sexta-feira, 20 de março de 2020

Tu não precisa se comportar como um suíno


Vejam só, Beiço e eu sentados numa mesinha da padaria que fica na esquina da Quinze com a avenida São José. O criativo entortava a asa pros lados de uma senhora que ele teve a coragem de elevar ao panteão das balzaquianas.
Essa coisa de ficar tomando café e comendo fatias de bolo faz minhas tripas princesas tramarem greves de cinco dias longe do trono. O pior é que meu amigo resolveu jogar no ataque. Atacar não a balzaquiana, até porque a tal não pintou no ambiente. Eu é que estava na retranca, e o Beiço de marcação alta, e eu no sufoco, dando chutão pra todo lado.
Então me saí com essa:
- Meu, tu já não tem tanta vida pra ficar aí se esforçando em ser sujeito decente. Solta essa louca vertiginosa que rebate e respinga feito cascata dentro do teu ser.
Beiço veio com mais pressão na minha saída de bola.  
- Tu não fica ansioso quando vê aquelas roupas lindas te acenando das vitrines das lojas?
- Sim. O incrível é que elas acenam e dizem Vem cá, Sr. Palermo, viemos ao mundo para servi-lo.
Sei, irmãozinhos, que acontece o contrário: sou eu quem serve de boneco das roupagens que visto ou deixo de vestir, por falta de grana. Essa é a merda de aceitar uma imagem que a cultura impõe.
Beiço e sua boca escancarada e aparelho ortodôntico, e que se libertou daquele menino povoado por nuvens neuróticas e que chegou a ter uma boca acolhedora de dentaduras postiças. Sente-se agora um pavão no meio das garotas, e comenta:
- Aquela e aquela e aquela estão no papo.
Não estou nem aí, se continuar assim meio solitário e carente de roseiras encaminho um saravá pra limpar meu terreiro e também fazer chover princesas "estão no papo".
A inveja que sinto de meu amigo se quadruplica suave e definitiva, basta garotinhas quase virgens se exibirem pra ele e não notarem minha esforçada presença.
Nessas horas me coço e quase deixo escapar: "Cara, tu não precisa se comportar como um suíno".
- Podes rir da minha cara, mas acho que não sou débil mental satisfeito com o saco de pão dormido que me servem dia após dia.
- Te liga, Cadelão, veja como essas garotinhas semivirgens e pobres sonham o dia todo em ser românticas. Basta alguns carinhos e umas promessas e já pensam no amor.
- Beiço, tu é um bobo, e elas sabem tudo. É, tudo o que acontece do nascer ao por do sol. Quem ficou com quem, quem comeu quem, quem é um caco, quem não é de confiança... Meu, tu precisa se reinventar, seu... escrotinho. Precisa de repertório, fingir, gemer, pedir aos céus com fé convulsiva. Olha só, elas dizem que não têm perfil no Facebook, só que em menos de 2 horas mapearam teus contatos, cruzaram informações. Velho, vai por mim, o melhor é se isolar, ser algo como um hippie tardio e estranho, e jorrar na face dessa sociedade careta tua ureia colorida e fedorenta.

Agora em casa, 2 da manhã, copo cheio, penso na razão de ser desse big brother, enquanto aponto o chinelo pro íntimo de uma barata. Seres pré-históricos atravessam a sala e riem de meu ser metafísico. O mundo material é a alternativa, então apanho o chinelo e dou o corretivo, como se estivesse preparando mais um funeral do governo.
Paz e amor. Todos de quarentena. Resta-nos o mundo virtual e um bom e diversificado estoque de bebida. Uma queda de braço entre o tempo necessário de isolamento e a grana e as bebidas e as intenções duvidosas desses vírus petulantes.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 16 de março de 2020

Solitários e mortos


Cada idoso que converso 
é um profeta da meteorologia.
É que passamos um período de seca.
Em todos os sentidos.
Confiro as postagens compartilhadas no Facebook
e vejo que estamos sozinhos e mortos.
Ouço a religiosa parruda e de saia
e ela diz que o apocalipse está próximo.
Tem uns versículos marcados e decorados em sua bíblia.
Pensei cantar para ela, mas está muito séria,
concentrada no fim, e eu sou desafinado.
Vacas estão secando.
O cadáver do tempo geme e finge estar vivo.
Hoje de manhã cruzei por um lagarto jovenzinho na calçada
e vi que seu rabo sumiu.
É isso, são períodos de seca e necessidade.
Vou compartilhar um segredo:
conheço gente pirada
e insensível e sofredora.
Não têm veias e rins e fígado e coração.
São malas de rodinhas de um lado pro outro.
Embora solitários e insensíveis e mortos,
alguns passamos o dia praguejando na internet,
com nossa voz fazendo o ruído de uma sopa de ratos
com ervilhas e queijo ralado.
A morte e o sofrimento e a solidão
dobram a esquina e se aproximam.
É por isso que vejo tanta gente
falando sem parar sobre nada.

(B. B. Palermo)


sábado, 14 de março de 2020

Férias de março em Itapema Beach




- Tá bem, tá bem, já te conto o que rolou. Deixa eu preparar uma dose... É o seguinte, véio, tudo começou num bate-papo no Messenger. É, aquelas curiosidades, tipo "O que tu faz?", "Do que tu gosta?", e blá-blá-blá... Até chegar na pergunta sobre a idade. Eu falei que tava perto dos 40, ela disse que tava quase passando dos 50.
- Pô, Cadelão, dá pra ver que a coisa fluiu.                                                                         
- Bah, acho que me saí bem na lábia. Rolei um papo de que alguns anos atrás fora convidado pra ser modelo. Disse que viram em mim uma singular expressão facial e olhos diferenciados e que era fotogênico.
- Tudo isso numa conversa no Messenger?
- Yes. Velho, ficamos juntos algumas horas e ela quer que mude pra sua casa, e que bote o Corolla novinho pra funcionar.
- Hum... Se amarrou em tu.
- Meu, ela veio com a ideia de passarmos duas semanas na praia, em Itapema Beach e, claro, tudo bancado por ela. Tem um apartamento de frente pro mar.
- Caralho! Meu, é a chance de tua vida. Tu vai poder comprar roupas de grife. Olha os trapos que tu veste, Cadelão!
- Puta, cara, bem que ela podia ter 20 anos a menos. Não consigo olhar aquelas pernas finas. E aqueles braços murchos.
- Velho, imagina a experiência, vocês num passeio até Brusque, o som no carro, a paisagem, o silêncio romântico e os "olhos nos olhos, quero ver o que você diz". Vocês dois num daqueles shoppings, ela escolhendo pra ti dúzias de bermudas e camisetas e cuecas e bonés e depois passando o cartão.
- Não, não, não! Beiço, tu já parou pra pensar? Sou ou não sou um cara letrado? Podia ser figura de destaque nos tabuleiros sociais, e agora tô aí de olho na grana de uma indefesa senhora.
- Ah tá. Observe essa espelunca em que tu te esconde.
- Não quero nem lembrar do banheiro da casa dela. Me senti humilhado, entrava lá e perdia a vontade de mijar. Aquele piso de mármore, os espelhos, a decoração metalizada, a iluminação. Meu, tinha sauna e TV. Me diz, Beiço, como me sentarei ali, bêbado, de madrugada?
- Não exagera, Cadelão. Encare a praia.  Março é um mês quente e todo mundo tá trabalhando e estudando, tem pouca garota circulando pela orla, quer dizer, pouca tentação. Tu fica à vontade, passeia com ela, num biquinizinho. To aqui imaginando a cena, à tardinha, junto ao por do sol.
- Beiço, vem junto. Falei de tu pra ela. De que tu é pobretão mas é legal, tem princípios.
- Acho que é melhor não. Ela se amarrou foi em tu.
- Eu te elogiei. Falei dos teus talentos. Ela ficou curiosa pra te conhecer. Inventei que tu é poeta e músico.
- Vê lá a fria que tu vai me meter.
- Que nada. Ela vai adorar foder contigo. Eu me comprometo a dar uma de vez em quando, só pra variar.
- Não sei não, cara.
- Não esquenta, concentra na grana que está em jogo.
- Tu investigou? Ela é mesmo rica?
- Tive umas informações sólidas. Herdou uma fortuna do finado.
- Tá, mas tem como saber se ela tem 50 ou uns 60 e poucos?
- Velho, só fiquei com ela de noite, eu estava meio alto e tinha pouca luz, quase uma penumbra. Não posso ter certeza se ela era linda ou feia.
- Hum...
- Tá bem, tá bem, tô lembrando umas coisas. Tinha uns cabelos ralos, devia usar tintura. Lembro dos braços e das pernas finas. Não lembro de como eram os dentes. Cara, não tenho ideia se é muito velha. Gostei da voz, é bem suave, parece uma freira.
- Tu comentou que viu a caixinha de remédios dela. Tu acha que uma dona, antes dos 50, toma tanto remédio?
- Hum... Só reparei num estojo, tinha uns complementos, vitaminas, tipo B12 e B6 e vitamina D e cálcio e ferro. Acho que tinha também remédio pra pressão e menopausa e pra levantar a libido e tals...
- Meu Deus!

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 11 de março de 2020

Mestre Buda sabe que sou péssimo aluno



Deparo-me com discursos empolgados sobre assuntos do momento.
Nos últimos dias é o desempenho do PIB, e do vírus que surgiu na China e se espalha pelo mundo.
Não faço questão de me especializar nessas porras, e nunca sei se o que leio ou ouço é confiável ou não.
Minha luz interior muda suas cores, muitas vezes se dispersa e dissipa, mas se torna festiva, como naqueles lugares em que luzes piscantes apresentam ninfas esperançosas de amor.
É mais divertido prestar atenção ao que vejo nas ruas. À tardinha um baixinho musculoso carrega uma bandeja com trinta ovos, limpinhos e ofertados ao mundo por poedeiras de belíssima linhagem. Adoro ovos, e se engana quem acha que eu não vivo sem churrasco e bifes de primeira e filés de peixe e uísque do bom.
Adapto-me às circunstâncias e me sinto bem quando enrolo umas garotas da noite e me orgulho do currículo de chinelão esperto que descobriu, pelo poder da mente, como se sair melhor do que esse bando de escrotos submissos e obedientes.
O que digo aqui, sei, não faz a menor diferença para o bom funcionamento da máquina e suas engrenagens.
Num outro mundo, ideal para o ego, talvez fosse diferente. Podes criar e habitar um mundo mais próximo desse EU, o mundo dos teus pensamentos e emoções e sensações, em vez de absorver diariamente uma máscara, que são as impressões criadas pelos outros, deixando a cabecinha desamparada e sufocada.
Vejo essas garotas balançando nas redes das nuvens com seus meninos em bons carros, semblantes sérios, e sinto que as ruas podem revelar algo que talvez seja meio imperceptível aos que circulam por aí no piloto automático.
São perguntas comuns e arrasadoras, depende de como organizas os pensamentos. "Que merda de escolhas eu fiz?". "Por que sou ingênuo a tal ponto?".
Diante desses impasses, o cadelão inconsequente prepara uma dose com bastante gelo e põe um blues pra tocar. Seus pensamentos se dispersam e viajam, e Buda fica indignado e se revira no caixão.
Coitado do Buda, o Cadelão sabe que a engrenagem não foi programada pela máquina para pensar nisso, ela quer que você aposte na esperança e deseje as maravilhas que o mundo oferece a todo instante, não importa se as rodas do teu carro estão tortas.
As ruas mostram várias coisas. Observo o cretino que tem a cidade meio que nas mãos, ao veicular em seu site de notícias os crimes do narcotráfico. O sujeito circula, todo sério, num unozinho caindo aos pedaços, e disputa como um corvo a publicidade de umas empresas endividadas até o gargalo. A ordem é levar para o povo as novidades ensanguentadas, e pra isso tem seus informantes, sua vida gira em torno de uns furos de reportagem.
São tempos loucos, e ainda bem que ninguém liga pras minhas viagens.
Caminho pelas ruas e observo aposentados nas varandas, sentados em cadeiras de praia e ouvindo seu radinho. Os programas das emissoras despejam manchetes e destaques de tudo o que acontece no mundo. Enchentes e estiagens e muita música popular.
Esses velhinhos renderiam belas reportagens. Sua vida, suas histórias. Mas eles não vendem jornal. Nunca foram presos, não têm ficha na polícia, não fazem ideia de como é o tráfico de drogas. Das poucas vezes em que foram lembrados foi no censo do IBGE.
O que importa é que me divirto observando legiões de ratos sendo moídos pela máquina. Estou nessa também, eu sei, mas eu agora diminuí na dose e comecei a assistir palestras virtuais sobre a filosofia budista. O mestre sabe que sempre fui péssimo aluno, mesmo assim diz que o mais importante é a força de nossos pensamentos. O mundo parte deles, pelo menos o TEU mundo. Tenho dúvidas quanto ao meu.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 10 de março de 2020

Para tentar compreender nossos tempos



O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo. 

(Nelson Rodrigues. Escrito em 27/12/1967. Do livro O óbvio ululante).

segunda-feira, 9 de março de 2020

A sorte um dia volta



- Daí, Beiço, tens jogado muito no Bicho?
- Bah, Cadelão, tô meio que desistindo. Sei lá, venho atravessando uma onda de seca na minha sorte.
- Meu, de tanto ver e ouvir notícias da prisão do Ronaldinho no Paraguai, sonhei com o número 171.
- Sério? Vou jogar pesado nele, esta semana. Se a sorte me sorrir, 20% é teu!

(B. B. Palermo)

domingo, 8 de março de 2020

O deus maligno de nossos dias


No séc. XVI o filósofo Descartes desconfiava que um deus maligno podia nos enganar o tempo todo. Para evitar isso, propôs como método de pensamento o exercício da dúvida. Hoje, o deus maligno são as fake News. Dada a maneira como têm feito a cabeça das varas de porcos descerebrados, desconfio que brevemente todos chafurdaremos na mesma lama. 

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 4 de março de 2020

Maridos jovens e velhos - Nelson Rodrigues



(...) Ontem vou dobrar a esquina da rua Irineu Marinho quando uma voz me chama: - "Nelson, Nelson!". Viro-me e dou de cara com um gordo, desses que têm uma papada maior do que a de Dumas pai. Não sei se sou famoso. Mas admitindo que o seja, tenho um tipo de ralação inefável: - o "desconhecido íntimo". São sujeitos que eu nunca vi e que me tratam com uma intimidade jucunda e fulminante. Pois o gordo citado já abria para mim riso total.
Antes de me estender a mão enxugou-a num vasto lenço, explicando: - "Suo muito nas mãos". De minha parte tive bastante descaro e o tratei como a um amigo de infância. E ele me perguntava: - "Não se lembra mais de mim?". Há um suspense e o desconhecido íntimo insiste: - "Vê bem". Palavra de honra, eu não me lembrava. Ao longo de minha vida tenho tido vários amigos gordos. Mas não conseguia me lembrar nem daquela papada, nem daquelas bochechas. Na minha frente ele continuava a enxugar as mãos de um suor talvez imaginário.
E, súbito, exausto do suspense, o outro dá o berro: - "Eu sou o Neves!". Sim, era um Neves radiante de o ser. O Neves, o Neves! E o simples nome deflagrou em mim todo um maravilhoso fluxo de memória. Na minha infância profunda o Neves fora meu vizinho. Muitas vezes pulara eu o muro para ir roubar carambolas no seu quintal. Disse-lhe: - "Se me lembro!". E, já varado de nostalgia, suspirei: - "Bom tempo, bom tempo".
(...)
Foi uma conversa, entre nós dois, que se arrastou por hora, hora e meia. Falta-me espaço para contar todas as verdades eternas que dissemos um ao outro. Mas estava ficando tarde e quis me despedir. Foi aí que, mudando o tom, o Neves exala um gemido. Baixando a voz, começa: - "Preciso de uma opinião, um palpite". Novo gemido. - "É o seguinte: tenho uma filha linda, linda. Dezoito anos, aluna da PUC, um crânio. Mais inteligente do que eu, do que a mãe, do que os tios. Um portento. A garota estava noiva de um rapaz de vinte anos". Faz uma pausa e puxa um cigarro. Ou por outra: - o Neves não fuma. Não puxa o cigarro e diz trêmulo: - "Com data marcada para o casamento, minha filha se apaixona, e sabe por quem?".
Disse, por entre lágrimas: - "Por um velho". E como ele chorava na via pública ao meu lado, tive uma vergonha brusca e desalmada daquele pranto de gordo. Não sei por que, talvez injustamente, sempre achei que a lágrima do magro constrange menos. Apelei: - "Não faça isso!". Olhava para os lados, esbaforido, como se o homem que chora fosse, por isso, obsceno: - "Filha única! Filha única!". Arrisquei a pergunta: - "Mas é tão velho assim?". Disse: - "Quarenta anos!".
O Neves estaria disposto a aceitar que a menina deixasse um jovem por outro jovem. E repetia, desatinado: - "Mas, por um velho! Um velho!". Digo-lhe: - "Calma, calma!". Pula, furioso: - "Você diz calma porque a filha não é sua. Nós somos calmíssimos com as filhas dos outros. Queria ver se fosse contigo. Responde: não é uma tragédia?" Fui taxativo: - "Tragédia nenhuma! Pelo contrário: sorte para sua filha, sorte para você, para a sua mulher, para a sociedade brasileira. Você e o Brasil estão de parabéns". Aterrado, balbucia: - "Que piada é essa?".
Tive de jurar-lhe que não fazia nenhuma piada. Estava falando com uma seriedade total. Expliquei o que acho: - a esposa pode ter qualquer idade e não importa. Mas o marido não pode ser jovem. É trágica a união do homem e da mulher da mesma idade. Falei da minha experiência pessoal. Aos vinte anos eu não sabia como se cumprimenta uma mulher, como se diz "bom dia" a uma mulher, como se olha, ou sorri para uma mulher, como se protege e como se salva uma mulher. Claro que, aos dezessete, vinte anos, o sujeito tem uma plenitude de bárbaro. Mas é uma vitalidade cega, feroz, destrutiva. Quando marido e mulher são jovens a convivência é o próprio inferno. Nunca se improvisou um marido. Marido é métier, é tempo, é virtuosismo, sabedoria, lúcida paciência.
O Neves repetia, fora de si: - "Mas o cara tem quarenta anos!". Parecia-lhe que, aos quarenta anos, o homem é de uma velhice infinita, milenar. Achei graça no seu terror. Disse-lhe que, a partir dos quarenta, o homem já pode ser marido. Aprendeu fazendo sofrer outras mulheres, dilacerando outras mulheres. Ao passo que, aos vinte, com a sua feroz vitalidade sem alma, ele pode ser tudo, menos marido. Não tem nem alma, porque a alma vem depois, vem com o tempo. Neves ouvia, atônito. Por fim, admitiu: - "Realmente, aos vinte anos eu era uma boa besta". E pergunta, quase convertido: - "Quer dizer que não é uma desgraça?". Só faltei jurar: - "Uma sorte grande" (...).

Do livro O óbvio ululante. Companhia Das Letras.

Cadelão e seus amigos e suas mães loucas

Gente, esse cara é muito louco!

https://www.youtube.com/watch?v=hkE8WpNf21A&t=64s

Cervejinha e barzinho: Por que o brasileiro ama falar no diminutivo


Para um país tão famoso por suas grandes coisas, o Brasil pode, de uma maneira engraçada, ser considerado a terra dos diminutivos; praticamente nenhuma palavra está imune à diminuição.

Eu estava no Brasil havia menos de 24 horas quando me revelaram um segredinho. Em um barzinho, quando o sol se punha, um novo amiguinho brasileiro que conheci no meu hostel no Rio de Janeiro tinha uma garrafa gelada de cerveja Antarctica na mão.

Conversando sobre a noite que teríamos pela frente, ele nos serviu a bebida e me disse: "Se você quiser falar com uma garota hoje à noite, não a chame para tomar uma cerveja; pergunte se ela gostaria de uma cervejinha. Ela vai adorar se você usar essa palavra".
E foi assim que fui apresentado à fofa, porém complicada conversinha brasileira.
Não falo daqueles papinhos gentis sobre o tempo, mas do hábito que os brasileiros têm de usar diminutivos para dar um charme às suas frases, adicionando o sufixo inho/inha ou zinho/zinha.
Para muitos brasileiros, é como se uma montanha de diminutivos mudasse o sabor de suas palavras nesse processo.

Lembrança da infância

A meteorologista Carine Malagolini, de São Paulo, diz que os diminutivos são uma forma de conversa infantil que os brasileiros nunca deixaram para trás.
"Usamos muitos diminutivos e muitas vezes sem perceber. Eu acho que o uso deles veio da infância, porque nós ouvíamos e conversávamos assim com nossos pais. Por exemplo, eles perguntavam 'Você quer uma bananinha?'", diz.
Literalmente, os inhos e inhas fazem as coisas serem menores, efetivamente suavizando uma palavra, tornando-a fofa e gentil. E enquanto em inglês diminutivos são vistos como algo infantil (gatinho, cãozinho, mamãezinha), todo mundo no Brasil, de políticos a médicos, utiliza-os sem qualquer indício de ironia.
Para um país tão famoso por suas grandes coisas - a Amazônia, o Cristo Redentor e o Carnaval - o Brasil pode, de uma forma engraçada, ser considerado a terra dos diminutivos.

Praticamente nenhuma palavra está imune à diminuição.


Contexto é importante

Mas logo descobri que os diminutivos podem acrescentar todo tipo de significado oculto que pode fugir à percepção de um estrangeiro.
Contexto é tudo nessa dança linguística. Como meu novo amigo brasileiro depois me explicou, usar "cervejinha" em vez de "cerveja" implicava um convite inocente e amistoso, sem nenhuma intenção de se embebedar até tarde da noite e tudo o que isso envolve. "Genial", pensei. "Um sufixo pode dizer tudo isso?"

O linguista da Universidade de Brasília Marcos Bagno explica: "O diminutivo em 'inho' e 'inha', além de indicar o tamanho pequeno de algo, traz uma sensação de bondade e afeição - muito característicos do espírito brasileiro".

A advogada Suzana Vaz, do Rio de Janeiro, é uma das muitas brasileiras que adoram usar diminutivos. Antes de falarmos deste hábito linguístico, ela admitiu que nunca tinha realmente notado o quanto ela os usava. E explicou que "pessoas doces geralmente falam assim".
"Então, quer dizer que você é doce ou que os brasileiros são em geral?", perguntei.
"Os brasileiros são mais calorosos, amorosos. Eles gostam de contato, do corpo a corpo. Eles são vivazes. Falar no diminutivo é uma forma de carinho na maior parte do tempo, é a suavidade na fala ", disse ela.

Esperar um minutinho é uma eternidade


O engraçado dos diminutivos no Brasil é que eles muitas vezes suavizam tanto o significado das palavras que acabam dando a elas um sentido oposto.

Como quando minha namorada brasileira me pediu para "esperar só um minutinho" enquanto ela se arrumava. Depois de esperar mais 15 desses alegados pequenos minutos, perguntei como ela poderia dizer um "minuto" como "um minutinho" com a consciência tranquila.
"Mas isso faz com que esses minutos passem mais rápido", ela me assegurou com um sorriso amoroso, o diminutivo saindo de sua língua como se pudesse dobrar o tecido do espaço e do próprio tempo.
Da mesma forma, uma vez fui convidado para uma festa em uma "casinha". Algum tempo depois, meu Uber estacionava em frente a uma mansão de quatro andares com uma piscina.
"Bela 'casinha'", eu disse ao dono. "Ah, sim", ele riu. "Isso não significa que a casa é pequena, significa que é um lugar aconchegante onde você deve se sentir confortável e bem-vindo."
E no verdadeiro estilo brasileiro, em meio a uma noite de risadas e dança com um bando de estranhos, me senti em casa.

E apesar do que eu disse anteriormente, a chamada "cervejinha" normalmente se transforma em uma mesa cheia de garrafas vazias no fim da noite.


Com exemplos como esses se acumulando, comecei a entender o fato de que usar diminutivos no Brasil pode ser tanto uma maneira divertida de falar quanto literal.


O professor de português Jean Fonseca, da escola de idiomas Caminhos, nota que há casos de diminutivos que se transformaram em outras palavras.

Camisa é a palavra para a peça de roupa em português, então, camisinha naturalmente levaria você a acreditar que é uma camisa menor. Errado. No Brasil, camisinha é, na verdade, o nome popular do preservativo para o sexo. "[O nome camisinha] foi usado como uma estratégia para popularizar o preservativo entre as pessoas", fala Fonseca.
"O nome original de 'preservativo' foi apelidado de 'camisa de Vênus' por causa da deusa romana do amor. E aí se tornou 'camisinha'.

Poder de mudar as coisas

Mas os diminutivos no Brasil também têm seu lado subversivo. Tal é o seu poder que eles podem fazer algo ruim soar como algo bom, algo rude soar como algo agradável e algo chato soar como algo divertido.
Em nenhum lugar eu notei brasileiros tirarem mais proveito disso do que com apelidos.
Descobri isso quando visitei a pequena cidade costeira de Rio das Ostras, a algumas horas de carro do Rio. É um lugar onde gringos loiros como eu não são tão comuns, me transformando um pouco em uma novidade.
Enquanto conversava com uma moradora local sob as árvores frondosas de um quiosque à beira-mar devorando pastéis de carne deliciosamente crocantes, ela disse que sempre quis conhecer seu próprio Gasparzinho. "Um o quê?", perguntei, incapaz de decifrar prontamente esse diminutivo.
Ela pegou o celular, foi até as imagens do Google e tirou uma foto de Gasparznho, o fantasma do desenho infantil. Eu comecei a rir.
Ser chamado de branco fantasmagórico pode não ser o maior elogio para um australiano, mas era mais fácil aceitar isso quando falado dessa maneira.
Diminutivos também podem ser pejorativos, dependendo do nível de maldade na língua.

Como o linguista Bagno me disse: "Também pode ser uma maneira de menosprezar uma pessoa", observando que os alunos se referem a um professor de quem não gostam como "professorzinho".


Os brasileiros também usam diminutivos para se safar, como uma maneira indireta de dizer algo não totalmente lisonjeiro.

O exemplo mais famoso disso é o bonitinho/a.
No começo, imaginei que isso era um elogio e, dependendo da situação, pode mesmo ser. Mas no léxico brasileiro também é transformado para se referir a alguém que talvez não seja o mais bonito da sala, mas que tenha seu próprio charme.
Pode ser o jeito que uma mulher diz "ele é um cara legal, mas eu não estou interessada", ou "bonitinho, mas mais como irmão".

Um dos escritores contemporâneos mais famosos do Brasil, Luís Fernando Veríssimo, resumiu toda essa situação confusa em seu ensaio "Diminutivos", quando escreveu sobre a "obsessão de seu país de reduzir tudo à menor dimensão, seja café, cinema ou vida".

"O diminutivo é uma maneira afetuosa e cautelosa de usar a linguagem. Carinhoso porque costumamos usá-lo para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E cauteloso porque também o usamos para desarmar certas palavras que, em sua forma original, são muito ameaçadoras", escreveu.

O que eu aprendi durante o meu tempo no Brasil é que você não pode levar esses diminutivos ao pé da letra, literalmente, mas deve usá-los à vontade.

Quando faz isso, está realmente no caminho certo para falar como um brasileiro.

E se você estiver no Brasil procurando praticar esse tipo de conversinha fofa, mas complicada, lembre-se do primeiro passo: peça a eles para fazerem isso com uma cervejinha. Praticamente ninguém no Brasil dirá não a isso.
Lost in Translation é uma série da BBC Travel que explora encontros com idiomas e como eles são refletidos em um lugar, em pessoas e na cultura.

Diminutivos - Luís Fernando Veríssimo




Sempre pensei que ninguém batia o brasileiro no uso do diminutivo, essa nossa mania de reduzir tudo à mínima dimensão, seja um cafezinho, um cineminha ou uma vidinha. Só o que varia é a inflexão da voz. Se alguém diz, por exemplo, "Ô vidinha", você sabe que ele está se referindo a uma vida com todas as mordomias. Nem é uma vida, é um comercial de cigarro com longa metragem. Um vidão. Mas se disser "Ah vidinha..." o coitado está se queixando dela, e com toda a razão. Há anos que o seu único divertimento é tirar sapatos e fazer xixi. Mas nos dois casos o diminutivo é usado com o mesmo carinho.
 O francês tem o seu "tout petit peu", que não é um diminutivo, é um exagero. Um "pouco todo pequeno" é muita explicação para tão pouco. Os mexicanos usam o "poco", o "poquito" e - menos ainda que o "poquito" - o "poquetím". Mas ninguém bate o brasileiro.
 Era o que eu pensava até o dia, na Itália, em que ouvi alguém dizer que alguma coisa duraria um "mezzoretto". Não sei se a grafia é essa mesma, mas um povo que consegue, numa palavra, reduzir uma meia hora de tamanho - e você não tem nenhuma dúvida de que um "mezzoretto" dura os mesmos trinta minutos de uma meia hora convencional, mas passa muito mais depressa - é invencível em matéria de diminutivo.
 O diminutivo é uma maneira ao mesmo tempo afetuosa e precavida de usar a linguagem. Afetuosa porque geralmente o usamos para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E precavida porque também o usamos para desarmar certas palavras que, na sua forma original, são ameaçadoras demais.
 "Operação", por exemplo. É uma palavra assustadora. Pior do que "intervenção cirúrgica", porque promete uma intervenção muito mais radical nos intestinos. Uma operação certamente durará horas e os resultados são incertos. Suas chances de sobreviver a uma operação... sei não. Melhor se preparar para o pior.
 Já uma operaçãozinha é uma mera formalidade. Anestesia local e duas aspirinas depois. Uma coisa tão banal que quase dispensa a presença do paciente.
 - Alô, doutor? Olha, aquele meu quisto no braço direito que nós íamos tirar hoje? A operaçãozinha?
 - Sim.
 - Não vou poder ir, mas o Asdrúbal vai no meu lugar.
 - O Asdrúbal?
 - Meu assistente direto aqui na firma. Homem de confiança.
 - Mas ele vai fazer a operaçãozinha por você?
 - Ele é o meu braço direito, doutor.
 Se alguém disser que precisa ter uma conversa com você, cuidado. É coisa da maior importância. Os próprios destinos do Pacto do Atlântico podem estar em jogo. Uma conversa é sempre com hora marcada.
 Já uma conversinha raramente passa do nível da mais cândida inconsequencia. E geralmente é fofoca. A hora para uma conversinha é sempre qualquer hora dessas.
 Num jogo você arrisca tudo, até a hora. Num joguinho aceita-se até o cheque frio.
 Entre ter um caso e ter um casinho a diferença, às vezes, é a tragédia passional.
 No Brasil, usa-se o diminutivo principalmente em relação à comida. Nada nos desperta sentimentos tão carinhosos quanto uma boa comidinha.
 - Mais um feijãozinho?
 O feijãozinho passou dois dias borbulhando num daqueles caldeirões de antropófagos com capacidade para três missionários. Leva porcos inteiros, todos os miúdos e temperos conhecidos e, parece, um missionário. Mas a dona de casa o trata como um mingau de todos os dias.
 - Mais um feijãozinho?
 - Um pouquinho.
 - E uma farofinha?
 - Ao lado do arrozinho?
 - Isso.
 - E quem sabe mais uma cervejinha?
 - Obrigadinho.
 O diminutivo é também uma forma de disfarçar o nosso entusiasmo pelas grandes porções. E tem um efeito psicológico inegável. Você pode passar horas tomando "cervejinha" em cima de "cervejinha" sem nenhum dos efeitos que sofreria depois de apenas duas cervejas.
 - E agora, um docinho.
 E surge um tacho de ambrosia que é um porta-aviões.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...