quarta-feira, 19 de abril de 2017

A empregada do Dr. Heitor - Rubem Braga

Era noitinha em Vila Isabel... As famílias jantavam. Os que ainda não haviam jantado chegavam nos ônibus e nos bondes. Chegavam com aquela cara típica de quem vem da cidade. Os homens que voltam do trabalho da cidade. As mulheres que voltam das compras na cidade. Caras de bondes, caras de ônibus. As mulheres trazem as bolsas, os homens trazem os vespertinos. Cada um entrará em sua casa. Se o homem tiver um cachorro, o cachorro o receberá no portãozinho, batendo o rabo. Se o homem tiver filhos, os filhos o receberão batendo palmas. Ele dará um beijinho mole na testa da mulher. A mulher mandará a empregada pôr a janta, e perguntará se ele quer tomar banho. Se houver rádio, o rádio será ligado. O rádio tocará um fox. Ouvindo o fox, o homem pensará na prestação do rádio, a mulher pensará em outra besteira idêntica. O homem dirá à empregada para dar comida às crianças. A mulher dirá que as crianças já comeram. A empregada servirá a mesa. Depois lavará os pratos. Depois irá para o portão. O homem conversará com mulher dizendo “ mas, minha filha, eu não tive tempo...". A mulher ficará um pouco aborrecida e como nenhum dos dois terá ânimo para discutir, ela dirá: “mas, meu bem, você nunca tem tempo...". Então o homem, para concordar com alguma coisa, concordará com o seguinte: a empregada atual é melhor que a outra. A outra era muito malcriada. Muito. Era demais. Essa agora é boazinha. Depois, sem propósito nenhum, o homem dará um suspiro. A mulher olhará o relógio. O homem perguntará que horas são. A mulher olhará outra vez, porque não tinha reparado.
- Oito e quinze...

No relógio da sala de jantar do vizinho serão quase oito e vinte. Em compensação a família é maior. O velho estará perguntando ao filho se o chefe da repartição já está bom. Na véspera o filho dissera ao pai que o chefe da repartição estava doente. O velho é aposentado. O filho está na mesma repartição onde ele esteve. A filha está em outra repartição. Eles têm um amigo que é importante na Prefeitura. Todos os três gostam de conversar a respeito da repartição. Talvez mesmo não gostem de conversar a esse respeito. Mas conversam. A casa da família é uma repartição. O velho está aposentado, não assina mais o ponto. A moça saiu com o namorado que é quase noivo e que a levará ao Bouleward, à Praça, ao cinema. Eles vão acompanhados da menorzinha. A moça na repartição ganha 450, mas só recebe 410 miliquinhentos, e se julga independente. A sua tia costuma dizer aos conhecidos: ela tem um bom emprego. O emprego é tão bom que ela às vezes até trabalha. Ela um dia se casará e será muito infeliz. Perderá o emprego por causa de uma injustiça e negócios de política, quando mudar o prefeito e o amigo de seu pai for aposentado. Depois do primeiro filho ficará doente e morrerá. A criança também morrerá. Também, coitadinha, viver sem mãe não vale a pena. A tia chorará muito e comentará: coitada, tão moça, tão boa... E continuará vivendo. Aliás a vida é muito triste. Essa opinião é defendida, entre outras pessoas, pela cozinheira da casa, que já está velha e nunca vai ao portão porque não tem nada que fazer no portão. É uma mulata desdentada e triste, que há quinze anos responde à mesma dona-de-casa: “eu já vou, dona Maria". E há quinze anos vai fazer o que dona Maria manda. E que nunca teve uma ideia interessante, por exemplo matar dona Maria, incendiar a casa. Está tão cansada de viver que nem sequer mais quebra os pratos. Um dia ficará mais doente. Com muito trabalho, e por ser um homem de bom coração, o seu patrão arranjará para ela um leito na Santa Casa, onde ela falecerá. Seu corpo será aproveitado no Instituto Anatômico, mais escuro e mais feio pelo formol.

As luzes estão acesas em todas as casas daquela rua quieta de Vila Isabel. Um homem dobra a esquina: vem do Boulevard. Outro homem dobra a esquina: vai ao Boulevard. Algumas empregadas amam. Algumas famílias vão ao cinema.

De longe vem um rumor, um canto. Vem chegando. Toda gente quer ver. São quinze, vinte moleques. Devem ser jornaleiros, talvez engraxates, talvez moleques simples. Nenhum tem mais de quinze anos. É uma garotada suja. Todos andam e cantam um samba, batendo palmas para a cadência. Passam assim, cantando alto, uns rindo, outros muito sérios, todas se divertindo extraordinariamente. O coro termina, e uma voz de criança canta dois versos que outra voz completa. E o coro recomeça. Eles vão andando depressa como se marchassem para a guerra. O batido das palmas dobra a esquina. Ide, garotos de Vila Isabel. Ide batendo as mãos, marchando, cantando. Ide, filhos do samba, ide cantando para a vida que vos separará e vos humilhará um a um pelas esquinas do mundo.

O menino, filho do Dr. Heitor, ficou com inveja, olhando aqueles meninos sujos que cantavam e iam livres e juntos pela rua. A empregada do Dr. Heitor disse que aqueles eram os moleques, e que estava na hora de dormir. A empregada do Dr. Heitor é de cor parda e namora um garboso militar que uma noite não virá ao portão e depois nunca mais aparecerá, deixando a empregada do Dr. Heitor à sua espera e à espera de alguma coisa. De alguma coisa que será um molequinho vivo que cantará samba na rua, marchando, batendo palmas, desentoando com ardor.

Rubem Braga (Fevereiro, 1935)

terça-feira, 18 de abril de 2017

Mudanças no galinheiro, mudam as coisas por inteiro - Sylvia Orthof


O Sol estava resfriado e tinha tomado uma aspirina. Mesmo assim, o nariz continuava a pingar, muito roxo-rosado, que é a cor do nariz do Sol, quando ele está resfriado.
Como o Sol estava muito chateado, sentindo calafrios, que são uns arrepios que sacodem a gente quando a febre é alta, pegou no telefone e telefonou para a Lua.
A Lua ouviu o telefone tocar, mas, como estava ocupada, chamou o Dragão, que é o cachorrinho dela.
O Dragão atendeu assim:
- Alô! Casa de dona Lua Nova!
O Sol, muito rouco, disse que precisava falar com ela, mas o Dragão respondeu que a dona Lua Nova estava ocupada e não podia atender.
O Sol ficou danado da vida, teve mais vinte e oito arrepios, sua febre aumentou até milhões de graus e gritou, quase sem voz:
- Anda logo, dona Lua Nova tem quem me atender!!!
O Dragão largou o telefone enganchado no dedo de um astronauta que ia passando e foi chamar dona Lua Nova.
Ele, o Dragão, era um tipo acostumado a obedecer a qualquer pessoa que falasse mais alto, muito nervoso, cuspindo um fogo bem fraquinho pelo nariz, tal como dizem que os dragões fazem. Era só dizer qualquer coisa, ele fazia, sem perguntar.
Como o Dragão tinha ouvido dizer que dragão soltava foguinho pelo nariz, ele também soltava, bem devagarzinho...
Não é que gostasse, achava até que não era muito agradável soltar fogo e puxar fumaça pro pulmão, mas fazia.
Dona Lua Nova foi atender, furiosa:
-Alô!!!
- Quem fala?
- É dona Lua Nova, seu Sol idiota! Manda chamar e depois fica perguntando quem é?
- É que estou rouco e não escuto direito! - respondeu o Sol. Dona Lua ficou ainda mais furiosa com a resposta e falou:
- Diga logo qual é a pressa do assunto, estou ocupada!
- Fazendo o quê? - perguntou o Sol.
- Lendo o jornal no banheiro e fazendo o que não é da sua conta!
- É que eu estou com gripe, muito doente, estou com febre, muito alta, tomei aspirina e não adiantou. Deitei, me cobri, não adiantou. Então estou avisando que hoje não vou poder trabalhar, talvez a senhora possa dar um jeito.
- Quer dizer que hoje não vai ter dia?
- É! - espirrou o Sol. - Atchim!
- Quer dizer que o pessoal da Terra vai ter duas noites seguidas, sem um dia no meio?
- Atchim! - respondeu o Sol.
O espirro foi tão forte, que desligou o telefone.
Dona Lua Nova ficou nervosíssima. [...]
- Jeremias!
Esqueci de dizer que o Dragão se chamava Severino, mas a Lua, só de implicância, mudou o nome dele.
            O Dragão nem reclamou, porque aceitava as coisas com muita mansidão.
            - Senhora? - respondeu Severino, que era dragão e atendia pelo nome de Jeremias.
            - Apronta meu café, vou ter que sair novamente. O Sol está gripado, não pode trabalhar hoje. [...]
O Dragão trouxe pão, manteiga, geléia de jabuticaba, ovos estrelados e leite. A Lua comeu tudo e virou Lua Cheia, toda redonda. [...]
Quando a Lua Cheia apareceu novamente no céu, de dia, foi um espanto!
O galo ia cantar, olhou pra cima, não viu o Sol e ficou de boca aberta, sem entender onde o dia tinha ido parar.
            Como não havia Sol, o galo ficou chateadíssimo e começou a implicar com a galinha:
            - O galinheiro está uma desordem, você é péssima dona-de-casa, não cuida direito dos pintinhos, etc, etc, etc e tal.
            A galinha reparou que o Sol não estava no céu e que a Lua tinha voltado.
            Como o Sol é patrão do galo e galo tem mania de mandar em galinha, a galinha pensou, pensou, pensou e concluiu:
            - Se o galo não pode cantar porque o Sol sumiu do céu, é porque o galo não manda coisa alguma, porque, se mandasse, cantava. O galo implica comigo porque sou fraca, fraca.
Sou fraca, mas se eu resolver mudar, eu mudo!
A galinha subiu no poleiro, tomou coragem e falou:
- Se a casa está em desordem, a culpa é minha, mas também é do galo. Afinal, a casa é nossa. Ele que ajude... e se os pintinhos estão malcuidados é porque meu marido só faz cantar de galo, esquece de conversar com os filhos, esquece de ser amigo da gente.
            Aí, ela ficou tão nervosa, tão nervosa, que abriu a boca
e cantou:
            - Cocoricó!
            Quando a galinha cantou, o Dragão descobriu que tinha chegado a hora dos fracos...
            Pegou um pára-quedas e desceu lá de cima, gritando:
            - Meu nome não é Jeremias, meu nome é Severino!
Aí, a Lua pensou:
- Se o Sol está doente, por que será que eu tenho que trabalhar, sem receber um pagamento extra?
            A Lua foi pedir trezentos e cinqüenta e oito reais pro Sol, como pagamento por trabalhar fora do horário.
O Sol, quando ouviu falar em pagamento, ficou logo bom. Mais um dia de gripe seria muito caro.
O Dragão começou a exigir respeito e voltou a ser chamado pelo nome verdadeiro: Severino.
            Deixou também de fazer o que não gostava, passando a não soltar mais fogo pelo nariz.
            Agora, o mais importante mesmo foi que a galinha aprendeu a cantar.
            Afinal... as mudanças no galinheiro, mudaram as coisas por inteiro!

terça-feira, 11 de abril de 2017

Intertextualidade


Para entender o que é o conceito de "intertextualidade", um exemplo divertido. O jogo do "não confunda": Não confunda "bife à milanesa" com "bife ali na mesa", Não confunda "conhaque de alcatrão" com "catraca de canhão", Não confunda "força da opinião pública" com "opinião da força pública". Como se vê, é possível elaborar um texto novo a partir de um texto já existente. É assim que os textos "conversam" entre si. É comum encontrar ecos ou referências de um texto em outro. A essa relação se dá o nome de intertextualidade. 
Há vários exemplos de intertextualidade na literatura. Veja, a seguir, como Ricardo Azevedo brinca com o famoso poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.

Quadrilha - Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo 
que amava Maria que amava Joaquim que 
amava Lili que não amava ninguém. 
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o 
convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para 
tia, Joaquim suicidou-se e 
Lili casou-se com J. Pinto Fernandes que não 
tinha entrado na história.

Quadrilha da sujeira - Ricardo Azevedo

João joga um palitinho de sorvete na 
rua de Teresa que joga uma latinha de 
refrigerante na rua de Raimundo que 
joga um saquinho plástico na rua de Joaquim que 
joga uma garrafinha velha na rua de Lili. 
Lili joga um pedacinho de isopor na 
rua de João que joga uma embalagenzinha de 
não sei o quê na rua de Teresa que 
joga um lencinho de papel na rua de Raimundo 
que joga uma tampinha de refrigerante 
na rua de Joaquim que joga um papelzinho 
de bala na rua de J.Pinto Fernandes 
que ainda nem tinha entrado na história. 
Do site  https://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/intertextualidade-textos-conversam-entre-si.htm

sábado, 8 de abril de 2017

Eu cá, detesto putos!


 Que não haja dúvidas, detesto putos!

   Detesto-os porque são mais novos do que eu. E não posso com isso!

   Além do mais, há demasiados putos! E fazem muito barulho a divertir-se!

   Quando pedem que lhes conte uma história… …acreditam em tudo o que digo!

   Aprendem depressa coisas incrivelmente difíceis.

   Ainda por cima, têm tempo para não fazer nada… …a não ser palermices.

   Mas quando lhes dou umas palmadas, eles choram e eu fico muito triste.

   E dormem demasiado bem. Ou então, têm medos ridículos.

   Também os detesto porque quase nunca estão doentes. Mas quando ficam doentes a sério, tornam-se o centro do mundo.

   Comigo, não é assim!

   Detesto os putos; veem coisas que eu já não vejo!

   Detesto especialmente aqueles que mamam…

   e aqueles que se tornam como as mães cedo demais.

   Além de tudo isto, os putos gostam muito dos animais.

   E quando gostam muito uns dos outros? Então aí, adeus discrição!

   Detesto os putos porque não os consigo esquecer…

   Mas quando vemos um, esquecemo-nos do que é velho. E não suporto isso!

   Quando se põem a cantar em conjunto, é tão bonito que até choro. E detesto parecer-me com um puto que chora.

   Como detesto a franqueza deles!

   E, como se não chegasse, segundo dizem, eles desenham melhor do que eu.

   Conclusão: detesto os putos… porque mesmo se lhes digo que os detesto, eles gostam ainda mais de mim!
Pef 
Moi, j’ai horreur des gosses! 
Paris, Albin Michel Jeunesse, 1998 
(Tradução e adaptação)

Do blog http://eixodoleitorcrateus.blogspot.com.br/

As velhinhas da Rue Hamelin - Rubem Braga


 Paris, setembro – Rue Hamelin, onde morreu Proust. Ali pertinho é a rua Lauriston, onde morreram muitas outras pessoas menos conhecidas: ali era a casa das torturas da Gestapo. Mas na rue Hamelin há coisas imortais: suas velhinhas não morrem nunca. Há aquelas duas que vão todo dia ao mesmo bistrô; uma corpulenta, sempre de chapéu, que lê o Fígaro e reclama da qualidade do vinho, mas reclama com uma dignidade que se ajusta bem aos seus 70 anos e muitos anos; reclama e bebe. Mora um pouco para abaixo de minha casa, e eu gostaria de imaginar que mora na casa em que morreu Proust; mas não.
          Atravessa a avenida Kleber com um passo lento no seu vestido negro sempre impecável; como todas essas outras digníssimas velhas usa um vestido que se fecha no pescoço em uma espécie de gola alta, onde há rendas e talvez elástico, talvez barbatana, uma gola que mantém a cabeça ereta através dos séculos, capaz de ver de cima, sem se curvar, as pequenezas do mundo presente. Atravessa a avenida sem olhar para os lados, como se todos os choferes de Paris tivessem o dever de respeitá-la; talvez ao se aproximarem de sua pessoa esses carros motorizados se transformem secretamente em coches e diligências, para fazer ambiente para a sua travessia.
          A outra velhinha tem o ar triste – e come muito. Não creio que dure muito; mas é verdade que há trinta anos atrás ela poderia dar a mesma impressão. É infinitamente velha, e apesar da gola apertada anda devagarinho a olhar disfarçadamente para o chão, como se temesse tropeçar e cair dentro de alguma sepultura. Sua própria velhice já deve ser uma coisa muito velha; ela deve ter perdido algum neto muito querido na guerra franco-prussiana e desde então tem esse ar triste.
          Há ainda uma velha pobre, mas também vestida com a maior dignidade. Outro dia cheguei à janela, atraído por alguns sons feios e tristes que pareciam querer se encaminhar no sentido de uma certa melodia: era essa velha que cantava. Cantava no meio da rua, em pleno sol, parada, olhando os cinco andares de janela. Hesitei um instante antes de lhe jogar algum dinheiro. Sua presença era tão severa como a da genitora de um magistrado mineiro em dia de missa de sétimo dia pela alma de outra genitora de outro magistrado, na igreja de São José. Temi ofendê-la jogando-lhe dinheiro, como já fizera em benefício do cego e da mocinha ou do homem da rebeca ou do algeriano do macaco que dança ao som do tambor. (Sim, porque a rue Hamelin tem seus artistas errantes). A velha senhora tentava cantar uma velha canção; joguei-lhe algumas moedas dentro de um maço de cigarros. Parou de cantar e recolheu o dinheiro com um gesto difícil e lento, sem se dignar a me agradecer.
Há dois velhos extraordinariamente magros, extraordinariamente brancos, vestidos de negro, com chapéus negros, que andam juntos mas não se falam nunca, como se há quarenta anos atrás tivessem esgotado de maneira irremediável o último assunto; mas há um velho que, segundo descobriu dom Carlos de Reverbel, adora o trato com os outros seres humanos. Veste-se com menos esmero, talvez com uma limpeza duvidosa; até seus cabelos brancos e sua pele parecerem mais encardidos pelos anos e pelas intempéries. Usa uma espécie de sobrecasaca imutável e gosta de ficar parado perto do metrô Boissères. De vez em quando detém um transeunte. Já assistimos essa cena, que o próprio dom Reverbel, com sua paciência já viveu duas vezes. O ancião pede desculpas e faz alguma pergunta sobre a direção em que deve viajar para uma certa gare. A pessoa explica com gentileza: descer em Trocadero, pegar então a direção de Sèvres, etc. O velho ouve com a máxima atenção, movendo a cabeça; e acaba perguntando se não seria muito incômodo mostrar-lhe o itinerário no mapa. Vêm então os dois até o mapa e a explicação é repetida. O velho agradece muito, e outro segue o seu caminho, convencido de que praticou uma boa ação. O que não é inexato. Seria inexato, porém, pensar que o digno senhor pretendia ir a rua Molitor ou a qualquer outra parte. Nunca. Jamais desce as escadas do metrô; continua ali na calçada, com um ar meio desorientado, a espera de outra pessoa a quem perguntará o itinerário de outra estação. Nunca vai, nunca foi a parte alguma; nasceu, já de sobrecasaca, num desses escuros casarões da rue Hamelin, e no lugar de morrer talvez vire estátua na pracinha ali atrás: há muitas estátuas em Paris e se esse velho se disfarçar em bronze e ficar quietinho no meio do jardim, ninguém duvidará que ele seja, por exemplo, o próprio Hamelin. (Desconfio vagamente que é).
          Mas foi na esquina de Galilée que assisti a um dos encontros mais tocantes que me foi dado presenciar na vida. Vinha de um lado uma velhinha e de outro lado outra. À primeira vista eram iguais; vestidas de negro, luzidias, com passos miúdos, magrinhas como duas formigas. Duas formigas quando se encontram param, para conversar – e as velhinhas pararam na esquina. Durante um instante, uma pareceu observar com atenção a outra; e cada uma deve ter chegado à conclusão de que a outra estava irrepreensível, desde os sapatos pretos até o chapéu preto, desde a bolsa até a pintura das faces. (Porque essas velhinhas de Paris muitas vezes se pintam: além de se pintarem, creio que se armam com espartilhos e outros mecanismos capazes de suster na vertical seus minguadíssimos restinhos de carne que talvez de outro modo, libertados de tudo isso, virassem cinza e se espelhassem ao vento dos boulevards). As duas formiguinhas se fiscalizaram um instante, eram ambas tão incrivelmente velhinhas que talvez cada uma apenas quisesse se certificar de que a outra realmente ainda estava viva, ainda existia ao cabo de tantos séculos. Ambas resistiram à crítica – e então como ficaram alegrinhas em se ver! Como ficaram alegrinhas! Parei para vê-las; trocavam palavras gentis com suas vozes de meninas roucas, agitando um pouco, ao falar, as duas mãos, movendo um pouco para a frente os corpos mirradinhos, concordando, agradecendo, sorrindo infinitamente felizes. Então se separaram – e apenas achei um pouco exagerado que, ao se separarem, uma dissesse “au revoir” à outra. Não, elas não se reverão: não, tudo tem um limite, mesmo essas velhinhas dessa rue Hamelin. Certamente cada uma chegou à sua casa, deitou-se assim mesmo toda bem vestidinha, em sua caminha, trançou as mãos sobre o peito murcho – e morreu, afinal.


Do livro 200 crônicas escolhidas. Editora Record.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Quando ela chegar


Quando chegar aos quinze anos você vai perceber que os lindos tênis de marca resultaram de meia dúzia de suadas prestações.
Que os pais, tios e outros amigos, nas reuniões de domingo, bebem bebem e repetem as velhas histórias.
Aos quinze anos, além dos hormônios e dos conflitos monstruosos, notarás que a tua é apenas a primeira adolescência. Quarentões, cinquentões, etecétera e tal deparar-se-ão com adolescências tardias. Aquele tio ganhou da esposa uma bateria. Instrumento dos sonhos quando tinha doze, treze anos. A tia fulana foi a uma viagem a Machu Picchu com seu mais novo namorado, vinte anos mais jovem. E tua mãe, para dar o troco à insensibilidade de teu pai e para sublimar o vazio da separação, vai às baladas e se comporta como as garotinhas que estão próximas de frequentar a universidade.
Ora, tudo isso não é lindo?
Quem sabe seja isso o que te aguarda no futuro. E por que não?
Você, com a carga explosiva e oscilante de alegrias e tristezas, amor, ódio e raiva, muitas vezes vai se sentir abandonada na infância e velhice dessa tumultuada fase. Muita água vai evaporar e muita dor vais sentir até reaprender a engatinhar. E chegará a hora em que não haverá o abraço carinhoso de teus progenitores. Não serás mais a fadinha, participarás de um filme de terror, dirás adeus àquela doce criança.
Sim. Terás que pular da cama contrariada. Não tem volta.
Vestirás a armadura de mulher adulta.


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Ouvindo assombrações no bar


"Os caras vêm de outras cidades pra assombrar em Ijuí".
"Fulano tem (ou pega? Não ouvi direito) um monte de mulher, e nenhuma é feia".
"Pensa no carrão daquele ali. Meeee... Dirigi esses dias: bati o ponteirinho em 180km/h fácil fácil!".
"Não ta mole ser putinha em Ijuí. A concorrência tá cada vez maior".

(Notas de um Cadelão - diário de B. B. Palermo)


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...