O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
(Manoel de Barros)
Você mergulha no rio
de águas agitadas
chamado adolescência.
Desce e experimenta
o prazer de piercings,
tatuagens, narguilés
e outras carências
cômicas.
Você logo sente falta de ar,
hora de voltar
pra margem.
Tragédias e milagres acontecem,
é o que repetem
todos os dias
os jornais.
O show tem que continuar,
diz uma música.
É a vida passando
com sua
roleta russa.
(B. B. Palermo)
Tem o que olha pra um lado e passa pro outro.
Tem o que toca de calcanhar e às vezes acerta.
Tem o que demora pra passar e quase nunca erra.
Tem o que compete como se fosse final de copa.
Tem o que joga como se estivesse na copa
tomando um litrão.
Tem o que come e não engorda.
Tem o fofo que não tá nem aí.
Tem o que joga muito e corre o tempo todo.
Tem o que corre pouco e tem a melhor assistência.
Tem o que conta a história mais louca
na hora da sede
depois do jogo.
O que importa é que a amizade
entra em campo
o tempo todo!
Valeu amigos do grupo Arte/bola/Fernandinho!
Geni se sacudia todo
por entre as mesas do bar.
Indagava, em silêncio:
Cadelão, quando tu vai dar conta da dívida no bar, seu tareco?
Num silêncio de envergonhar, eu murmurava,
sem mexer os lábios:
Paciência, véio, pra este mês a Barrosa secou.
Olhos lacrimejados diziam, numa maleza de dar dó:
Estou quase quebrado, credores insensíveis
espalhados pelo mundo me deixaram na mão.
Investi meu patrimônio em criptomoedas e perdi tudo...
Geni me observava emburrado, parecia com falta de ar.
Faz uns serviços de servente de pedreiro, seu louco,
seja igual ao Porko, que passa o dia inteiro
alimentando uma betoneira num sol de 40 graus,
depois vem pro bar e bebe meia dúzia de litrão...
E nunca me deixou na mão!
Tive pena do peçonhento,
um dependente de bêbados e frustrados
se encharcando dia após dia no seu bar.
Não fazia ideia de que era sugado pelo cotidiano,
como o velhinho na calçada, conduzido pelo Pastor Alemão.
Nenhum deles imagina que está num beco sem saída, filosofei.
Geni esfregava os cabelos, parecia um piolhento,
caminhava pra lá e pra cá, como um pêndulo.
Eram os boletos soltando faíscas na gaveta, só pode.
Eu gemia sem tremer os lábios.
Havia um caderno velho, no balcão.
Ele mostrou uma lista generosa de devedores, uns bêbados chapados.
Me pareceu a ala psiquiátrica do hospital.
Nada que se pudesse comparar com seres sublimes e sujos, como eu.
Cadelão, não vacile, não seja como esses...
E então o Geni gaguejou, e foi servir-se de um litrão de Polar.
Bebeu aquele gole e aconselhou:
Presta atenção, parente. Eu conserto motor de carros velhos,
sou especialista em marcenaria, já vendi melancia
debaixo de lona na fronteira com a Argentina.
Troco chuveiro queimado, caixa de descarga,
instalo antena de TV e faço jogo do bicho.
Apanhei um copo e me servi da cerveja dele.
Geni, sutilmente, mostrou-me o taco de beisebol.
Cadelão, tu já sabe o que acontece com vagabundo
que não paga a conta!
Chegaram no bar umas garotas meio passadas.
Acho que agora eu falei num tom de voz mais elevado:
Diga, meu velho, o que pretendem tarde da noite
essas deusas veteranas?
Cadelão, não dê uma de James Bond pra cima
dessas senhoras, minha clientes preferidas.
Decidi ser o DJ do bar.
Apanhei o celular do Geni e coloquei um Rap a todo volume.
Não foi uma boa ideia.
Geni gritou da cozinha do bar, enquanto fritava uns bifes:
Tira essas tranqueiras, maluco, bota o Baitaca...
Bota "Do fundo da grota"!
Os bêbados em volta aplaudiram.
Foi então que eu percebi que há uma fronteira
que não deve ser ultrapassada,
pra não se correr o risco de morte.
Ainda mais depois que o Porko gritou, de um canto do bar:
Fuja, loko, olha o tako!!!
(B. B. Palermo)
Que musa é essa
que posta fotos
sugestivas
usando máscaras
pretas?
Ela construiu suas amizades
compartilhando brincadeiras,
conselhos e segredos.
Não dá mostras,
por onde passa,
de que é tempestade.
Publicou fotos
embarcando num ônibus
rumo a uma praia
de Santa Catarina.
Olhar sério,
face misteriosa
protegida por uma máscara
preta
estilosa.
Um amigo comentou:
"Mina, tu parece
um Pit bull de focinheira!"
Quando está sozinha
ela é atenciosa,
carinhosa
e amiga.
Quando não possui
territórios afetivos
pra demarcar,
é um doce
de comer
até se lambuzar.
Já estive com ela,
já escalamos montanhas e paredões,
mandamos ver nas boas e ruins.
Ela não é comum.
Conheço algumas minas
que esqueceram
onde enterraram
o seu ouro.
Ela sobe no ônibus e sonha,
enquanto roda o baú de lata.
Assim que chegar lá,
assim que colocar o biquini
e desfilar na praia,
assim que postar as primeiras fotos,
eu saberei que o show
já começou.
(B. B. Palermo)
Olho pra foto dela
que surrupiei do Facebook.
Olho a todo momento,
inclusive no bar
vendo as tragédias
do Grêmio.
Sentado na varanda,
meio bebum,
meio cético,
com a agenda ridícula
que prometo cumprir
assim que amanhecer.
Nariz engraçado,
difícil de desenhar,
olhos vivos de feiticeira
querendo me despir
e fisgar,
cabelos empapados
de quem saiu a pouco
do banho.
Quando deliro esqueço
que ela é muito ocupada
com suas monografias,
com sua militância
e seus contos de fadas.
Esqueço que ela vive distante,
como se fosse meu anjo
que está sempre de férias.
(B. B. Palermo)
O Tiagão e o Wolverine apareceram no bar
com um chester meio devorado,
dentro de uma sacola plástica.
O Wolve exibia uma câmera fotográfica Sony
das bem moderninhas - e dê-lhe tirar fotos,
que saíam desfiguradas, bem do jeitinho
como anda o mundo.
É que nosso herói não localizava
o flash da máquina.
Aí eu dizia pra ele, erguendo o copo de ceva:
Ô, seu maluco, você não leu o manual dessa bosta?
O Manetta esquentou a iguaria no micro-ondas,
e todos do bar provaram aquela delícia.
Acabada a ceia o Tiagão revelou que adquirira o penoso
com 50% de desconto, já que a ave era sobra
dos assados de dias atrás, dum cara de uma fruteira.
Pensei ir ao banheiro vomitar,
mas ao lembrar das condições fétidas da espelunca,
desisti da ideia.
Poeta nas horas vagas, meditei sobre
a vida pregressa da triste ave,
onde nasceu, cresceu, que condições existenciais
ela desfrutou na vida e etc. e tals.
LEI DA ATRAÇÃO
Não demorou muito apareceu no bar um sujeito
pilotando uma bicicleta das bem fodidas.
Era o fornecedor de erva e afins.
Foi mais um exemplo de que a lei da atração
funciona, feito ímã: tudo o que você pensa
e deseja vem até você.
Todo final de ano recarrego a bateria
de meus pensamentos e emoções
assistindo ao documentário "O segredo".
Todo ano eu começo mentalizando "sucesso",
"saúde", "prosperidade"...
Tenho quase certeza de que em 2022
eu chego lá.
(B. B. Palermo)
Você observa o vazio
que se distancia lá embaixo
e pergunta:
POR ONDE
ANDARÁ
DONA
MORTE?
Temendo
ter que assistir
a retrospectiva
das travessuras
realizadas durante a vida,
você se segura
receando chocar-se
com algo
ao cair
no fosso.
Você tem dúvidas
se no depois
vai flutuar
eternamente
ou se vai dormir
pra nunca mais.
(B. B. Palermo)
Preparo-me pra ir ao centro pagar umas contas.
Ao vestir o moletom, que estava sobre uma cadeira, sinto uma picada,
como se fosse de vespa ou abelha, percorrendo o braço esquerdo.
No reflexo e no espanto, arranco-o com as mangas do avesso.
A lagarta caiu no chão da sala.
"Puta que pariu! Uma Taturana!".
Imediatamente crescem uns vergões, do pulso ao cotovelo.
Apanho o celular e pesquiso no Google sobre o que fazer.
"Lave abundantemente com água e sabão e depois faça compressas com
água gelada".
Enquanto faço as compressas, sinto que a ardência diminui.
Pesquiso quais os sintomas, no caso de ser atacado por essa lagarta:
"Síndrome hemorrágica aguda,
insuficiência renal aguda, etc., etc.".
"Puta merda!".
No caminho até o Posto de Saúde fico atento nos batimentos, febre,
taquicardia.
O Posto está lotado. Já na entrada sou notado pelo vigilante, que
conversa com alguns caras.
Ao perceber que eu vinha meio torto, apoiando meu braço nu, perguntou o
que havia ocorrido.
"Fui picado por uma Taturana".
Ele correu pra dentro da sala de espera e gritou pra uma atendente.
Sem fazer meu cadastro, e diante dos olhares curiosos dos pacientes que
aguardavam,
a garota me encaminhou pra enfermeira.
Entrei na sala carregando numa sacolinha plástica a minha algoz.
Ela examinou meu braço e disse que já tinham se passado uns 10 anos
desde o último caso de paciente picado por taturanas.
Imediatamente pediu para ver a bichinha, reparando que eu estava com a cara
boa
e não tinha dificuldades pra respirar.
No Google Imagens do computador ela identificou a criatura.
"Hum... Lagarta verde". Virou o monitor na minha direção e
apontou com o dedo.
"Se fosse Taturana, você estaria saindo daqui direto pra UTI de um
hospital".
Verificou a temperatura, batimentos por minuto, pressão arterial...
"Hum... Só a pressão tá um pouquinho alta... Deve ser por causa do
susto hehehe.
O resto está perfeito. Aguarde na sala de espera, logo a doutora vai lhe
atender".
Ao entrar na sala, reparo numa frase escrita na parede, logo atrás da
doutora:
CEGO NÃO É QUEM AVANÇA POR SEUS PASSOS,
MAS QUEM QUE POR MAIS QUE ANDE
NÃO VAI A LUGAR ALGUM.
- Palermo, o senhor é casado?
- Às vezes.
- Como?
- Casamento me deixa triste e solitário.
A doutora desandou a falar do marido. Um traste, comunistinha
desocupado.
- Vive às minhas custas. O filho da mãe se exibe pras garotinhas,
enquanto posa de intelectual marxista.
Que papo é esse - pensei - o que isso tem a ver com minha frágil saúde?
Olhava pro meu braço e percebia que as feridas e bolhas simplesmente
estavam sumindo.
- No que o senhor trabalha? Ou é um desocupado, igual ao meu marido?
- Eu escrevo umas histórias.
- Tem livros publicados?
- Ainda não criei coragem pra buscar uma editora. Não sei se minha obra
tem qualidade.
- Acho que entendi.
A doutora apontou pra frase na parede, às suas costas.
- Leia isso e tire tuas conclusões. Ah... o senhor é um sujeito
imaginativo,
a ponto de acreditar que foi ferido mortalmente por uma taturana hehehe.
Caí numa armadilha. As frenéticas taturanas de jaleco deitaram e rolaram
pra cima deste pobre poeta... Eu mereço.
Assim que saí do posto de saúde avistei um pátio com arvores e um
gramado.
Abri o saco e libertei a pobre lagarta verde.
(B. B. Palermo)
Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...