sábado, 3 de agosto de 2019

Por favor, Dona Flor, aceita teu marido de volta, aceita



Estava no bar do Telmo lendo jornal e bebendo algumas. Daí a pouco chegou um grupo de mulheres, duas delas com seus maridos. Um dos casais carregava um bebê de uns seis meses. Imaginem a operação envolvida pra se levar um bebê num jantar de amigos num bar, numa noite de inverno. Carrinho, cestinho, cobertores de lã, sacola com fraldas e mamadeira, etc., etc.
O brinde do reencontro foi pelo aniversário de uma amiga e, claro, com várias fotos para postar no Facebook.
Eu tentava escrever um poema para uma garota que trabalha numa confeitaria, perto de minha casa. Todo o dia queimo minha grana com sanduíches e doces, só pra vê-la se engraçar. Ela se exibe parecendo rir de minha cara mas, como me transformo num palerma quando me apaixono, não percebo nada.
O bebê choramingou.  A mãe falou pras amigas: “Ela não faz cocô há dois dias”. Disse uma outra: “Você precisa comer mamão. Essa fruta é laxante. Com a amamentação, isso passa pra criança. Vai fazer cocô logo logo”.
A mãe então lembrou de um episódio quando voltou a tomar cerveja, depois do período de gestação e da quarentena. “Fomos jantar fora. Tomei umas cervejas com meu marido. Em casa, antes de dormir, amamentei a nenê. Vocês não imaginam. Ela começou a rir que não parava mais. Pegou no sono às três da manhã!” Disse uma outra: “Criatura, você embebedou a criança”.
Como não tinha jeito de não ouvir o que conversavam, pedi outra dose pro Telmo. Uma das amigas foi até o carrinho e pegou o bebê no colo. “Nossa, parece chumbo!” A mãe disse: “Ah, não exagera”. “Dê pra ela meio comprimido de laxante. Logo, logo ela fica bem levinha”.
E foi assim que a inspiração ficou pra outro hora. Daí a pouco entrou no bar, meio desnorteado, um amigo meu de beber umas e outras em algumas espeluncas da cidade. Com aquela cara, pressenti que algo tinha acontecido. Fiz um sinal pra que bebesse comigo. Eu levo jeito pra psicólogo. Isso, gosto de escutar as pessoas contarem suas paranoias e tragédias, e o Flori me parecia com cara de trágico.
“Daí, meu amigo! Que cara é essa?” “Minha mulher meteu o pé na minha bunda”. “Putz... O que você aprontou dessa vez?” “Nada demais. Cara, tô casado há quinze anos. Juntos, construímos uma linda história. Temos nosso menino, o Pedro Geromel, e também um cachorro, o Cebolinha”. “Mas, assim do nada, tua mulher não ia te botar pra fora de casa”.
Então ele contou em detalhes o episódio que desencadeou a crise do casamento. Num sábado, depois do expediente, encontrou alguns amigos e decidiram conversar e tomar algumas cervejas. Estendeu-se, o dia passou rápido nesse sofrimento que é ir de bar em bar. A noite avançou, novos amigos, histórias de amores, festas e aventuras, e o MEDONHO esqueceu-se de voltar pra casa. Foi com a turma a um baile, num bairro da cidade.  Ele tentava me convencer, e concordei, de que essa fraqueza, por si só, não tem tanto poder para sacudir as bases da lei e da ordem do sagrado matrimônio. No dia seguinte, porém, na hora de colocar os fatos em panos limpos, meu amigo disse à esposa que chegou tarde porque havia sido convidado pro aniversário do filho de um amigo. Lá, o jogo de canastra invadiu a madrugada.
No baile Flori ganhou um prêmio. Nossa, Ele que nunca ganhou nada em sorteios, durante a vida toda! Era um frango assado, patrocinado por um mercadinho do bairro.
Dada a quantidade de cerveja que lhe subiu à cabeça, esqueceu-se completamente do galináceo. O baile foi um sucesso, e na segunda-feira pela manhã uma emissora de rádio anunciou os ganhadores dos brindes sorteados.
Pro seu azar, a esposa sintonizava aquela emissora, naquele instante.
Acusado de mentiroso e infiel, e pra dar uma resposta à altura dos anseios de familiares e amigos, Dona Flor botou a criatura pra correr. Arrependido, e morando de favor na casa de um parente, ele sente falta da esposa, do filhinho e do cachorro, sua pátria e porto seguro.
“Cara, fiquei tocado com tua história. Acho que isso não é motivo suficiente para acabar um casamento”. “Quando entrei no bar e te vi, fiquei pensando...” “No quê?” “Você, que é escritor, podia bolar uma carta pra convencer Flor a me aceitar de volta. Pode ser uma carta anônima”. “Hum, posso criar um pseudônimo”. “Faço um churrasco e ainda te pago meia dúzia de litrões se a carta convencer Flor a me perdoar...” “Fechado”.
No dia seguinte escrevi uma carta. Dizia assim:
Dona Flor, não necessito da sabedoria de um guru para afirmar que os dias atuais são muito perigosos.  Em cada esquina surge um anjo mau disposto a colocar minhocas em nossa cabeça, e levar nossos amores à perdição.
Cabe lembrar à senhora de que nem Flori, nem qualquer outro homem, funcionam como relógio suíço: certinhos, previsíveis, totalmente ajustáveis. Aliás, nem os homens nem as mulheres.
Para não ser acusado de machista, vou citar algumas frases ditas por mulheres, no livro “O amor de mau humor”, de Ruy Castro, com o objetivo de fazê-la mudar de ideia e aceitar seu marido de volta.  
Embora madame Stael diga que “o amor é a história da vida de uma mulher; e um episódio na vida de um homem”, convém prestar atenção no conselho de Dorothy Parker: “Conserve os dedos abertos... e o amor fica. Feche-os, e ele se desprende”.
Marido é coisa séria, dona Flor. Diz ZsaZsa Gabor: “Maridos são como fogo: extinguem-se se não forem atiçados”.
Quanto ao casamento, este nem sempre representa o paraíso. Diz Dra. Joyce Brothers: “O casamento não se compõe apenas de uma comunhão espiritual e de abraços apaixonados; compõe-se também de três refeições por dia, lavar a louça e lembrar-se de pôr o lixo para fora”.
Sem querer desanimar-te nesse sonho de manter reto o teu casamento, veja o que disse Helen Rowland: “Quando uma garota se casa, está trocando a atenção de muitos homens pela desatenção de um só”.
E para dividirmos as responsabilidades a respeito das dificuldades no casamento, diz Mae West: “Nunca pergunte a um homem por onde ele andava. Se não estava fazendo nada errado, não precisa de álibi. E, se estava, a culpa é sua, minha filha”.
 Dona Flor, Flori precisa muito de você. Tanto é que veio a público, como se esta carta fosse sua serenata e buquê de flores, para dizer-te o quanto te ama.
Depois dos puxões de orelha, o que seu homem mais precisa é de colo. Portanto, aceite-o de volta, abra-lhe as portas e acolha-o na segurança do teu abraço. Não se sinta humilhada; parafraseando François Truffaut, saiba que, no amor, vocês mulheres são profissionais, enquanto nós, homens, somos amadores.
Meu amigo colocou a carta anônima no correio dois dias depois. Antes do final de semana seguinte Flor o aceitou de volta, mas com algumas ressalvas, que ele preferiu não narrar.
Além da meia dúzia de cervejas e do churrasco no bar do Telmo, ele apresentou sua esposa ao autor da carta. Nesse momento tive consciência de minhas dores interiores... Quer dizer, gosto de ajudar a curar as dores de amores dos outros, mas não consigo ME AJUDAR. Por que será, hem meus amigos?
Ali, diante-daquela-flor-de-li-ca-dís-si-ma, fiquei louco pra narrar minhas leituras de Nelson Rodrigues, de que não amamos na presença, e sim na falta e blá-blá-blá... Porém... Ela disse que serei um escritor famoso. Então paguei mais uma dúzia de cervejas. Todos ficamos bêbados, cantamos abraçados e desafinados e fomos felizes por algumas horas.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 24 de julho de 2019

A dona do pó


A garota tirou copos e garrafas de uma mesa próxima. Uns sujeitos evaporaram fazia pouco.
- Não tem mais ninguém, né? 
- Não. Não sou ninguém.
Ela riu. Dei um longo gole e pedi outra cerveja. Minha alegria é intensa mas de tiro torto. É de quem está à margem dos grandes debates, em ciências ou artes ou política. Agarro-me ao instante, à presença da garota e seu sorriso, que não deve nada aos propagandeados congressos e simpósios e assembleias.
No meu canto, vibrando com a energia da garota, observo um sujeito que acabou de chegar, porte médio, cabelo e jeito de se mover meio estranhos. Me coço, o cara parece um suicida ou homicida ou pode estar decidido a matar a ex-mulher. Tento rosnar, como um pit bull enorme bem treinado, mas a razão cola a mão nos meus lábios e me convence de que não devo fazer nada. Ergo o copo e um clarão filosófico - que acolhe o verdadeiro sábio - me conduz ao centro do problema: como fazer para endireitar os indivíduos, já que trocar governantes não tem ajudado.
Enquanto fuço nessa porra de problema, minhocas engordam e ficam lerdas e mais samocas, como a pele e bunda e pernas e barriga e cérebro de certos homens e mulheres. Me preocupar com o indivíduo e a sociedade talvez ajude a esquecer as merdas que fiz. Mesmo que o monstrengo aqui se esconda atrás do velho clichê de que fez o que fez por amor.
Muitas e muitas vezes acordo no instante em que levaria tiros ou facadas de sujeitos desdentados e mal-encarados que são classificados como plebe. Eles dizem que estão cansados de acarinhar minhas cagadas, como o fato de ter trepado com uma garota que consideram sua. Otários, são muito valentões e pouco espertos, pois ainda acreditam que alguém seja de alguém. Nego e ganho tempo, nunca direi que ninguém é de ninguém. Porém, sempre perco o jogo. Os filhos da puta me deixam vivo e com sentimento de culpa. E sempre fazem questão de lembrar que minhas portas e janelas estão escancaradas. Basta uma turbulência do sono, numa noite qualquer, pra eles voltarem.
Desconfio que minha vida está sem propósito, como se fosse pacote de fraldas empilhado na prateleira da farmácia. Sei, sei, cus funcionam como válvulas de escape da civilização. A importância das fraldas está justificada. Quanto à minha importância pra humanidade, aí já não sei. Mas não me venham falar de suicídio.
Mastigava essas profundidades requentadas quando o Beiço sentou, com olhos e sobrancelhas e gestos e barba por fazer preocupados. Se saiu com essa:
- Sonhei que a torneira da pia destilava cerveja. Não lembro se era pilsen, ou puro malte, ou chope, lembro que o colarinho, no copo, estava do meu jeito. Pesquisei o verbete "cerveja" num livro dos sonhos. Desdobrei seus números e joguei no Bicho durante três dias, quatro vezes ao dia. Gastei uns quinhentos reais. De novo, não deu nada.
- Não desista, meu amigo. A sorte não avisa quando chega.
Conheço o Beiço há uns vinte anos. Sempre aviso, "devagar com o pó, você já perdeu algumas mulheres".
Marés sobem e marés descem, mudam as estações e o Beiço sempre recai.
Nesses dias nublados ouvi várias previsões, mas nenhuma como a Dele. A velhinha da fruteira disse: "Vai chover, minhas juntas estão doendo". Seu Amadeo, velho bebum frequentador do bar do Posto do Ganso, asseverou: "Amanhã chove com certeza. Meu joelho dói". 
Beiço não parava de coçar o nariz.
- Para de fungar, cretino!
- Cara, vai chover.
- Sim, a velhinha da fruteira e o seu Amadeo disseram que amanhã chove.
- Não, vai chover hoje.
- Bem, todos as previsões dizem que chove amanhã. Vi isso na internet.
- Capaz, Cadelão. Vai chover hoje, meu pó melou!
- Putz, maluco, teu pó é ruim.
- Capaz, é da dona do pó.
- Jesus Cristo! Ela vai melar é a tua vida!
- Nada. O marido tá preso por tráfico de entorpecentes.
- Hum... Eu não sei o que quero da vida. Mas quanto a você, eu sei...
- O quê?
- Uma bala na cara.
Ele riu com aquele seu jeito triste. Então a noite bateu à porta. Num poste, do outro lado da rua, uma lâmpada se esforçou pra acender. E logo apagou. E piscou e piscou, como se fosse cadela ansiosa pra entrar no cio. Fiquei preocupado. Pensei em como será o funeral do meu amigo. Ou o meu.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 23 de julho de 2019

O damo do cachorrinho




1.
Certa manhã Damo acordou com febre puerperal. Desejou colocar a roupa feminina mais bonita, sua cinta-liga e desfilar para seu cachorrinho. Superego interveio: "Liga pro Doutor Biza!". Damo não se conteve e gritou: "Liberdade!". O problema é que sempre obedecia seu senhor moral. Telefonou para o Doutor. Assim que foi atendido, disparou: "Doutor, preciso me livrar de uns fantasmas". Silêncio do outro lado. "Sabe, Doutor, não posso confessar, mas tenho uns pesadelos, estou caindo num abismo e é sempre o Cadelão que aparece pra me salvar". Enquanto narrava suas aflições, do outro lado da linha uma voz repetia "Hum... Hum...". Assim que desligou, desceu sobre sua cabeça uma tempestade de culpa. "Aiaiai... O Biza vai contar pra todo mundo... Você não devia ter ligado, sua estúpida! Guarda a tua verdade... Oh, céus, que droga de vida!".
2.
My friends, não posso garantir que isso de fato aconteceu. Só sei que nossos tempos são de acelerar o coração. Mulher quer ser lésbica, lésbica quer ser mulher. Mulher quer ser homem, homem quer ser mulher. Creio que uma das maiores fontes de infelicidade das criaturas que habitam esse planeta é tentar atravessar o abismo que separa o que elas desejam ser e o que precisam mostrar para os outros. No velho clichê shakespeariano, "to be or not to be".
3.
Consulta sempre adiada. Porém, nos encontros pelos bares, Damo escutava atentamente o Doutor, como se fosse um paciente no consultório. E numa dessas o Doutor alertou sobre a necessidade de se alimentar bem, de esquecer a paranoia de que estava engordando.
- Venha pro meu consultório. Vamos ver por que você não consegue comer. E esse medo de engordar... Cuidado, todo mundo pode achar que você está com AIDS. Ou anorexia.
Apenas uma observação, irmãozinhos: os amigos temiam ser analisados pelo Biza porque Ele podia desvendar A VERDADE. Ou contar pra todo mundo o que o paciente tal tem. Quase sempre relacionado com traumas de infância e adolescência, tipo irmão mais novo bater uma punhetinha pro mais velho, erguer a saia das irmãs ou primas ou tias ou expiá-las durante o banho. O problema, e garanto-vos que sou esperto nisso, é você encasquetar que tem o problema tal, como diagnosticou o Doutor tal... Oh, céus, será que vocês não percebem a doideira que é uns fazerem a cabeça dos outros, cambada de ridículos?
4.
No bar, as coisas iam nesse ritmo. Doutor Biza dizia:
- Se você evitar os excessos, tudo pode virar comida.
Damo se soltava:
- Uiiii! Comida... Adoro!
Diante desse cenário, eu me perguntava: "A exibida quer chamar a atenção de quem?".
Doutor Biza continuava:
- Além de você abrir o olho pra anorexia, tem que parar com essa mania de limpeza.
Saquei. Damo enche meu saco por causa dos azulejos encardidos do banheiro. Puta merda, só falta se oferecer pra fazer uma faxina lá em casa. Jesus Cristo! Quando foi que eu me fodi?
5.
Ontem à noite o prédio do lado de minha casa respirava música de sofrência. Então eu não sabia se o melhor era estar bêbado ou estar morto. Pensava essas coisas enquanto arrancava os pentelhos do saco. Fui despertado pela buzina de um carro que estacionou por ali. Doutor Biza estava animado.
- Feche a braguilha. Bote os sapatos. Vamos sair. Hoje é por minha conta.
A primeira parada foi no bar Ponto e vírgula. Bela espelunca,  o dono um mão de vaca que só encontramos nas novelas russas. O cretino logo rosnou: "Só tenho uma, estou fechando". bastou Doutor Biza deixar à mostra umas notas de cem e dizer "hoje não vamos pendurar", que o esdrúxulo baixou a guarda. "Pensando bem, libero umas geladas".
Claro que Biza enganava o tempo. Nosso destino era um inferno. Isso, aquele lugar onde ocorrem minhas observações morais mais frutíferas. O incauto diria: "Lá ninguém mente sobre si mesmo". Pobrezinho, ele não sacou que lá a verdade foi banida. O inferno só tem lugar pra quem sabe enganar e fingir e... conquistar pela farsa. Os experientes sabem disso. Se você é rico, finge pobreza. Se você é fraco, finge força. Se você é covarde, finge ser temeroso. O inferno não aceita nenhuma verdade.
Quando estou no inferno me sinto bem. Ninguém vai me esfregar a verdade. A verdade é um adolescente proibido de frequentar o inferno.
Caralho, vocês sacaram a profundidade disso?
O problema é que o adolescente insiste... e, quando o porteiro dorme, ele entra. Uma putinha no inferno custa caro. Mas o doutor Biza estava com tudo - grana e Kannjin.
Eis que se aproxima a primeira serva. Acertou o alvo:
- Como você passou por mim e não me viu?
Olhei aquela jovem, seios perfeitos, toda perfumada, pernas e bunda demais.
- Oh, meu bem, sou um velho rico, porém broxa. Te vi, mas só posso proporcionar uma chupada.
- Hum... Um velho com língua dura... Pague uns drinques e vamos pra cama, hoje você vai botar o cacetinho pra funcionar.
Ah, meus amigos, ela sabia que eu não era rico nem broxa. Me queria, mas pelo personagem. Seus peitos eram caídos e sua boceta, larga.
6.
Assim que chegamos na casa, Doutor Biza deu linha pros olhos, que logo fisgaram uma garota. Foi só pedir uma cerveja e mamar um gole, e lá estava ele massageando a coluna da princesa. Mãos daqui e dali, questão de meia hora a putinha disse "Nossa, tô me sentindo bem melhor... Você solucionou meus problemas ".
Logo logo eles foram pro quarto, e garanto que o Doutor teve excelente desconto no programa. "Ele é o cara" - pensei.
Fiquei ali na sala esperando o pó do amor começar a surtir efeito e jogando conversa fora com a veterana.
- Nossa, você escreve histórias? Bah, minha vida dá um livro.
- Sim, Baby...
Pensei : "A vida de cada inseto desse planeta dá um livro - e pensei mais - mas aí teremos o velho problema: muitos livros pra poucos leitores".
Três da manhã, estávamos nessa de papo e mamadas no sofá quando surgiu um serzinho com aqueles olhos faiscando. Puta merda... o porteiro dormiu? Jesus Cristo, um adolescente invadiu a casa!
- Cadelão, você não para em pé. Vou te levar comigo.
- Não! O Doutor me deu kannjin, eu preciso foder!
- Não, não, essa puta decadente não te merece, Ela é feia! Você quer enfartar?
Não pude deixar de pensar: "Se essa biba raivosa se vestisse de mulher, não duvido que eu até comeria".
A puta acreditou, como toda mulher da noite, que foi atingida no coração por um míssil. E partiu pro ataque. Estavam se pegando pelos cabelos, quando o cafetão berrou detrás do balcão:
- Meninas, briga não! Aqui é casa de respeito!
Eis que irrompe do quarto Doutor Biza, de cuecas. Dá um esporro e dois tapas no Damo.
- Vai embora. Cadelão tá comigo.
Doutor estava indignado.
- Essa espelunca não ter porteiro? Como permite a entrada de um adolescente? Se esse monstrinho sair do armário, nunca mais teremos paz!

(B. B. Palermo)

sábado, 20 de julho de 2019

Meus porres e filmes roncando no sofá às três da manhã



De novo esqueci de levar o Dicão pra passear, o pobre anda com o intestino preso, mesmo se fartando com aquela ração importada. Ontem escolhi um filme louco, a minha cara, bebi todo o estoque e dormi pesado no sofá. Filmes de sexo e violência, como os de Tarantino, estão no meu ritmo, uns seres fracassados, decadentes, irmãos de lutas e tombos mas não desesperamos.
Em condições normais de sede e de culpas, não me interesso por filmes. Mas na bebedeira, corro pro Youtube e aí é a repetição do mesmo, volto aos velhos enredos. Em horas normais ouço música clássica e (ainda) não vi a Namo de cara feia, criticando meu gosto musical, tipo "nossa, como você suporta essas músicas horríveis?". Se um dia isso acontecer creio que a relação já era.
Se Namo insinua uma crítica a respeito dos excessos da noite passada, desconverso. "Você reparou na quantidade de buracos pelas ruas da cidade? E as rótulas, meu Deus, a gente nunca sabe qual o comportamento dos motoristas!".
Merda, esqueci de trocar o óleo do carro e pedir pro mecânico averiguar as pastilhas de freio. A suada mesada corre perigo. 
Namo quer ser vegana. Encontrem-me nas gôndolas do supermercado, me esgueirando por entre senhoras bem informadas por nutricionistas, à procura de brotos e grãos e cereais e nozes e frutas secas. Está fissurada pelas proteínas vegetais, quer se afastar das malditas carnes que entopem artérias e abrem as portas para o câncer.
Deus do céu, como é difícil garantir a vida a dois e o ócio indispensável à criação, a chopeira transbordando e não perder de vista o jogo do bicho e de sinuca e a proximidade de alguns amigos ordinários. Como o trânsito nas rodovias, eu preciso de áreas de escape, senão o sapato fica três números a menos no meu pé. 
E esses malditos copos sujos. De nada vale a ótima cerveja se os copos estão sujos. E Namo não quer estragar as unhas postiças, e quando lavo a louça irrompe uma guerra na pia, é enorme o risco de algum prato ou copo espatifar.
Meus livros manchados de cerveja e de vinho, os marcadores de página são recibos de jogos feitos ou bilhetes rasurados com números que sonhei e que pretendo apostar. Eis a síntese da minha odisseia, ou falta de sorte, que seja. Jesus, parece impossível alcançar a sonhada emancipação financeira sem fazer parte do mercado de trabalho.
Para que a dialética do casamento funcione alguém deve ser ludibriado de vez em quando. Deixo espalhadas sobre a mesa anotações dentro de livros e dezenas de folhas rasuradas, que chamo de inspirações para poemas e histórias. Proibi Namo de botar as mãos nessas preciosidades, para não invadir a privacidade nem espantar a diva criação.
Enquanto assisto o jogo de futebol pela TV e remoo essas coisas, Namo faz seu tricô e me observa serenamente, com olhos afetuosos. Do nada, um pensamento me invade e entristece, coisas de quem anda se informando sobre as sandices do mundo: muitas tartarugas que se alimentam do plástico espalhado pelos oceanos e então elas morrem antes de completarem cinquenta anos.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Outra cama - Bukowski


outra cama
outra mulher
mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha
outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.
todos à procura.
a busca eterna.
você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…
após ela sair você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.
quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.
você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é meio-dia.
— outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.
você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.
você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.
(Tradução: Pedro Gonzaga)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Esse é o teu momento



Cada vez mais você se convence de que essas conversas nas paradas de ônibus, nas lancherias, nos bancos de praça e de consultórios e de escritórios, você acredita que elas farão pouca diferença para os rumos do mundo. Também as notícias que sugamos das redes sociais e outras coisas mais que estonteiam nossa alma e ouvidos, no máximo contribuirão para nosso estresse e excessos na comida e bebida e então tome-lhe intestino preso ou flatulência ou enxaqueca.
Gurus, seja de que área for, vomitam suas teses aleatórias, que insistem que são verdade, e o fazem para angariar mais seguidores e engordar sua conta bancária.
O AGORA não passa de um momento qualquer no interior de um caldeirão fervente e borbulhante, com vários ingredientes em conflito, às vezes em fogo alto, às vezes em fogo baixo. Mas você vive ESSE momento. Aproveite-o, então.
Sim, você pode saltar da ponte e rodopiar e ser recolhido num saco com os ossos quebrados, e ser transportado até a perícia, numa frieza e objetividade, como se fosse um saco de adubo para plantas, depois aguardar no necrotério, devidamente numerado e com atestado de óbito para então ser despachado pro cemitério e logo ser esquecido.
A fervura continua, indiferente.
Você pode ir à Marte, armar a barraca, cultivar abobrinhas, e nada mudará, serão apenas notícias passageiras. Porém, esse é o TEU momento. Aproveite.
Não vale à pena sofrer se não chamares atenção. Há tantos egos que se posicionam como se fossem o centro, porém logo tudo vira página de jornal que vai acender o fogo da lareira ou receber o cocô de cães e gatos da família.
Vivamos esse aleatório, embora seja um instante no interior de um processo que se desdobra há bilhões de anos.
Apesar de tudo, esse é o TEU momento. Então, aproveite. Faça algo que dê prazer, como era o BRINCAR, na infância.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Acorda, meu amiguinho, acorda



Na sinuca do bar, quando nos viu chegar, o Maneta se alegrou. Logo buscou um copo. Disse que passou o final de semana vomitando e o Dr. Biza olhou para o seu ventre inchado de tanta cerveja e imediatamente emitiu o diagnóstico: problemas com o duodeno.
O dono do bar, carrancudo, informou que fecharia daí a pouco, teria um exame logo de manhã cedo, e só tinha um litrão de polar mas quando viu punhados de notas de cem na carteira do Dr. houve de súbito o milagre da multiplicação dos litrões.
Estava conosco o Boni, bom garoto, de opiniões bem comportadas sobre qualquer assunto. Me alegrei quando ele segredou que, se eu criar um perfil noTinder, vai chover garotas. Confesso que tenho inveja desses jovens amigos, de ereções fáceis e duradouras mandando ver nas putinhas.
Óbvio. Vivo dilemas da meia idade. Ou bebo baldes de cerveja e não trepo, ou abro mão dos baldes e mando ver no sexo. Admito. Os tempos são outros. Já não me considero, já não pergunto pra garota, maravilhada pela minha performance, "que que achou, Baby?".
Uma e meia da manhã, disse aos amigos que precisava descansar, pra cedinho me concentrar num conto que estava pela metade e precisava inscrever para um concurso. Dr. Biza fez um emocionado discurso, "amigos não deixam amigos na mão, etc.". Então fomos pras gurias.
Na casa havia outro amigo, de vinte e poucos anos, hábil e nas carreiras. Vejam só, meus brothers, uma loirinha escrota, que não deve ter mais de vinte e três anos, riu o tempo todo de minha cara, me humilhou diante dos olhares curiosos dos presentes, só porque estava bêbado e cansado e meu mimoso não despertava.
Ela sabe quem eu sou? Sabe com quem está lidando? Tá bem, tá bem, um chinelo, porém discreto, sem nem conseguir acompanhá-la numa dança de músicas bregas. Tá bem, tá bem, vou ficar quieto no meu canto, mamando uma Heineken que o gigolô cobra trinta reais, deixando a loira escrota inventar histórias sobre minha respeitável pessoa.
Foi tanta a humilhação de parte da loira, que eu fui diminuindo de tamanho, como um boneco, menor que um anão. Ela ria e falava que se lembrava de mim, me reconheceu numa festa, e que eu estava rodeado de umas bichas-loucas, imagina, sou hetero convicto, eu negava e dizia que não conhecia tal lugar, e ela contava pra todo mundo que o cara que ela viu tinha a minha cara, os mesmos olhos, e os mesmos papos. E então, gente, eu era achincalhado e silenciava e me encolhia e já não era um anão, eu era um boneco de uns trinta centímetros que a loira manuseava e debochava e virava de ponta cabeça (ela me sacudia e dizia "quero ver o pingolim") e me exibia  numa bandeja, como se eu fosse a cabeça do profeta João Batista. Vejam bem, meus amigos, todo o meu glorioso passado, sólido pensador debatendo com meus brothers alunos sobre "o que é o amor", sobre "o que é a felicidade". Agora reduzido a um lixo.
Eu me sentia um João de Deus, o cara que fazia milagres, deixava as pessoas de alma leve. Coitado, agora anda amparado por uma bengala ou uma maca, um saco de merda escoltado pelos caras da Federal. Seu prêmio de consolação foi permanecer manchete nos jornais pelo menos por um mês. Pra mim não sobrou nada.
A loira vociferava "me rasga, me bate, me vira do avesso, me come agora!", e eu olhava pro meio das minhas pernas e implorava "acorda, meu amiguinho, acorda". Eu, um pobre diabo, humilhado até as entranhas de minha dignidade por uma loirinha bonitinha mas ordinária.
Que merda, a que ponto cheguei, aqui respirando o ar mijado desse puteiro, enquanto a cidade com seus valores superiores descansa e revigora pra logo de manhã cedo colocar em prática sua missão mais sublime, seguir no rumo certo do progresso do país.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 9 de julho de 2019

Se não existissem as mulheres, o dinheiro serviria pra quê?



Dia desses bebia uma cerveja redondinha, acompanhado pelo Beiço, e eis que um conhecido estacionou ali por perto seu carrão importado. Fez de conta que não nos viu. Fingimos que não o vimos.
O cara sempre foi competente em fazer carreira no magistério e sindicatos. Pessoa bem comportada, bom pai e amigo, figura esclarecida, na concepção dos filósofos modernos.
Acima de tudo, um "socialista dinheirista", expressão que o Beiço sempre repete.
- Cadelão, os caras juntam a maior quantidade possível de grana, e muitos acabam gastando com filhos paranóicos ou drogados, que foram criados debaixo de suas asas. Não consigo compreender essa obsessão por acumular, imagine o tempo dedicado a isso.
- Quem sabe esteja certo. Pra ele, é melhor investir em imóveis do que em lazer, arte, literatura e outros prazeres.
- Que nada, está faltando alma, meu amigo, o declínio do planeta está acelerado.
- Eu gostaria de ter grana, só pelo prazer em gastar. Se fosse rico, se estivesse rodeado de luxo, pegaria as putas mais lindas da parada e escreveria porra nenhuma.
- Hehehe... Você desocupado e duro já anda escrevendo nada.
O cretino ergueu o copo, num brinde.
- Aos dinheiristas!
- Diz aí, meu brother, se não existissem as mulheres, dinheiro serviria pra quê?
- Sabe o que eu ouvi de uma garota esses dias? "Nunca tive dinheiro, até que baixei as calcinhas".
- Hehehe... Lembrei de uma frase da atriz Mae West: "Um centavo economizado é uma garota perdida".
- Dinheiro, dinheiro... E tempos difíceis. Confesso que estou com medo, tenho me preocupado com meus irmãos de passagem por esse planetinha.
- Fala sério, Cadelão.
- Até pensei ser voluntário num projeto que apoie os velhinhos aposentados nos abrigos. Ou contar histórias num hospital de câncer infantil.
- Puta que pariu. Toma um porre que amanhã você não se lembra dessa loucura.
- Você tem razão. Meus planos para o futuro não duram uma semana.
- Hehehe... Que eu saiba, persistência você teve foi nunca.
- Mas amanhã poderá nascer um cara novo.
- Jesus, desconfio que você está lendo auto-ajuda! Volta, maluco, seja o que tu és!
- Atitude, meu caro, um dia eu mudo de atitude.
- To sabendo.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Carta para Boccaccio



Estou inquieto e solitário, parecendo as roupas expostas como Cristo na cruz, nos cestões das lojas quase vazias. Os olhos vermelhos imploram atenção enquanto o povo passa, indiferente a tudo. Esse sentimento é momentâneo, outras imagens e cenas tomam seu lugar. Comi a magrela que tem uma loja de lingeries e perfumes importados ali, na outra esquina. Duas décadas atrás eu era um jovenzinho disputado pelas garotas. Xotas havia até demais. Eu esnobava. Hoje a empresária finge, ou nem sabe que eu existo.
Tudo é parte do processo.
Meu amigo, sei que o entedio com esses comentários, devia apenas descrever os fatos do jeito como prometi.Tomara que a decadência não me tenha como alvo, ela e sua pressa.
Vida que segue. Logo que cheguei no bar e sugava a primeira metade de uma long neck tentando esquecer a garota da loja de perfumes e a ressaca crônica, apareceu uma madame com seu cachorrinho no colo, com cara de guaxinim, um Spitz Alemão anão. O pet latiu, madame xingou e, impressionante, suas vozes eram semelhantes. Tudo se encaixava.
Coisas estranhas. Velhos resmungando no espaço vazio do bar. Deve ser o mesmo papo que repetem pros médicos nos consultórios e pras enfermeiras e cuidadoras e caixas de supermercado e atendentes de farmácias. Sim, século XXI, longevidade é o que se vê. Caixas e caixas de remédio + qualidade de vida, principalmente nos bairros de classe média e alta da cidade. Preciso espiar o que rola nas periferias. Creio que serão outras as descrições.
Às vezes me culpo por parecer preconceituoso com os velhos. Não sei por que me deixam ansioso. Só pode ser o desperdício de tempo viverem quase cem anos.
Temos todo tipo de velhos: os mansos, os agressivos, os saudosistas, os desmemoriados. Contam as horas para que chegue a noite e finalmente dormir. Amanhã tudo se repete. Tédio. Em sua maioria, parecem autômatos. Se chegar vivo a uma certa idade, vou dar um jeito pra que alguém me faça uma eutanásia, sem culpas a esse camarada, é claro.
Aqui no bar, observo a tia que brinca com o bebê de um casal de jovens, seus amigos.
- Quem vai fazer um aninho? Quem? Quem? Parabéns a você!...
Ninguém liga pra ela, deve ter bebido meia dúzia de garrafas. Ainda é jovem, mas a necessidade de repetir aqueles papos que todos estão por aqui a tornam uma velha chata. Já disse, sou preconceituoso.
Lembranças aleatórias. Minha última foda consumou-se rápida, rápida, não durou mais de três minutos e decepcionou as estatísticas, passou longe de trezentas estocadas e o meu coração saiu pela boca. Era como uma canção adolescente que não suporto ouvir agora. Melosa demais, entorpecedora de rebanhos, como diria Nietzsche. Pena você não ter vivido na época Dele. O cara saiu-se bem demais.
Merda. Já me desgarrei do rebanho? Talvez. Sou agora uma ovelha bebum e mal-humorada.
Outro cara que admiro é o Beethoven. Viver depois dele, desfrutar da Quinta Sinfonia em Dó Menor, é estar no lucro. Sua criação é potente, como uma pimenta que encontrei dia desses no supermercado. Chama-se Naga Morich, a pimenta.
Pra finalizar, estou relendo anotações que fiz por aí, nos bares. Leio e, pra maioria delas, faço um X com caneta tinta vermelha e escrevo HORRÍVEL. Foi o jeito que criei pra ter mais disciplina e reacender o amor próprio.
Inté.

(B. B. Palermo)

domingo, 30 de junho de 2019

Abriu um brechó no bairro



Carol estava entusiasmada com as dicas de uma amiga. Abriu um Brechó no bairro, com muitas peças incríveis.
Chegou a primavera, hora de repensar o visual.
Fisicamente generosa, peitos e coxas o bunda, loira que adora foder e ser o centro das atenções. Precisa de olhares pro seu corpo e ouvidos pro seu papo. Quando bebe, e olha que Ela bebe, não vacila e aceita cheirar o pó dos carinhas. De vez em quando se empolga e desenvolve textões meio poéticos ou meio reflexivos no Facebook, parecendo garota que sabe o que quer.
Poderia não ser uma maria vai com as outras. Não suporto o consumo exagerado, e isso tem a ver com minha pouca vontade de trabalhar. Ora ora, que se fodam, meia dúzia de farrapos e não sinto falta de muito mais.
Meu, sabia que estão surgindo muitos brechós por aí?
Mesmo?
Uma galera que pratica o consumo consciente.
Hum... Acho que consumo consciente é consumir pouco.
Ah, é bom variar, se sentir admirada.
Sabe o filósofo americano, Thoureau?  Já na metade do século XIX ele era um crítico do que chamava de consumismo viciante e vicioso.
Esses brechós têm roupas de segunda mão, mais baratas e com história.
É?
Lá você pode encontrar verdadeiros tesouros.
Deus do céu. Tenho dois tesouros de camisas, um tesouro de calça e três tesouros de bermudas. Ah, um tesouro de sapatos esfarrapados e um tesouro de sapatênis.
 A Dirce me falou que tem muitas peças da década de 1980. Já pensou? Posso partir pra um look mais chamativo.
Sei, sei.
Devia ter notado as botas horríveis, o casaco de pele de coelho que comprou numa viagem pra fronteira com o Uruguai. Ela tem um belo corpo, é jovem, o nariz até que está em harmonia com o restante do rosto, belas pernas, o quadril ainda está nos trinques. Mas pra que tantos brincos e cintos e bolsas? Ela podia se livrar de tanto acessório.
Acho que você não precisa exagerar na maneira de vestir. Vamos curtir outras coisas.
Eu sou assim. E o jeito como me visto é a minha cara. Palerma,vive enchendo o saco! Você é um babaca fino da bossa.
Sei, sei.
Se faz de escritor. Vive de fazer tipo. Fica com essa cara de sonso.
Verdade.
Que foi? Alguém comeu tua língua?
Sei lá.
O que foi?
Pra que repetir o de sempre?
Saco. Não escreve nada.
Verdade.
Não sabe beijar.
Mesmo?
Pra lá e pra cá, como um animal enjaulado. Nunca vai perceber o quanto é superficial. “Eu não tenho regras, eu não tenho destino, vivo entre profanos e anjos decaídos...”.
Essa droga de inverno que nunca acaba.
Pra lá e pra cá, aquela bunda, deve estar doida pra variar na fodeção.
O inverno logo se vai, meu bem. “Mudaram as estações... nada mudou”.
O quê? Fala mais alto.
Nada. Tudo o que começa um dia termina.
Se vai falar pra dentro é melhor ficar calado.
Carol, qualquer coisa que eu disser vai te deixar ainda com mais raiva.

Vem comigo no show de umas bandas legais na taberna do Maluco Beleza?
Você tá cansada de saber que não tenho saco pra aquele rock pauleira e aqueles carinhas.
Você não suporta o som que eu gosto nem curte meus amigos.
Bonito, teus amigos nuns carrões de duzentos mil reais, roupas de grife e ouvindo umas merdas de som.
Nessas festas aproveito pra tirar dezenas de fotos.
Por que você não coloca o dedo na xoxota? massageia o clitóris, isso dá muito mais prazer.
No meio da festa?
Claro, meu anjo. Esquece essa paranoia de pau de selfie. Isso é falta de orgasmo.
O barril de pólvora apanhou sua bolsa de brechó e caiu fora, sem antes, claro,  quase arrebentar a porta.
Manda um beijo sabor agrotóxico pros teus amigos.
Creio ter ouvido um rosnado, ao longe:
Fique aí enchendo a cara e escrevendo as merdas de sempre.
Hora de relaxar, beber outra dose e partir pra um plano B. Adoro essa doida mas sempre me esforço pra deixá-la furiosa e decidida a partir, mesmo sabendo que poderá passar a noite com outro cara. Não a quero totalmente comigo, nada de exclusividade, é como se um dia tivesse uma carta na manga pra poder saltar fora.

Alô? Carine?
Cadelão! Quanto tempo. Tudo bem?
Tudo. Melhor agora.
E as novidades?
O mesmo de sempre. Batalhando numas histórias.
Sinto falta das histórias que você lia pra mim.
Sozinha?
Estou sozinha. Vem pra cá.
Ok. Vou pegar umas cervejas e passo aí.

Cinco da manhã, sinto uma coisa estranha, um desejo de voltar pra casa. Deve ser a necessidade de experimentar uma traição.
Ela dorme com a roupa que saiu. Nem as botas ridículas despiu. Bêbado, escorrego no tapete da sala, brigo com um bonsai que está próximo da janela e chuto o urso de pelúcia que dorme no sofá. Ele se encolhe, esfrega os olhos e me observa, apavorado.
Você é um ridículo.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...