terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Pergunte ao grilo


Você que cultiva e compartilha crenças no trabalho escola ou igreja. Que todo mês faz as contas como num ritual que serve de portal para acessar o Hades. Que sai de fininho se a expectativa no amor foi frustrada. Você que sabe de cor, após o repouso dopado, como deve ser a política e a economia. Permita-me arriscar: você pouco sabe dos mistérios e da beleza da vida. É que você esqueceu de perguntar ao grilo, que apenas cricri. A noite os sonhos os pesadelos, o grilo não tem teorias verdadeiras, não diz se é do bem ou do mal, não diz quem é homofóbico ou racista, machista ou não. O grilo apenas apenas cricri. Você que reclama de boca cheia e cospe na cara dos outros, você que se transforma em bandido ou mocinho na intensidade do porre. Você precisa aprender com o grilo, que nada professa, que não reivindica aos quatro ventos sua liberdade de expressão. O grilo apenas apenas cricri.


(Diário de B. B. Palermo)

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Hilda Hilst - O místico e o filosófico de ser escritora e se inconformar com a morte

Hilda Hilst é uma figura de extremos que ultimamente tem se tornado cada vez mais famosa. Um de seus maiores desejos em vida era justamente “ser lida”, algo que ela teve a certeza de que iria acontecer pouco antes de sua morte, quando uma grande editora, a Globo Livros, se comprometeu em editar sua obra completa a partir de 2001. Hilda morreu em 2004, morando em Campinas, o seu refúgio da vida badalada que teve em São Paulo na juventude.
Além da obra completa de Hilda Hilst que engloba textos em prosa, poesia e teatrais, a Editora Globo também publicou o livro “Fico besta quando me entendem” que compila diversas entrevistas concedidas por Hilda Hilst durante sua vida. Assim como em seus livros, os temas existenciais, místicos e filosóficos são constantes e se misturam com o cotidiano, a política e o ser escritora.
“As pessoas perguntam sempre por que a gente escreve e eu fico pensado em todos os motivos que levam de repente uma pessoa a escrever e penso que a raiz disso em mim está na vontade de ser amada, numa avidez pela vida. Quem sabe também se não é uma necessidade de viver o transitório com intensidade, uma força oculta que nos impele a descobrir o segredo das coisas. Uma necessidade imperiosa de ir ao âmago de nós mesmos, um estado passional diante da existência, uma compaixão pelos seres humanos, pelos animais, pelas plantas.”
Quase premonitória, Hilda Hilst também fala de como a necessidade de se rebelar contra a morte também acompanha o ofício de escritora.
“A verdade é que, diante da morte, a gente nunca está realmente conformada. É por isso que penso que o que me leva a escrever é uma vontade de ultrapassar-me, ir além da mesquinha condição de finitude.”
Os motivos psicológicos e existenciais para se escrever são mais ou menos claros para Hilst, porém há o conteúdo e a relação dele com a própria vida. Ela que se isolou em seu sítio em Campinas para escrever é talvez um dos exemplos mais importantes da relação entre a vida e a literatura, de como andam juntas:

“É bem verdade que o escritor está sempre falando de si mesmo, porque é somente através de nós mesmos que podemos nos aproximar dos outros. Desnudando-nos, procuramos fazer com que os outros se incorporem ao nosso espaço de sedução. Estendemos as teias e desejamos que o outro faça parte delas, não para devorá-lo, mas para que sinta perplexidade e faça a pergunta, para que tome conhecimento da possível qualidade do nosso fio-sedução; caminhe conosco, num veículo que pode ser afetivo-odioso.” […] “Samuel Beckett na sua peça Dias Felizes escreve: “Eu não posso dizer mais; diz-se o que se pode”. Prefiro dizer: Quero falar tudo nos meus textos e posso dizer ainda mais. Faço perguntas possíveis a mim mesma: se eu falasse com a voz do mundo, como falaria? Se eu falasse com a voz dos ancestrais (que representa o sangue e o sêmen dentro de mim) haveria refulgência de uma nova voz? É preciso tentar tudo, experimentar tudo. Talvez assim a verdade, a resposta, seja encontrada.”
Consciente das complicações intelectuais e dos limites do escritor em desbravar com profundidade e domínio todos os temas, Hilda Hilst, assim como Bioy Casares ecoa ao redimir-se de um prefácio infeliz, mostra que a humildade e a disposição a se corrigir também são essenciais para se fazer literatura:
“Temos todos nós, escritores, os nossos textos infelizes, mas sempre sobra algum deles tatuado de sagrado e de magia.”
Repleto desse conhecimento visceral que Hilda Hilst cultivou durante toda sua vida, “Fico besta quando me entendem” é leitura obrigatória para quem quiser entender uma das maiores escritoras brasileiras.
Veja também um trecho da peça “Osmo” baseada nos textos de Hilda Hilst e o que Jorge Luís Borges também tem a dizer sobre ser um grande escritor.

http://www.pantagruelista.com/blog/hilda-hilst-escritora

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Palavrões, usar ou não usar? - Millôr Fernandes


 São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos.
 
  É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia.
 
  "Pra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz melhor a idéia de muita quantidade do que "Pra caralho"? "Pra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?
 
  No gênero do "Pra caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "Nem fodendo!". O "Não, não e não!" e tampouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, absolutamente não!" o substituem. O "Nem fodendo" é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranqüila, para outras atividades de maior interesse em sua vida.
 
  Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo "Marquinhos, presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!". O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Lupicínio.
 
  Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional. Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!". O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha. São dessa mesma gênese os clássicos "aspone", "chepone", "repone" e, mais recentemente, o "prepone" - presidente de porra nenhuma.
 
  Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um "Puta-que-pariu!", ou seu correlato "Puta-que-o-pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba...Diante de uma notícia irritante qualquer um "puta-que-o-pariu!" dito assim te coloca outra vez em seu eixo.
 
  Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.
 
  E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cu!"?
 
  E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no olho do seu cu!". Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta:
 
  "Chega! Vai tomar no olho do seu cu!".
 
  Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua auto-estima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
 
  E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar:
 
  "Fodeu!".
 
  E sua derivação mais avassaladora ainda:
 
  "Fodeu de vez!".
 
  Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando você parar:
 
  O que você fala?
 
  "Fodeu de vez!".
 
  Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"? O "foda-se!" aumenta minha auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta.
 
  "Não quer sair comigo? Então foda-se!".
 
  "Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!".
 
  O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição Federal.
 
  Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se.
 

domingo, 1 de janeiro de 2017

O selfista - Carpinejar


Sempre que me aproximo de quem está tirando uma selfie, eu tenho medo de atrapalhar. É como encontrar alguém nu ou se masturbando. É ser vítima de um atentado violento ao pudor. 
Fico com vontade de pedir desculpa, viro o rosto, evito encarar.

O selfista demonstra uma carência extrema, é um solitário pretendendo demonstrar que é conhecido. Desperta compaixão, insinua uma orfandade de amigos. 
Quem faz selfie pensa que ninguém está olhando, está possuído da vaidade e não compreende o quanto é patético.

O rosto sério passa a ser falsamente sorridente com a mão levantada. Um minuto atrás era uma careta, um minuto após é um sorriso de canto a canto da boca, sem nenhuma motivação secreta. Como pode rir se nada aconteceu de diferente?

As pessoas comuns inventaram o riso súbito, para concorrer com o choro profissional e o beijo cênico dos atores. O selfista transforma a tela em uma metralhadora de toques, até achar um momento que preste.

A busca pelo ângulo perfeito beira a obsessão. Tem gente que posa 10 horas para si mesmo, à procura de um instante de satisfação. Lota a caixa de imagens somente para atualizar as redes sociais. Um flagrante salvo significa 99 deletados. Já é compulsão, já é doença, já é vício.

Não tem como não se incomodar com o autorretrato virtual. Ele se baseia numa mentira. Boa selfie é aquela que parece que foi clicada por uma outra pessoa. Precisa de extensão do braço e de uma mirada ao lado, como se pego de surpresa. Ou seja, selfie é a negação da selfie. Se fosse algo agradável, ninguém teria vergonha de esconder como foi feita.

Quando testemunho alguém manipulando o celular freneticamente para todos os lados, a minha ânsia é chamar a Samu. É um ataque epilético do narcisismo.

O homem ou a mulher vai se debatendo com o aparelho, esfaqueando-se com o celular, quase se esganando de contorcionismo. Coloca o cabelo para frente e para trás, morde os lábios, encolhe a barriga, suspende a respiração, gira o quadril para enquadrar a melhor paisagem, não poupa esforços para fingir leveza.

Qualquer um que enxerga a cena acaba nervoso.

Trata-se de uma tragédia silenciosa. O selfista não se contenta jamais, percebe um defeito invisível no nariz, nos olhos, no penteado, mesmo quando há nada de errado. Alucina, não está mais entre nós. A ausência de confiança produz uma tortura infinita. Cada foto é o reconhecimento do que falta na aparência, cada foto piora a vontade de viver, cada foto é um aborto.

O selfie virou um espelho que anda e substitui a realidade.
Nem estou falando dos filtros e retoques, onde você tenta apagar as imperfeições e simplesmente desaparece dos registros, só ficando o lugar em que estava.
(Donna ZH 31 de dezembro de 2016 e 1 de janeiro de 2017)

domingo, 18 de dezembro de 2016

Doutor, o Arthur é o cão da triste figura


Certo dia, ao desembarcar na parada de ônibus a alguns quarteirões de casa, eis que surge um mamífero quadrúpede (da família dos caninos, Doutor) e passou a me seguir. Acho que me confundiu com algum velhinho que ele aguardava desembarcar do ônibus, pensei. O vira-latas me acompanhou até em casa. No seu olhar percebi a postura de quem dava as cartas, como se dissesse EU é que escolho dividir tua moradia, desde que EU decida o que é melhor.
À medida que o Arthur foi ficando, Doutor, remoo a seguinte dúvida: como ele estava mais acostumado com as ruas do que em casa, devo “prendê-lo” para evitar que corra o risco de ser atropelado pelo movimento louco da cidade, ou domesticá-lo, dando-lhe  todas as regalias dos pet shops, roubando-lhe a antiga rotina? Conhecidos me disseram que o Arthur quase sempre acompanha os velhinhos, não apenas até as paradas de ônibus, mas também quando se dirigem aos postos de saúde, escolas, asilos. Diante de tantas virtudes, é claro que me sinto culpado por cultivar tão poucas qualidades. Sim, Doutor, em vez de fazer algo para melhorar o mundo, fico horas na internet, invado sites pornôs e me masturbo. Enquanto o cão da triste figura vai pras ruas sempre disposto a acompanhar os desamparados, eu só tenho olhos para as garotas, seus cabelos, cintura, bumbum, seu jeito de andar, ansioso para atrair sua atenção. O Senhor acha que desisti de acreditar na humanidade e não passo de um gigantesco verme?
A liberdade do Arthur é um dado importante, o Senhor tem razão. Tenho muito a aprender com ele. Um escritor precisa conhecer a vida como ela é, ir pras ruas, alimentar-se do fluxo. Mas fico angustiado. Esses dias o Arthur sumiu por quarenta e oito horas. Bebi demais, Doutor, liguei para dezenas de pessoas, até o Cara! apareceu pra dar palpite. Não, não quis postar fotos do bichinho no facebook, quis preservar sua identidade. Vamos deixar para outros humanos a mania de exporem seus bebês e crianças na internet. Perderam o senso do ridículo. Aliás, Doutor, essas mulas não fazem a mínima ideia do que é ser ridículo.
Ah, sim, ainda não descrevi o Arthur. É preto, de porte mais pequeno do que médio, e tem uma cara séria de quem sempre anda desconfiado. Deve ser porque ele está boa parte do tempo batendo de frente com os perigos desse mundo, Doutor. Escrevi um conto prontamente aceito por uma revista de circulação nacional com o título “Arthur, o cão da triste figura”. Uma narrativa lírica que tenta mostrar que a beleza é relativa (de menor importância) diante da gangorra entre defeitos e qualidades de alguém. O que é ser bonito ou feio? Ainda bem que os cães não dispõem de juízo estético. Não perdem tempo com isso. Simplesmente nos escolhem e acolhem. E amam. Dizia também no conto que Arthur encarna o espírito dos cães que aparecem na literatura, como em Marley e a cadela Baleia, de Vidas secas
Há um termômetro que ajuda a compreender minha relação com o vira-latas. Tomo consciência de que devo desestressar quando não lhe dou atenção e carinho, quando estou mal-humorado, nessas horas caminho por aí, do jeito que ele faz, para encontrar com amigos, relaxar e beber umas cervejas.
O Arthur evidencia como anda meu carma: se estou sentado próximo ao seu tapete, ele se enrosca e deita sobre meus pés e nossas energias fluem de um para o outro. Então, Doutor, minha sensibilidade retorna, e decido dar-lhe uma boa educação musical. A música clássica, principalmente Tchaikovsky e Chopin, deixa-o mais relaxado, percebo pelo movimento do rabo e das orelhas, ainda mais se for depois que ele volta de suas missões voluntárias pela cidade.
As virtudes do Arthur, Doutor, me levam a pensar sobre meus defeitos. Os cuidados que temos um para o outro me tornam um homem melhor. Por isso sonho que ainda vou dar certo com alguma mulher. O que o Senhor acha, Doutor?
Formou-se uma dúvida. A preocupação do Arthur com os velhinhos, mendigos e desamparados pelas avenidas da cidade e seu trânsito agressivo, não dá mostras de que ele não é um simples vira-latas, mas sim um anjo?


(Diário de B. B. Palermo)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Doutor, cansei do ano do barulho


Na avenida do barulho preciso ter nervos de aço. Os carros não deslizam nem desfilam. São bolas de fogo, Doutor. Artéria principal, se estás a pé ou de bicicleta não és ninguém. Vais te esgueirar pelas calçadas e evitar que uma máquina te fuzile com seu para-choque. Se és neguinho de vila ou chinelão, se não tens carro ou potente som, aconselho-te a cruzar bem longe da avenida do barulho. É pegar ou largar. Se os engarrafamentos se esparramam pra direção oeste, vou pro norte ou sul. Posso escolher: afastar-me das freadas, buzinadas, cantadas de pneus, som alto e monóxido de carbono. Fugir dessa bagunça e voltar a brincar, como andar de bicicleta pela primeira vez.
Então me pergunto, Doutor, o que posso esperar pro Ano Novo? Ano que vem vai ser pra valer. Vou com tudo. Vai nascer um novo homem. 2018 vai ser um ano de ouro (aliás, Doutor, eu quis dizer 2017). Estou desmontando ideias fixas e pavimentando uma original ciclovia, em vez das avenidas pra chegar lá. Dormir cedo, reduzir pela metade o consumo de combustível (eu quis dizer álcool, Doutor). Escrever mais e melhor. Aguçar mais e mais os sentidos ao sair por aí. A escolha dos amigos vai ser pela qualidade, não pela quantidade. Quanto mais emancipado estiver do racismo, sexismo e homofobia, mais chances tem de ser meu amigo. E que tenha sensibilidade para tentar ouvir e compreender uma mulher.
Quero resolver pormenores da minha vida, Doutor. Não vou deixar pedra sobre pedra. Mesmo que não consiga evitar que amores escorram como água entre os dedos. Se não redobrar os esforços, eu sei, ano que vem muito vai ser do mesmo, o que espero das garotas e elas de nosotros, as decepções quase sempre se equivalem.
Já estou recebendo felicitações de feliz Ano Novo de algumas leitoras. Uma delas, de uma região distante do país, disse que adora minhas histórias. Com seu português bem peculiar ela me desejou tudo de melhor, e finalizou: “Boa sorte suseso”. Responda, Doutor, de zero a cem, quais são as minhas chances de futuramente ser um escritor número um?


(Diário de B. B. Palermo) 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Viagem ao fim da noite - Céline


Leitura da semana

Viagem ao Fim da Noite é um livro difícil de definir. Não é um romance comum, com início, meio e fim. Praticamente não tem personagens fixos, nem grandes façanhas. Mesmo assim, Céline despeja uma dose tão grande de humanidade pelas páginas que é impossível não se interessar pelas desventuras do protagonista Ferdinand Bardamu.
Alter-ego de Céline, Bardamu é fraco, egoísta, mentiroso e covarde. Mas também consegue ser bondoso e gentil, conforme a situação. Não passa de um ser humano, produto de seu meio. Tudo começa quando ele se alista no exercito francês, em plena Primeira Guerra Mundial. No front, descobre o horror da guerra. Milhões de mortos por algo que não faz sentido algum, e mais tantos outros ansiosos para enfrentar o mesmo destino. Mas principalmente, ele sente de perto a loucura de viver o tempo todo sob a iminência da morte.
Já nesse começo, dá pra perceber facilmente o estilo característico e genial do Céline. Tudo bem, a linguagem simples, cheia de gírias e palavrões não é mais tão revolucionária quanto foi lá em 1932, quando o livro foi publicado. Mas o modo como ele reflete sobre a condição humana, encaixando passagens poéticas belíssimas no meio de toda essa imundice, continua inigualável até hoje.
Com o fim da guerra, Bardamu segue sua jornada, buscando apenas sobreviver com alguma dignidade. Não, na verdade ele já abandona a dignidade nas primeiras páginas. Ferido e enojado da França, ele parte para as colônias africanas, apenas pra chegar lá e presenciar as pessoas definhando e perdendo sua humanidade no meio da selva. Na primeira oportunidade, foge para os Estados Unidos, só para ser esmagado pela solidão das linhas de montagem. De volta a França, ele tenta a sorte como médico em um subúrbio pobre e acaba como funcionário de um manicômio. Tudo isso apenas com a companhia de Robinson, uma espécie de contraponto ao protagonista. Um ser sem fé alguma na humanidade e que só age em benefício próprio, que coincidentemente aparece em quase todos os lugares que Bardamu chega.
Em cada novo lugar, Bardamu encontra um absurdo maior que o anterior. A peste, a fome, a guerra, o egoísmo, a fragilidade humana, é tudo tão ultrajante que em certo ponto ele quase desiste de levantar da cama, de lutar e não chegar a lugar algum. Em cada uma de suas viagens, ele chega aos limites da existência. Expõe a podridão do homem, realmente nos levando ao limite. Ao fim da noite. O livro é isso, um retrato da loucura. Não (Apenas) de Bardamu, mas de toda uma sociedade. E tudo ainda é relatado de forma tão habilmente sarcástica que fica difícil não rir de algumas situações. Talvez como um mecanismo de auto-defesa, é rir pra não se desesperar. Coisa que só o Bukowski e o Kurt Vonnegut chegaram perto, mas em graus diferentes.
É impossível dizer mais sobre o livro sem falar sobre seu autor. Céline e seus personagens se confundem. Ele próprio era veterano de guerra, presenciou a situação da África e foi funcionário da Ford nos Estados Unidos. Com seu livro de estreia publicado, se tornou celebridade instantânea. Amado pela esquerda e pela direita, mas ainda odiando ambos. Com uma narrativa dinâmica e conclusões quase filosóficas, Céline se tornou o primeiro escritor marginal de que se tem noticias e praticamente moldou a literatura do resto do século.
Mesmo assim, continuava deslocado do resto da humanidade. Há anos sofrendo com as sequelas das batalhas da Primeira Guerra Mundial, começa o caminho rumo a decadência e a perda da sanidade quando publica artigos anti-semitas denunciando uma conspiração mundial com os judeus como protagonistas. Até aí, muitos franceses pensavam a mesma coisa na época. O que o fez cair em desgraça foi apoiar abertamente a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra.
Ao fim do conflito, Céline serviu de bode expiatorio para todo um omisso povo francês. Foi preso, passou anos no exílio, morreu sozinho, doente e miserável. Com o passar do tempo, sua obra se tornou cada vez mais ostracizada. Outro erro terrível, humanidade. Não digo que deveríamos fechar os olhos para seus erros, como falaria Henry Miller. Mas nunca ignorar uma obra prima que influenciou de Jack Kerouac aos Doors, por causa das escolhas de um reles ser humano. Genial, sim, mas humano. Que foi um dos primeiros a enxergar (Talvez apenas precedido por Dostoiévski) o caminho sem volta que a sociedade estava tomando, e os efeitos terríveis que isso provocaria no espirito humano. Pena que ninguém lhe deu ouvidos nessa parte.

Do site http://www.baconfrito.com/viagem-ao-fim-da-noite-louis-ferdinand-celine.html

domingo, 27 de novembro de 2016

Pré-verdade - Paulo Gleich


No último dia 16, o dicionário de língua inglesa Oxford divulgou a palavra do ano 2016 : "post-truth" ou, em português, "pós-verdade". Sua definição, segundo os editores, é "relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal".
A escolha da palavra se deveu ao incremento de seu uso durante o ano, especialmente após as votações que definiram a saída do Reino Unido da União Europeia (o Brexit) e a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos.
Ao explicar sua etimologia, os editores destacam que o "pós" não se refere a um evento temporal – como em pós-guerra –, mas indica um contexto em que aquilo a que se refere tornou-se algo irrelevante, fora de uso. Com isso, pós-verdade indica um contexto em que a verdade passa a ser pouco importante, em detrimento de crenças ou afetos. 
A escolha da palavra reflete algo que viemos acompanhando há algum tempo, em escalada, nas redes sociais. Nos últimos anos, questões sociais e políticas vêm tomando conta dessa arena virtual, em alguns casos ampliando os debates e reflexões – mas, em maior escala, empobrecendo essa discussão, com sua miríade de memes, frases de efeito e imagens e notícias falsas. Mesmo dentro da minha "bolha" (como vem sendo descrito o conteúdo ao qual temos acesso pelas redes sociais, dando a impressão de que são representativos da totalidade da população), esses conteúdos aparecem com bastante frequência – a ponto de, em algum momento, eu ter parado de alertar quem os divulga de que se trata de fatos inverídicos. Alertas para checar a veracidade dos conteúdos compartilhados têm se provado inócuos, dando vitória à difusão de verdades, semiverdades e mentiras como se fosse tudo a mesma coisa. Parece, de fato, que a pós-verdade venceu; fatos importam menos que convicções.
Em termos psíquicos, a pós-verdade é uma pré-verdade: uma forma primitiva do psiquismo de se relacionar com a realidade. Freud a descreveu nos bebês: inicialmente, suas sensações e percepções são dispersas, não há diferença entre dentro e fora, sujeito e outro. A primeira diferença é sensorial: o que é percebido como bom é atribuído a si próprio, o que é ruim ao fora, ao outro. Com base nesse mecanismo vai se construindo a noção de realidade, considerando-se "verdadeiro" apenas o que é bom, que condiz consigo mesmo. Posteriormente, essas fronteiras vão se dissolvendo: é possível reconhecer que o mal também nos habita, e que a realidade externa é mais complexa e independente de nossos desejos e ações. O componente afetivo, porém, sempre está presente em alguma medida na construção da verdade.
Na dita era da pós-verdade, porém, o peso maior recai sobre esse aspecto emocional, a ponto de ser, cada vez mais, o único que conta: se me parece bom, se está de acordo com minhas crenças, então é verdadeiro. A diferença disso em relação a uma verdade propriamente subjetiva é a desimplicação: não há necessidade de sustentar as consequências em relação ao que se afirma. Que políticos – de todos os lados do espectro ideológico – o façam já é grave; que chancelemos essa prática como normal através de nossos atos, porém, é nos lançarmos em uma aventura perigosa, com consequências cuja gravidade talvez nem possamos estimar.

Zero Hora, 26 e 27 de novembro de 2016

domingo, 20 de novembro de 2016

Velho, mas vivíssimo e enamorado por uma menina


A casa renascia de suas cinzas e eu navegava no amor de Delgadina com uma intensidade e uma felicidade que jamais conheci em minha vida anterior. Graças a ela enfrentei pela primeira vez meu ser natural enquanto transcorriam meus noventa anos. Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar  a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra  a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado de alma e sim um signo do zodíaco.
Virei outro. Tratei de reler os clássicos que me mandaram ler na adolescência, e não aguentei. Mergulhei nas letras românticas que tanto repudiei quando minha mãe quis me forçar a ler e gostar, e através delas tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não foram os amores felizes e sim os contrariados. 

Gabriel García Márquez. Memórias de minhas putas tristes. Ed. Record.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Doutor, estava rodeado de ceguinhos


Estava rodeado de pessoas, Doutor, todas com óculos escuros, pareciam ceguinhos e falavam ao mesmo tempo, como numa torre de Babel. Falavam, falavam, cada qual apegado à sua verdade. Não sei se isso aconteceu mesmo ou se foi um sonho. Parecia uma reunião, mas não era. Parecia um comício, mas não era. Parecia uma sala cheia de alunos, mas eu não era aluno. Parecia uma sala de aula, mas havia velhos, crianças e jovens, e eu não era um professor. Foi apenas um sonho, Doutor? Tem alguma verdade ou relação com a realidade?
Foi quando subi numa mesa ou caixote e tomei a palavra. Batia na tecla de que a vida não se resume em receitas e despesas, cálculos, etc. etc. Que o que permanece são as amizades, que a nossa memória retém mais são os momentos que envolvem emoções junto com os outros. Como é difícil traduzir em palavras o que senti, Doutor, o que marcou minha alma parece mais intenso do que consigo dizer aqui pro Senhor. Já dizia Fernando Pessoa que o poeta não consegue expressar em palavras o que ele realmente sente.
Mas voltemos ao aglomerado onde tomei a palavra e disse intensamente minhas inverdades. Tudo o que eu precisava naquele momento era contar uma história que empolgasse a multidão de cegos. Contava pra eles o que me vinha, sem ter planejado antes. Era um atleta de um pequeno clube de um pequeno lugar, habitado por pessoas simples. Apenas o presidente do clube era rico e por isso pagava alguns jogadores. O papel do dono era possibilitar os encontros das pessoas, garantir a estrutura para que todos vivessem satisfeitos. A comunidade dava conta do resto, com suas festas, danças, jogos, paqueras, conquistas, perdas e danos e celebrações religiosas. O dinheiro que alguém acumulou era apenas uma ferramenta, um coadjuvante. Então, Doutor, quando a plateia cega estava empolgada e pedia mais e mais histórias, eu comecei a falar das garotas do lugar. Dizia que, mesmo que pudesse namorar com a garota mais bonita, porque era o ídolo do clube, sempre ficava um vazio. Quanto mais garotas por perto, mais eu ansiava por outra que estava em falta. Então lembrei da Sherazade a qual, com suas mil e uma histórias de heróis e vilões, de fadas e monstros, humanizou o rei cheio de ódio. Inventei pra multidão cega, dizendo que foi Sherazade que me narrou as histórias todas, que me conquistou e venceu meu vazio, preencheu o amor que me faltava. Caprichei no repertório e foi incrível, Doutor, com o passar das histórias que contava os óculos iam caindo, e as pessoas deixavam de ser ceguinhas.


(Diário de B. B. Palermo)

sábado, 5 de novembro de 2016

Harmada - João Gilberto Noll


Leitura desta semana.

A narrativa Harmada, publicada em 1993, está entre as mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Ela mostra a vida de um ex-ator de sucesso que vaga sem rumo por um país inominado da América Latina, e anseia por chegar à capital, Harmada. O país, claro, é uma paródia do Brasil, sua sociedade e seus costumes. 

Para provar a si mesmo e a quem está lendo o seu estado de "além- liberdade”, o protagonista se esbalda em lama horrivelmente fétida e participa de orgias sexuais ao lado de outros atores. Após andar à deriva, passa a viver num asilo de mendigos. Lá encontra Cris, filha de alguém por quem tivera uma paixão fulgurante e fugaz. Com ela, sonha em retornar a Harmada, mas se vê retido por uma paralisia. Consola-o o projeto de montar um espetáculo de teatro. 

A história constitui uma nítida transmutação por que passou a obra de João Gilberto Noll. Há grandes diferenças, por exemplo, com A Fúria do Corpo (1981), em que ser social oprimido pelas forças coercitivas da sociedade contemporânea almeja uma liberdade total e plena. Já em Harmada o narrador, crendo-se livre dessas tais "pressões externas”, busca um não-sei-quê além da liberdade. Afora isso, e também ao contrário de suas narrativas predecessoras, em que os personagens vagam a esmo, aqui se parece divisar ao longe um norte, uma esperança ainda que utópica, representada por Harmada. 

A obra não se pauta por um movimento linear. Pelo contrário, os fios do enredo se emaranham e abdica-se do uso freqüente do ponto, imprimindo um ritmo mais intenso, quase alucinante, ao texto. Já se aproximou a escrita de Noll dos estados esquizofrênicos. Conforme analisa o jornalista e crítico José Castello, o protagonista se "afoga num pântano lingüístico: como entre os esquizofrênicos, seu espírito está fendido e os pensamentos o asfixiam. Harmada, a capital, vem ampará-lo nessa vagueação”. Outro fator peculiar à prosa de Noll está no fato de a narrativa ostentar elementos que lembram aos leitores visões cinematográficas no desenrolar das tramas, numa descrição vívida de sensações, cores, sentimentos e sons. 

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre, em 1946. Em 1967, entrou para o curso de letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dois anos depois, abandonou o curso e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou para o jornal Última Hora. Em 1970, publicou seu primeiro conto, Roda de Fogo, numa coletânea elaborada pelo escritor e poeta gaúcho Carlos José Appel. Mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar como revisor. Em 1975, de volta ao Rio, começou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica, no curso de comunicação social. 

Em 1980, um ano depois de concluir seu curso, publicou seu primeiro livro, O Cego e a Dançarina. Lançou ainda, entre outros, Hotel Atlântico (1989), O Quieto Animal da Esquina (1991), Berkeley em Bellagio (2002) e Lorde (2004). Obteve três prêmios Jabuti. Suas obras, muitas das quais adaptadas para o cinema e o teatro, foram traduzidas e estudadas nos Estados Unidos e na Inglaterra.


http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/harmada-403577.shtml

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