. Mesmo distantes, as estrelas têm nome e endereço, e eu estou vivo!

domingo, 11 de março de 2012

Homem no mar - Rubem Braga

De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.


Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.


Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.
É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".


Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.


Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A velha contrabandista - Stanislaw Ponte Preta

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.


Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:


- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?


A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:


- É areia!


Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.


Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.


Diz que foi aí que o fiscal se chateou:


- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.


- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:


- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?


- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.


- Juro - respondeu o fiscal.


- É lambreta.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...