sábado, 11 de dezembro de 2010

COBRAS EM COMPOTA - Índigo






Cobras em compota


Quando eu era pequena, os vidros de maionese eram bem maiores. Não devia existir colesterol naquela época e é aí que começou o problema. Por serem vidros grandões, comportavam cobras enroladas dentro. No laboratório de ciências havia uma prateleira cheia deles.
Se não fosse por esses vidros de maionese, eu poderia ter ido melhor na matéria. Mas com eles ali, impossível. Eu só queria abri-los, meter a mão dentro e puxar uma cobra pelo pescoço. Eu a giraria no ar, feito laço de boiadeiro.
Passávamos de ano e elas ali, provocando. Nunca chegou a série certa para estudá-las. Lembro-me que, de vez em quando, no meio da aula, alguma cobra de índole mais atrevida sibilava para mim. Eu ignorava.
Com o tempo aprendi que, caso abrisse um desses potes, ela pularia em mim, fincaria seus dois únicos dentes no meu pescoço e eu me transformaria numa delas. Eram todas ex-alunas mal intencionadas...



O pintinho e o analista



Um dos motivos por que não faço terapia
é por saber que lá pelas tantas o analista
vai perguntar:
“Qual é a sua primeira memória de infância?”
E como estarei pagando os olhos da cara,
vou me sentir na obrigação de dizer a verdade.
Mas como é que se diz: “sou eu correndo
atrás de um pinto”, sem abrir espaço
para as interpretações mais estapafúrdias?
Era um desses pintinhos amarelos de
feira. Naquela época crianças ganhavam
pintos quando iam à feira com suas mães.
Seu nome era José, e quando busco a mais
remota das lembranças, é esse pinto que
encontro. José correndo pela escada de incêndio,
e eu atrás, chamando por ele. José
some e eu volto para casa sem o pinto.
Dito isto, o analista vai tossir e fazer um
barulhinho do tipo:
“A-hã...”
Isto me irritará profundamente e eu começarei
a me explicar melhor, o que apenas
piora a situação.


Livros pompom



Sempre que me deparo com livros que soltam gritinhos e têm pelúcia na capa, eu me pergunto:
"Por que não escrevo coisas assim, fico rica e viajo o mundo?"
A fim de tentar responder esta pergunta, criei um sistema de leitura para livrinhos desse tipo. Antes de ler suas cinco páginas de texto, avalio o que eu teria feito. O de ontem tinha antenas e se chamava Bia, a abelha. A minha Bia, a abelha, seria:
1) na verdade um coelho, que nasceu num corpo de abelha e, por ter natureza de roedor, rói o caule das plantas e é expulso da colméia.
2) Uma abelha que foge por não concordar com os caprichos da rainha e começa uma sociedade alternativa, que não dá certo porque ninguém trabalha, só ficam tocando violão ao redor da fogueira.
3) Uma abelha que tem um zumbido no cérebro, acaba se perdendo na floresta e tem que se infiltrar em outra colméia, onde as regras são diferentes.
Então abro o Bia, a abelha oficial. O que eu devia ter escrito, para ficar rica e viajar o mundo, é a história de uma abelha que não sabia que para chegar às flores ela tinha que voar. A idiota escalava. Para o desfecho eu teria que criar uma joaninha que explica à Bia que ela devia bater suas asas. Final feliz.

Índigo, do livro Cobras em compota, Ministério da Educação - 2006.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

RETORNO

Ao regressares de viagem
retoco a maquiagem
subo no palco sem saber
qual será meu personagem.

Inventei punhados de papéis
rastejei por becos sem saída
mas nunca aceitei sua mão
dirigir minha vida.

Embaralhei os figurinos
estampas cores perfis
inventei tudo do jeito
que sempre quis...

Agora - tarde demais ou cena repetida? -
agora descubro que preciso correr
se quiser reinventar a minha vida!

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ser filho é padecer no purgatório - Carlos eduardo Novaes

Psssiu, psssiu.
- Eu? – virou-se Juvenal apontando para o próprio peito.
- É. O senhor mesmo – confirmou o comerciante à porta da loja -, venha cá, por favor.
Juvenal aproximou-se. O comerciante inclinou-se sobre ele e como que lhe segredando algo perguntou:
- O senhor tem mãe?
- Tenho.
- Gosta dela?
- Gosto.
- Então é com o senhor mesmo que eu quero falar. Vamos entrar. Tenho aqui um presente especial para sua mãe.
- Tem mesmo? Mas por que o senhor não entrega a ela pessoalmente?
- Porque ela é sua mãe, não é minha. O senhor é que deve entregar o presente.
- Está bem. Então o senhor me dá que eu dou pra ela.
- Dar, não – corrigiu o comerciante -, infelizmente não estamos em condições. As vendas só subiram 75%. Vou ter que lhe vender presente.
- Mas eu não estava pensando em comprar um presente agora para minha mãe. O aniversário dela é em novembro.
- Não é pelo aniversário. É pelo dia das mães.
- Dia das mães? – repetiu Juvenal sempre desligado. – Mães de quem?
- Mães de todos. É depois de amanhã, domingo.
- É mesmo? E quem disse isso?
- Bem...
- Está na Bíblia?
- Não. Ele foi criado por nós, comerciantes, para permitir que vocês manifestem seu amor e carinho por suas mães.
- Puxa, vocês são tão legais. Eu não sabia que os comerciantes gostavam tanto da mãe da gente.
- Pois acredite. E olhe, vou lhe contar um segredo: nós gostamos mais da mãe de vocês do que da nossa.
- É mesmo? E por que assim?
- Porque a nossa não deixa lucro. Pelo contrário. Todo ano no dia das mães sou obrigado a desfalcar a loja para presenteá-la.
- Ainda bem que só é um dia, hein? Se fosse, digamos um trimestre das mães, vocês estariam na maior miséria. O senhor dá presentes caros a sua mãe?
- Bem, pra falar a verdade, tem uns dez anos que eu não dou presente pra ela no dia das mães.
- E ela não reclama?
- Reclamava, até o dia que lhe disse que o dia das mães que era jogada comercial e que para mim o dia dela era todos os dias.
- Também acho.
- Não. Você não pode achar – esbravejou o dono da loja -, eu posso porque sou comerciante. Você não, você é consumidor. Tem que comprar um presente pra ela no dia das mães.
- Bem, já que é assim, então vamos ver o presente.
- Ótimo, assim é que se fala. Você tinha me dito que gostava de sua mãe, não é verdade? Gosta muito?
- Muito. Por quê?
- Porque nós temos aqui presentes para todos os gostos. Para quem gosta muito, para quem gosta pouco, para quem ainda está em dúvida.
- E o senhor dá desconto para quem gosta muito?
- Não. Nós só damos descontos para quem tiver mais de uma mãe. Fazemos, porém, um preço especial para juiz de futebol, que tem a mãe muito sacrificada. O senhor é juiz de futebol?
- Não. Sou bandeirinha – mentiu Juvenal.
- O senhor já foi xingado em campo alguma vez?
- Umas três.
- É pouco, só damos descontos para bandeirinhas que tenham sido xingados mais de cinco vezes. Vamos ver os presentes? Pra escolhermos o tipo de presente mais adequado eu preciso saber como é sua mãe.
- Mamãe? É uma mãe igual a qualquer outra. Não tem nada de especial. Ou melhor, de especial só tem o filho.
- Vejamos. Quando o senhor era garoto ela costumava dizer: “Saia agasalhado meu filho”, “não vá comer agora que o jantar já vai pra mesa”, “não ande no ladrilho descalço”, “não abra a geladeira sem camisa”, “não se esfalfe”, “não chegue tarde”, “não apanhe chuva”, costumava? Costumava dizer que o senhor estava comendo pouco e lhe entulhava de remédios?
- Exatamente – surpreendeu-se Juvenal -, parece até que o senhor foi filho da minha mãe.
- Ou o senhor foi filho da minha. Se ela era realmente assim, o melhor presente é esta TV em cores.
- Mas é o artigo mais caro que tem na loja. Não posso da aquela que é mais barata?
- Que é isso, meu senhor? Sua mãe merece o melhor.
- Mas eu não tenho dinheiro. Não posso dar o melhor.
- Que absurdo – indignou-se o comerciante -, se o senhor não pode dar o melhor para sua mãe vai dar a quem? Será que sua mãe não merece um sacrificiozinho de sua parte?
- Claro. Claro que merece.
- E, então? Pense nos sacrifícios que ela já fez pelo senhor.
- Estou pensando.
- Então pense que eu espero. Ela fez muitos?
- Muitos o quê?
- Sacrifícios.
- Não estou pensando nos sacrifícios. Estou pensando no preço.
Juvenal perguntou se podia ver outros artigos, talvez encontrasse algo mais em conta. “Posso mexer nas mercadorias da loja?”
- Lógico – disse o comerciante – esteja à vontade. Pode remexer o quanto quiser. Aqui vale tudo. Só não vale xingar a mãe.
Juvenal saiu percorrendo a loja, com o comerciante atrás, matraqueando no seu ouvido sua técnica de vendedor: “O senhor sabe o que é ser mãe? Ser mãe como dizia Coelho Neto, é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ ser mãe é padecer num paraíso/ ser mãe é ter filho que lhe compre uma TV em cores ou um ar-condicionado ou uma geladeira, um secador de cabelos, uma cinta, um jogo de estofados, uma mobília de quarto...”
- Mobília de quarto?
- E por que não? Armário, penteadeira, mesinha de cabeceira de cama.
[...]
- Já resolvi – respondeu Juvenal decidido.
– Não vou dar nada.
- O quê? – vociferou o comerciante. – O senhor não vai dar nada para aquela que lhe deu tudo?
- Vou lhe dar um beijo.
- Um beijo? O senhor tem coragem? O senhor é realmente um filho desnaturado. Em pleno século XX, em plena sociedade de consumo, o senhor vai chegar em casa de sua mãe e com a maior cara de pau lhe dar um beijo? Um beijo? Que espécie de filho é o senhor? Um beijo?
- Bem, talvez dois ou três.
- Então leve ao menos esta pasta de dentes aqui. Contém genitol e mantém o hálito puro na hora de beijar sua mãe.

domingo, 5 de dezembro de 2010

PATOTA





Patota toca
patota canta
patota dança
patota traça

patota é tudo de bom
e patati patata

patota é cheia de graça
pena que patota passa...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

QUANDO EU ERA INVISÍVEL - Luis Fernando Veríssimo

Quando eu descobri que podia ficar invisível tinha 13 anos e a primeira coisa que fiz foi entrar no vestiário das mulheres, no clube. Durante algum tempo só usei meu poder para coisas assim. Ver mulher pelada, mudar as coisas de lugar para assustar as pessoas, dizer coisas no ouvido delas quando elas pensavam que estavam sozinhas, ficar atrás do goleiro do meu time para chutar as bolas que ele deixava passar e evitar o gol, coisas assim. Muito jogo importante da época fui eu que decidi, defendendo em cima da linha, e ninguém ficou sabendo, ou pelo menos ninguém acreditou quando eu contei. Também entrava em cinemas sem pagar e ainda cutucava a barriga do porteiro, só por farra. Vi todos os filmes proibidos até 18 anos que ninguém mais da minha geração viu. O único perigo, nos cinemas, era alguém, vendo a minha poltrona vazia, sentar no meu colo. Como eu invariavelmente estava com uma ereção, havia sempre a possibilidade de uma catástrofe.


Aos 16 anos me apaixonei por uma menina de 15, a Beloní, e um dia fiquei invisível e a segui até a sua casa. Queria ver como era o seu quarto e a sua vida, queria vê-la tomando banho, mas não queria ver o que vi, uma briga feia dela com a mãe, depois ela trancada no quarto, chorando, eu sem saber se afagava sua cabeça e a matava de susto ou o quê. No fim quase fiquei preso no apartamento porque todos foram dormir e trancaram as portas, tive que simular batidas na porta da frente para o pai da Beloní vir abrir e me deixar escapar, depois tive que explicar em casa porque ficara na rua até aquela hora, só quando já estava na cama me dei conta que perdera a viagem porque a Beloní, de tão amargurada, nem tomara banho e dormira vestida. Voltei à casa dela no dia seguinte, atraído não apenas pela possibilidade de vê-la nua como a de, de alguma forma, interferir no seu drama doméstico, ajudá-la, mudar seu destino, em último caso empurrar sua mãe pela janela. Desta vez peguei uma briga da mãe com o pai da Beloní. Fiquei achatado contra uma parede, apavorado. Era terrível, como as pessoas se comportavam quando achavam que não estavam sendo observadas. E era terrível não poder fazer nada. Era terrível ser invisível, ter aquele poder e nenhum outro. Eu não podia mudar a vida da minha amada Beloní como podia mudar o resultado de um jogo. Podia andar pela sua casa sem ser visto e sentir o cheiro doce de sua nuca, tendo apenas o cuidado de não encostar o nariz, mas não podia salvá-la.


Acho que foi então que me convenci de que a invisibilidade era, na verdade, um poder trágico. Depois da minha imersão na vida privada da família da Beloní - que eu revi o outro dia e e me contou que está bem, que se casou com um astrônomo belga que tem até uma estrela com o nome dele, que ela não se lembrava como era, está claro que enlouqueceu - nunca mais consegui me divertir com a minha invisibilidade. Não entro mais em vestiários femininos, pois que graça há na mulher nua se ela não está nua para você, se ela nem sabe que você a está vendo e que aquele hálito na sua nuca é o seu? Não entro mais em campo, pois que graça há no seu time ganhar com a sua participação anti-regulamentar e sem que você ganhe sequer uma medalha, uma linha no jornal? E já tenho idade suficiente, mais do que suficiente, para entrar em filmes proibidos à vista do porteiro. Pensando bem, hoje só fico invisível quando quero estar sozinho ou, vez que outra, quando estou dirigindo, para ver as caras de espanto dos outros motoristas. Mas nem isso me diverte mais. A invisibilidade é para os jovens.


Troquei meu poder pelo ofício de Flaubert que dizia que todo escritor é um fantasma percorrendo as suas próprias entrelinhas, ou coisa parecida. Abandonei a vida real por ficções como esta, em que controlo tudo e posso mudar a vida das pessoas e dispor do seu destino, e fornecer os seus diálogos, e matá-las ou salvá-las como me apetecer. E em que apareço e desapareço quando quero. E posso não só sentir o cheiro doce da nuca das mulheres que invento como roçar nelas o meu nariz. E até fazer "Nham!", se quiser, sem qualquer perigo.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

DORME, PRETINHO - Sérgio Caparelli





Dorme, dorme, meu menino
a lua é feita de néon.

Vá embora, vá seu guarda,
deixa o pretinho dormir,
ele está longe de casa
e não tem pra onde ir.

Vá embora, vá seu guarda,
deixe o pretinho dormir.

Dorme, dorme, meu pretinho
Deus também é engraxate,
ele lustra no teu peito
um coração que bate, bate.

Dorme, dorme, meu pretinho,
Deus também é engraxate.

Dorme, dorme, meu pretinho,
numa cama de jornal,
logo vão chover estrelas
para acabar com o teu mal.

Dorme, dorme, meu pretinho,
numa cama de jornal.

Vá embora, vá seu guarda,
o pretinho é muito bom:
Ele dorme sob a lua
de um anúncio de néon.


Do livro Boi da cara preta.

domingo, 28 de novembro de 2010

RETORNO

Anos depois
ela bate à porta
para reivindicar seu lugar
no meu álbum de lembranças.

Minha racionalidade pondera
               com regras e dever
                 afirma sem piscar
     que seu amor prescreveu.

              O pior é que o tempo
não é confiável nem comparsa
            me chama de medroso
      enquanto ri da minha cara!

Ele diz que depois que ela se foi
           esqueci portas trancadas
       alarmes cadeados sensores
                            me guardam...
                                e aguardam
                   um gesto definitivo...

             Tudo o que aprendi
foi mastigar essas verdades
                             amargas
torcer para que as palavras
          que rabisco no diário
  apontem as coordenadas.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O que teu pai faz melhor do que o meu? - Ignácio de Loyola Brandão



Ainda não existiam coisas como o "dia dos pais". Todo dia era dia do pai, porque todos os dias tínhamos que nos entender com ele quando chegava do trabalho e a mãe desfiava o rosário de aflições que tínhamos causado: não obedeceu, não fez a lição de casa, fugiu da escola no recreio, brigou com um vizinho, quebrou um vidro com a bola, chupou manga verde, comeu melancia e tomou leite (proibidérrimo), jogou barro na roupa lavada.
Os pais eram sérios, austeros, distantes, carrancudos, temíveis, não conversavam com a gente sobre nenhum assunto, não acariciavam o filho. Vivíamos vidas em separado. Em casa, uma coisa. Na rua, outra. Porque só se brincava na rua.
No entanto, admirávamos aqueles homens, tanto que as disputas eram acirradas. Cada um exibia o pai mais do que o outro. Eu ficava abismado. Como é que aqueles pais eram tão campeões e a gente nem ouvia falar deles no bairro? E olhem que Araraquara era uma cidade pequena, todos se conheciam.
Betão, filho do bananeiro, assegurava, toda segunda-feira: "Ontem, meu pai defendeu 10 bolas impossíveis, o time dele ganhou. Com meu pai no gol, não tem time que ganhe dele". Nunca o jogo era em Araraquara. O lélio Gordo não deixava por menos: "Na luta de sábado, meu pai acertou duas muquetas no Kid Formiga, no primeiro rounde e acabou". O pai desse também só lutava box em outras cidades. Nerevaldo Milho (todos tinham um apelido) garantia que o pai era capaz de ir de bicicleta até São Paulo e voltar no dia seguinte. O pai dele alugava e consertava bicicletas, era uma inveja, um dia apareceu em uma Monark de breque no pedal, foi um deslumbramento.O pai do Sálvio Prego podia comer quarenta sanduíches de queijo quente com banana, apesar de magro, magro.
Carlos Amargo não ficava atrás: "Meu pai vendeu trezentos números de peru na quermesse, ele é batuta como vendedor, espertíssimo, ninguém vende mais do que ele, é capaz de vender sorvete para pinguim, diz minha mãe". Eu ficava assombrado. "Pinguim toma sorvete?" Todos riam:
- Bobo, é maneira de dizer. Igual a vender ovo para galinha, pernil para o porco, leite para  a vaca. Falando nisso, o seu pai é capaz de quê?
Meu pai, meu pai? Nunca tinha esmurrado ninguém. Em um jogo, tinha pisado na bola tantas vezes que foi expulso do time. Era mais fácil ele andar na corda bamba que de bicicleta. Na quermesse, comprava rifas, não ganhava nada, minha mãe reclamava: "Você é um azarado".Mesmo assim, era um homem diferente, legal.
Em casa, perguntei:
- Pai, o senhor é capaz do quê?
- Do quê? Não entendo.
Expliquei, mostrei como cada pai dos meus amigos era batuta, fazia coisas incríveis.
- O que digo sobre você?
- Que sou capaz de trabalhar o dia inteiro, sábado e domingo, sem fins de semana e sem tirar férias!
- Isso não é vantagem pra contar. Tem que ser uma coisa grande!
- Sei... sei viver...
Bem que minha mãe dizia que meu pai tinha respostas estranhas.
- Viver todos sabem.
- Todos vivem! Não sabem. Vivem do jeito que pensam que os outros acham que é bonito viver, mas não do jeito que eles gostariam de viver. Deu para entender?
- Quer dizer que o Betão gostaria que o pai dele fosse goleiro bom, que o Nerevaldo gostaria que o pai fosse para São Paulo de bicicleta?
- Mais ou menos. A gente não precisa fazer coisas espetaculares. Não precisa ser campeão, filho.
- Mas os outros não vão gostar dessa resposta, pai. Eu queria poder dizer uma coisa que deixasse os outros com inveja.
- Para que deixar os outros com inveja? O que importa é: você está contente com o pai que tem? Com o que seu pai sabe fazer? Por exemplo, eles sabem viajar sem sair do lugar?
- Essa não!
- A quantos lugares não vamos? Não voamos de avião, andamos de trem, saímos em tapetes voadores, visitamos castelos, estivemos na lua, criamos um foguete interplanetário, um telefone para macacos, fizemos surf nas costas dos crocodilos, jogamos basquete contra o time dos americanos, conversamos com chineses, salvamos uma mulher dos bandidos, descansamos nas nuvens, abrimos a porta do inferno para as pessoas escaparem?
- Pai, tudo eram histórias que você contava!
- Diga a eles que ninguém inventa como eu.
- Não posso! Tem que ser uma coisa que deixe a turma de queixo caído.
Ele me olhou e pareceu um pouco triste.Coisa difícil ver meu pai triste. Poucas vezes vi. Mesmo quando ele estava doente e ia trabalhar de manhã, nunca faltou no trabalho. Demorou um pouco, abriu o sorriso e o mundo mudou. E ao ver aquilo, entendi. Corri para a beira do rio. A turma estava lá. Gritei:
- Meu pai faz uma coisa incrível que nenhum dos seus faz!
- E o que é essa maravilha?
- O meu pai ri. Vive sorrindo. É engraçado! Divertido. Inventa como ninguém. Ganhei ou não?
Eles me olharam com cara de derrotados.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Autoapresentação - Elias José




Sou o poeta João,
cheio de sonhos e pesadelos
e medos e coragem.

Tenho os olhos abertos, espertos
para olhar o céu, o mar, a montanha
e todas as cores que a vida tem.
Tantos me tocam as cores da natureza
como os olhos das garotas.


Tenho os ouvidos atentos
para a música, os ruídos todos
e a sonoridade dos sorrisos
e dos nomes de mulher.


Com os íntimos ou escrevendo
sou falante, elétrico como um grilo.
Quando enfrento o desconhecido
sou caracol encolhido em minha casca-casa.


Sou alegre e sou triste,
sou poeta em projeto.
Acho que o poeta é um cara-de-pau
que se joga todo sem redes,
sem máscaras e sem olhos escuros.
É um ser que bota fogo no gelo
e espera um incêndio amazônico.
Para isso vivo e me preparo...
Como só tenho quinze anos,
estou ainda atiçando chispas.
Se uma chamazinha explodir,
se um verde minúsculo brotar
do azul do meu poema,
se o diálogo quebrar a indiferença,
valeu.

 do livro Cantigas de adolescer.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Panis et circensis - Caetano Veloso e Gilberto Gil





Eu quis cantar, minha canção iluminada de sol
soltei os panos sobre os mastros no ar
soltei os tigres e os leões nos quintais
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer

Mandei fazer, de puro aço luminoso punhal
para matar o meu amor e matei
às cinco horas na Avenida Central
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer

Mandei plantar, folhas de sonho no jardim do solar
as folhas sabem procurar pelo sol
e as raízes procurar, procurar
mas as pessoas na sala de jantar
essas pessoas na sala de jantar
são as pessoas na sala de jantar
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A CABEÇA DOS SONHOS E DOS OUTROS

Meus sonhos vivem bem informados
com tudo o que se passa
com parentes, amigos e conhecidos.

Quando se trata de mim
usam subterfúgios
falam através de enigmas
para me deixar confuso.

Meus sonhos são delicados
não querem abrir o jogo
para não me fazer sofrer.
E essa confusão toda
me faz pensar neles
por um bocado de tempo,
ao acordar pela manhã.

Pretensiosos,
eles tudo sabem
sobre tudo,
do amor eterno
ao amor verdadeiro...

É que eles não têm compromisso com o tempo,
que me enrola o tempo todo.
Abusados, meus sonhos riem dos amores
que encontro pelo caminho,
frágeis e passageiros.

Meus sonhos vivem fazendo acordos
com pessoas que me rodeiam e que convivo.
Fui sequestrado por meus sonhos, que anarquizam
minha cabeça, e a cabeça dos outros...



"...Somos prisioneiros não só da nossa cabeça, mas da cabeça dos outros, do que eles pensam a nosso respeito, do que imaginam que iremos fazer, das conclusões a que chegam, das interpretações que fazem sobre o que lhes contamos.


Não há escapatória. Estamos sujeitos ao que nossas narrativas revelam, e elas nem sempre revelam nossa pureza. Estamos sujeitos ao que nossos atos revelam, e eles nem sempre revelam o que sentimos. O que somos de verdade e o que queremos de fato, só nós sabemos. Só nós. Sós.


O planeta é povoado por bilhões de solitários tentando se comunicar em meio a situações de euforia, desespero, descrença e êxtase. Quantas vezes tentaram adivinhar o que sentíamos, e erraram. Julgaram nossas ações, e erraram. Tiveram certeza sobre nossos propósitos, e erraram. Balas perdidas disparadas a esmo, bilhões tentando compreender uns aos outros e passando longe do alvo. Reverenciamos tanto a conexão, mas ela segue mais rara do que nunca.


A cabeça do outro é nosso juiz mais implacável. Acreditamos que temos controle sobre nosso destino, mas esse controle está atrelado ao pensamento do outro sobre nós, o sentimento (ou ressentimento) que ele nutre a despeito de todas as nossas boas intenções.


Nossos pais, nossos amigos, nossos filhos, nossos clientes, nosso amor: tudo andará bem desde que sejamos fiéis ao que estava previsto. Mas somos seres imprevisíveis por natureza, o que nos faz passar a vida inteira correndo riscos".

(Martha Medeiros, Zero Hora de 17/11/2010).

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...